Brasil

Por que o engajamento no futebol brasileiro ainda é um tabu?

Por Rodrigo Tammaro e Wálace de Jesus 

No dia 8 de dezembro, os jogadores do Paris Saint Germain (FRA) e Istambul Basaksehir (TUR) se mobilizaram coletivamente e deixaram o campo após manifestações de cunho racista do romeno Sebastian Coltescu, 4º árbitro da partida válida pela Champions League. A medida foi muito elogiada por alguns torcedores, que cobram uma postura mais enfática dos atletas e outras personalidades públicas acerca do racismo. O jogo foi interrompido após os jogadores deixarem o campo, e foi remarcado para o dia seguinte.

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Alguns meses antes, no dia 22 de outubro, o ex-jogador de futebol e atual senador federal, Romário de Souza Faria (Podemos-RJ), apresentou um projeto de lei que consiste na adição de um artigo à Lei Pelé. A partir da nova definição, fica proibida a punição a atletas que se posicionarem criticamente durante eventos esportivos. A única punição prevista é caso haja ofensa explícita contra qualquer participante, patrocinador ou organizador do campeonato em questão. 

Pouco tempo depois, no dia 3 de novembro, ocorreu outra manifestação em que alguns clubes e jogadores posicionaram-se publicamente depois de surgirem  gravações da audiência do caso ainda em julgamento do acusado de estupro, André Aranha, envolvendo a influenciadora Mariana Ferrer.

A medida proposta por Romário, o posicionamento de clubes e atletas sobre o caso Mari Ferrer e agora a atitude dos jogadores de PSG e Istambul Basaksehir ajudam a levantar uma discussão cada vez mais frequente: o engajamento político e social do futebol. Além disso, personalidades importantes e ativas nas mobilizações sociais em outros esportes, como Lewis Hamilton na Fórmula 1, Colin Kaepernick da NFL e LeBron James na NBA, adicionam um elemento importante para o tema.

No caso do futebol, principalmente no Brasil, apesar dos eventos recentes, os atletas são menos engajados e se posicionam com menos frequência. Por que os jogadores de futebol são menos ativos nesta questão se comparados a atletas de outras modalidades?

Parâmetros legais

De acordo com o Regulamento Geral das Competições de 2020, documento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que indica os parâmetros que devem ser adotados para os torneios realizados pela instituição, manifestações de caráter político ou religioso são consideradas antidesportivas. A passagem anterior está presente no primeiro parágrafo do Art.1 do documento e propõe as seguintes reflexões: a imparcialidade no ambiente esportivo é possível? O esporte deve ter uma função social? O que define as manifestações políticas e religiosas?

Segundo a advogada especialista em Direito Desportivo e colunista no portal Lei em Campo, Fernanda Soares, a imparcialidade adotada pela CBF é estabelecida diante das diretrizes da FIFA (Federação Internacional de Futebol). “Não só a CBF mas todas as associações que fazem parte da ‘família FIFA’ devem seguir o mesmo regramento. É da natureza do sistema”, afirma. 

A caracterização de uma manifestação política ou religiosa também é outra vertente discutível. “Não há definição precisa do que seria uma manifestação política”, explica a colunista. “Não se sabe se a proibição é referente à manifestação  política interna de clubes ou se é partidária. Tanto o Regulamento Geral de Competições da CBF quanto os regulamentos da FIFA deixam essa questão em aberto”, complementa. A norma da FIFA, segundo Fernanda, estabelece que suas intuições devem ter conduta “politicamente neutra”, sem esclarecer o que seria esta neutralidade.

Algumas razões para a adoção dessa suposta neutralidade dentro do futebol podem estar relacionadas aos patrocínios: “Entendo a posição da instituição em querer restringir as manifestações políticas; há questões de patrocínio que precisam ser pensadas, já que há o patrocínio de empresas de capital público e privado no esporte”, completa Fernanda.

O jornalista da ESPN e do El País, Breiller Pires, também acredita na proibição estabelecida pela CBF como consequência da estrutura mercadológica do esporte. “Nessa lógica, não é interessante para a entidade ter seu espetáculo de certa forma ofuscado por manifestações política e religiosas. Economicamente, é interessante que o esporte seja um meio asséptico, em que não existam conflitos políticos e ideológicos”, explica. Sendo assim, a possibilidade de que as manifestações possam desagradar parte do público faz com que “os dirigentes entendam que é necessário censurar os atletas previamente por meio de regulamentos”, completa Breiller.

Dentro dessa discussão, a liberdade de expressão e de manifestação garantidas em Constituição são colocadas em contraposição ao regulamento da CBF. “Há o direito de manifestação, garantido pela Constituição Federal. Restringir a liberdade de expressão vai de encontro aos pilares de um estado democrático. Mas veja que a regra de vedação a manifestações políticas está colocada em um ambiente privado, e não público”, revela a advogada. 

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A política com o futebol

Para entender o engajamento dos atletas, é preciso entender também a relação dúbia entre futebol-política e política-futebol. Em contrapartida aos poucos jogadores que se posicionam diante de temas políticos e sociais, muitos políticos utilizam o futebol como palanque para agradar seu eleitorado e ganhar notoriedade.

É o caso, por exemplo, de Jair Bolsonaro. Frequentemente o presidente faz lives e publicações com camisetas dos mais diversos times brasileiros. Além disso, menções elogiosas ao presidente foram feitas pelo narrador André Marques durante a transmissão do jogo entre Brasil e Peru, no dia 13 de setembro, feita pela TV Brasil, emissora pública. Entretanto, Bolsonaro não é o único a investir nessa relação, e diversos políticos, independentemente de orientação política, buscam no futebol uma forma de agradar ou angariar mais eleitores.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, com a camisa do Palmeiras no dia 27 de julho de 2019 (Miguel Schincariol/Getty Images/OneFootball)

A política também engloba o futebol nos casos de ex-jogadores e dirigentes que se candidatam a cargos públicos, como Romário (Podemos-RJ) e o ex-candidato a vereador de São Paulo, Marcelinho Carioca (PSL-SP). Além desses, nomes de cargos administrativos também são exemplos de intersecção entre política e futebol,  como o ex-presidente do Flamengo, Bandeira de Mello, e o atual diretor do time, Marcos Braz, ex-candidatos a prefeito e vereador do Rio de Janeiro, respectivamente. 

De acordo com Roberto Jardim, jornalista e autor dos livros Democracia Fútbol Club e Além das 4 linhas, esse é mais um indicativo de que futebol e política se misturam sim. “Em 1978, quando a Argentina foi campeã do mundo, o campeão e o vice subiam na tribuna para receber os prêmios. A Holanda, como forma de protesto ao ditador Jorge Videla, recusou-se a subir. A partir da Copa [do Mundo] seguinte, o João Havelange (presidente da FIFA na época) determinou que não haveria mais premiação para o segundo lugar como forma de não constranger os dirigentes e políticos do país caso houvesse um novo protesto como o da Holanda”.

A partir deste trecho, fica o questionamento: se os governantes utilizam o esporte como palanque político, por qual motivo quem o pratica também não pode usá-lo para defender ideias tão importantes para a sociedade?

O futebol brasileiro com a política

O debate é complexo, “não há uma resposta simples”, explica Fernanda. “Se você coloca política ali, o público some. Cai a receita, cai o público, cai o esporte”, complementa. Mas ela também relata que há outro lado da moeda: “Coibir o atleta de se expressar é também problemático, já que a partida é um palco relevante para a divulgação de ideias às massas”.

No caso dos atletas, a relação (e suas motivações) são outras. Jogadores que se posicionam abertamente sobre temas de cunho político e social são minoria, e os motivos para isso são os mais diversos.

Um dos fatores possíveis é a questão cultural do jogador brasileiro. Segundo Breiller, “é difícil para alguns atletas posicionarem-se, pois muitos deles não tiveram uma bagagem teórica e cultural, pelo fato de abandonarem a escola para se dedicar ao esporte ou por seu desenvolvimento escolar não ter sido suficiente”. Roberto completa e afirma que “a educação brasileira não é feita a partir da valorização e reconhecimento da importância de se posicionar socialmente”, mas defende que, nesse caso, os atleta estão submetidos a uma condição que é geral em toda sociedade brasileira.

Richarlison é um dos principais jogadores no quesito engajamento, o que lhe rendeu um prêmio inglês por ações sociais. [Imagem: Instagram/Richarlison]

Outro aspecto é a exposição, seja ela diante do público ou diante dos patrocinadores. No primeiro caso, muitos atletas temem retaliação por parte da torcida e têm o receio de que um eventual posicionamento possa impactar negativamente na relação de idolatria com o torcedor. Já no caso dos patrocinadores, o medo é de que a repercussão do posicionamento possa levar ao rompimento dos contratos de patrocínio, como comentou Fernanda. Em alguns casos, os próprios patrocinadores estabelecem em contrato que os atletas não devem se posicionar em público.

Apesar desses fatores que contribuem para uma certa omissão do futebol e de seus atores diante das manifestações políticas, em alguns casos (menos frequentes se comparados aos políticos usando o futebol), os atletas e instituições utilizam sua relevância para manifestarem-se. É importante ressaltar que o posicionamento em questão não é exclusivamente partidário, mas envolve outros temas e pautas humanas.

Sobre esses casos, Roberto comenta: “Não tem como ser isento nos temas como como machismo, homofobia e racismo. Se você não é contra, e se cala diante dessas questões, você acaba sendo a favorável a elas”. Ele defende que, assim como o clube alemão St. Pauli, os times deveriam ter em seu estatuto o registro de que defendem as bandeiras antirracista, antifascista e anti-homofóbica.

Já no caso do posicionamento político partidário, a questão é um pouco diferente. “É complicado um clube, como por exemplo o Flamengo, posicionar-se institucionalmente na política partidária a favor do presidente do país, independentemente de quem for o político em questão. Nem todos os torcedores e sócios do time apoiam o presidente. O jogador que quiser fazer campanha, pode fazer, mas institucionalmente e durante os jogos eu acho mais complicado”.

A falta de um ambiente acolhedor ao atleta engajado também é um empecilho para que mais jogadores se posicionem. Quando o ex-goleiro do Santos, Aranha mostrou-se contra o racismo após ofensas sofridas durante uma partida em 2014, foi duramente criticado por parte da torcida, que o acusava de vitimismo. No caso das manifestações partidárias, as críticas são ainda maiores. Assim, cobra-se mais posicionamento e menos passividade e isenção dos jogadores de futebol diante dos temas políticos e sociais, mas quando eles aparecem publicamente para manifestarem-se, são duramente criticados por grande parte da torcida e também da imprensa. Como no caso do dirigente do São Paulo, Raí, criticado pelo comentarista dos canais Globo, Caio Ribeiro, por questionar a gestão de Bolsonaro na crise do coronavírus.

Os exemplos da NBA

Quantificar e definir o esporte mais engajado é improvável. Entretanto, pelo menos por enquanto, os jogadores da liga americana de basquete parecem mais dispostos a se posicionarem do que os jogadores do futebol brasileiro. Segundo Breiller, um dos principais motivos é o desenvolvimento escolar dos jogadores americanos: “Lá, a formação esportiva acontece em paralelo com a escola e posteriormente com a universidade. O atleta, ao se profissionalizar, normalmente já tem um estofo de educação formal maior que os atletas brasileiros”. De acordo com Breiller, isso criaria uma “conjuntura diferente e favorável a mais manifestações políticas por lá [EUA]”.

Outro aspecto notável é a consciência de classe e coletivização das questões entre os atletas estadunidenses. Liderados principalmente por LeBron James, os jogadores da NBA reuniram-se e fizeram sua reivindicação e seu protesto coletivamente, como uma classe de atletas. Juntos, eles recusaram-se a participar de algumas partidas como forma de protesto em favor do movimento Black Lives Matter. Segundo Roberto, “falta essa coletivização no Brasil, não só no futebol”. Entretanto, o jornalista comenta que assim como a questão cultural, a falta de coletivização é um problema de toda a sociedade brasileira, não exclusivo aos atletas.

No caso do futebol, os jogadores não parecem acreditar tanto no aspecto da organização e mobilização coletiva como forma de reivindicar seus interesses e posicionamentos. A Democracia Corinthiana, movimento celebrado por torcedores até hoje, quase 40 anos depois de seu fim, é um dos poucos exemplos de sucesso considerável. O Bom Senso Futebol Clube, criado em 2013, também é um exemplo, mas as críticas a seus integrantes por boa parte da imprensa, torcida, dirigentes e colegas de profissão, contribuíram para o fim do movimento sem que muitos resultados fossem alcançados.

Sócrates, do Corinthians. A Democracia Corinthiana é o principal exemplo de mobilização coletiva dos atletas brasileiros.

A importância e os rumos do engajamento

É importante ter em mente que todos cidadãos, atletas ou não, devem ter o direito de assumir opiniões, mas também o direito de manterem-se isentos no que for de seu interesse. Parafraseando o jornalista Juca Kfouri, Roberto cita que “não dá para cobrar heroísmo com o pescoço alheio. Então o jogador não deve ser cobrado para que se posicione, mas eu acho que não podemos condenar aquele que se posicionar”.

Ainda assim, os clubes e atletas são um grande espelho para muitos de seus torcedores. Por isso é importante que se mobilizem diante das causas mais relevantes. “O esporte tem muita visibilidade. Os clubes e os atletas têm uma função social por conta dessa popularidade. Eles têm o dever de se posicionar e levantar bandeiras humanitárias contra o racismo, homofobia, machismo e desigualdade social, por exemplo”, completa Breiller. Também vale lembrar que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) adota postura anti-discriminatória, na qual todos devem colaborar de forma a prevenir eventuais episódios de violência, racismo, xenofobia ou qualquer outro tipo de discriminação durante as competições.

Nesse aspecto, a torcida tem um papel relevante. Para ilustrar, Roberto lembra do Rayo Vallecano, pequeno clube espanhol. A Robinho ao Santos foi parecido, com o adicional da participação dos patrocinadores, que também podem ter um papel ainda mais significativo no engajamento do futebol daqui para frente.

Torcida do Corinthians levanta faixas de protesto durante jogo. (Foto: André Lucas Almeida/Jornalistas Livres)

No caso das torcidas que se expressam politicamente em campo, a responsabilidade é do time ao qual elas fazem parte: “O torcedor não é julgado na justiça desportiva, então caso uma torcida faça manifestação política, é dever do clube mandante evitar e/ou cessar a manifestação. Caso não faça, o clube pode ser punido. O torcedor em si, não”, explica Fernanda de acordo com o artigo 191 do CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva).

E não é só a Justiça Desportiva quem cobra disciplina e resiliência tanto dos torcedores quanto dos jogadores. Para Breiller, a cobrança social vai cada vez mais conduzir os patrocinadores a não se isentarem diante de casos como, por exemplo, o do Robinho, condenado por estupro na Itália: “As instituições precisam vender uma imagem de que não estão na margem da sociedade. A reação social e dos patrocinadores, que ameaçaram tirar investimentos do Santos no caso Robinho, mostram que não dá mais para ser omisso em causas como essa”.

Os clubes precisarão ir além de postagens e notas de repúdio. O posicionamento precisará, cada vez mais, estar acompanhado de ações práticas. O investimento nas equipes femininas e a maior inclusão no esporte são alguns aspectos que podem ajudar a tirar os discursos contra o machismo, o racismo e a homofobia do papel.

Atletas como Richarlison, Ludmila e Rashford são exemplos de jovens jogadores ativos no combate às injustiças sociais. O caso de Rashford é notório. O atacante inglês do Manchester United tem questionado o parlamento britânico por melhores políticas públicas. O alcance de seu posicionamento já promoveu mudanças significativas na Inglaterra. Não à toa, o atleta foi condecorado com uma das mais importantes medalhas da coroa britânica pelo combate à fome. O posicionamento, em equipe, dos atletas do sub-20 do Corinthians em apoio a Mari Ferrer também é importante por indicar mobilização coletiva de jogadores jovens, que daqui a alguns anos serão os responsáveis pelo futebol brasileiro.

Manifestação dos atletas sub-20 do Corinthians (Imagem: Reprodução/Meu Timão)

Portanto, assim como ressaltam Roberto e Breiller, é preciso criar um ambiente acolhedor aos atletas engajados, pois eles são capazes de promover mudanças importantes em nossa sociedade. É importante que ninguém seja obrigado ou pressionado a se posicionar. Mas aqueles que o fizerem, devem ser elogiados, e assim cada vez mais jogadores sentirão segurança e confiança para questionar toda e qualquer injustiça.

A atitude dos jogadores de PSG e Istambul Basaksehir pode representar um avanço significativo nessa questão. Assim, o próximo passo rumo a um esporte mais engajado e participativo na construção social poderá ser dado. É necessário que cada vez mais atletas se posicionem, para provar que futebol e política se misturam sim, quer a CBF queira ou não. Caso contrário, futebol e política serão misturados somente quando os interesses populares não estiverem em questão. 

Foto de Jornalismo Júnior ECA-USP

Jornalismo Júnior ECA-USP

A Jornalismo Júnior é uma empresa júnior formada por alunos de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) que produz conteúdo que vai desde a área de esportes até o cinema, entretenimento e a ciência.
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