A história que todo mundo conhece da origem do futebol no Brasil é a que o paulista filho de um escocês e de uma brasileira Charles Miller voltou ao país ainda em 1894 com um livro de regras, bolas e chuteiras trazidos da Inglaterra, onde estava estudando.
Um ano depois, ele organizou a primeira partida da história brasileira no esporte entre funcionários da São Paulo Railway (SPR), empresa ferroviária, e da Gás Company, em 14 de abril 1895, vencida pela equipe de Miller por 4 a 2 na Várzea do Carmo, na região central.
O que pouca gente sabe é que esse jogo que foi o início do esporte mais popular do Brasil envolveu o Nacional Atlético Clube. Isso mesmo, o tradicional clube da zona oeste de São Paulo era aquele SPR de Charles Miller — a mudança de nome aconteceu em 1947 após a empresa se tornar estatal.
O Ferrinho, apelido dado ao histórico com os ferroviários, é um time centenário, já frequentou a elite do Campeonato Paulista e conquistou duas vezes a Copa São Paulo de Futebol Júnior, a Copinha, competição de maior tradição nas categorias de base do Brasil.
Também é conhecido por ter sido um celeiro de craques do futebol brasileiro, revelando nomes como Deco e Cafu*, e foi um dos fundadores da Federação Paulista de Futebol (FPF).
Agora, na cidade mais cara do país e presente na Barra Funda, um dos bairros com o maior custo de vida na capital paulista, o Naça busca utilizar todos os seus mais de 80 mil metros quadrados, onde fica o CT, o Estádio Nicolau Alayon e muito mais, para conseguir arrecadar e manter suas contas em dia, já que o futebol, em si, não dá mais tanto dinheiro assim.
Para entender a realidade e a sobrevivência do Nacional atualmente, a Trivela visitou o espaço do clube localizado na Marquês de São Vicente, de frente aos CTs de São Paulo e Palmeiras.
Se o futebol não gera receita, como o Nacional sobrevive em SP?
Nos últimos anos, o mercado do futebol se tornou extremamente inflacionado, o que torna a tarefa dos times menores arrecadarem cada vez mais complexa.
Para o Nacional, disputando a Série A4 do Paulistão e com uma dívida milionária, é um enorme desafio manter a roda girando, mas o clube buscou alternativas para explorar seu espaço e ser criativo na tentativa de gerar receita.
Com um espaço gigantesco próximo de uma área residencial, a ideia do Ferrinho foi realizar parceria com empresas para explorá-los com atividades esportivas ao invés do próprio clube arcar com isso pela presença de sócios.
Se no século passado os espaços poliesportivos eram uma febre e resultavam em muitos sócios (Nacional chegou a ter 40 mil nos anos 80), isso não acontece a partir dos anos 2000, quando os condomínios passam a contar com essas instalações.
— Os sócios de clubes estavam bastante acostumados a frequentar o local durante o verão, e passado esse período, deixavam de frequentar. Então o clube ficava sem receita para efetuar as suas melhorias nos locais — explicou o publicitário Ivan Mendes Reis, diretor de operações do Nacional, em entrevista exclusiva à Trivela.
Então, restou aos dirigentes cederem esses locais para que empresas forneçam infraestrutura, paguem o Naça e mantenham a área movimentada. Estima-se que cinco mil pessoas passem apenas aos finais de semana na sede do clube para alguma atividade.
Na visita da reportagem, acompanhado pelo advogado Tato Jacopetti, diretor do Ferrinho, percorremos os 80 mil metros quadrados, passando por toda essa estrutura que hoje garante a sobrevivência do clube.
O que abriga o espaço do Nacional na Barra Funda:
- 11 quadras de futebol society
- 11 quadras de beach sports
- 8 bares
- 3 campos de futebol
- 2 quadras de padel
- 1 ginásio
- 1 centro de ensio
- 1 estádio de futebol
O Alayon também é uma forma de ganhar mais dinheiro. O estádio não recebe apenas as partidas do Nacional, mas também jogos beneficentes e disputas de rúgbi.
— Com o tempo, a estratégia do clube em fechar essas parcerias estratégicas se mostrou acertada, investindo nas áreas do clube e entregando infraestrutura. Tudo isso faz com que o Nacional esteja conseguindo sobreviver — completou o diretor de operações.
Sobra ao futebol, então, ser bancado pelo social (e por empresários)
A gestão que conta com Jacopetti e Mendes e presidida por Ayrton Franco Santiago coloca como uma prioridade que esse dinheiro que vem do social seja bem dividido e não entre no futebol.
Porém, a realidade é que jogar a A4 ou torneios de base não garante a receita necessária ao clube fundador do futebol brasileiro. Então, mesmo não tendo participação significativa na geração das receitas, o departamento de futebol conta com ajuda do que é arrecadado com as parcerias na área do clube.
Além disso, parte do pouco que vem da Federação Paulista de Futebol (FPF) ao Ferrinho por conta das competições disputadas é penhorado por dívidas trabalhistas anteriores do clube.
Segundo a gestão, quando eles chegaram eram 18 processos trabalhistas. Hoje, só mais duas cotas serão comprometidas por esse passivo.
Mas o clube social não banca tudo e é aí que entra a parceria com empresários, que cedem jogadores ao Nacional como uma vitrine para que possam mostrar seu nível. Para 2025, eles querem que não seja uma parceria simples que possa ser rompida aos desmandos do agente.
— O que a gente vislumbra é que realmente precisa ter uma relação, uma troca que extrapola a situação do investimento no futebol e no investimento em jogador. Tem que ter um investimento na infraestrutura do futebol. Então deixar um departamento e um legado, é o que a gente está buscando hoje e tentando para 2025. E também que não seja tão atraente assim para o parceiro nos deixar no meio do caminho, mas pode acontecer também é um risco de qualquer forma — explica Jacopetti.
Essa quebra de continuidade com grupo de empresários foi, justamente, o que iniciou a derrocada do Nacional há cinco anos.
Dívidas e problemas com empresários: o que deu errado no futebol nos últimos anos
Os últimos anos foram cruéis com o Naça. Em 2018, a equipe ficou a um ponto da quarta colocação na Série A2 do Campeonato Paulista, posição que daria vaga para semifinal e deixaria a duas partidas do sonhado acesso à elite que não acontece desde 1959.
Naquele ano a parceria com um grupo de empresários estava a todo vapor, mas, para 2019, o vínculo foi finalizado e veio a queda para A3.
— O empresário coloca dinheiro e cede os jogadores até o momento que ele esteja confortável com isso. Então, parcerias que não deixam uma infraestrutura e um legado, são facéis de serem rompida. Tinha um grupo de empresários no Nacional que veio a sair e na sequência veio a situação da pandemia da Covid-19 que foi também muito caótica. Os jogos passaram a custar muito por conta dos testes para doença — aponta o diretor.
Após duas tentativas de acesso de volta à segunda divisão, houve outro descenso, em 2022, quando novamente agentes tiveram envolvidos no planejamento do Ferrinho e saíram no meio do caminho.
Tudo isso levou as dívidas na casa das dezenas de milhões de reais, que sufocam o orçamento e as rendas futuras.
Quando se fala de passivo no futebol brasileiro, virou realidade que a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) possa ser uma solução por receber investimento privado e novas soluções para renegociação de dívidas, mas isso não faz parte dos planos do Nacional por enquanto.
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Por que SAF não é a solução para o Nacional
A presença em uma quarta divisão estadual e a ausência de disputa de competições nacionais torna o valor do Nacional muito abaixo do mercado.
Para o diretor Tato Jacopetti, a ausência de competitividade faz com o que o clube nem seja uma empresa ou algo que possa dar lucro para algum investidor interessado. Por tudo isso, adotam cautela em relação à aderência da SAF, que precisaria ainda passar pelo conselho.
— O clube nesse primeiro momento tem uma política muito mais conservadora em aguardar quais vão ser os bons exemplos na SAF para que a gente possa seguir eles no momento oportuno. Até porque estamos na quarta divisão, a receita é muito baixa, o lucro é zero, então há dificuldade em ver que há um negócio. O Nacional precisa atingir um nível de competitividade. Não consigo nem ter um valuation. Não só precisa voltar para a A2, precisa vislumbrar subir para uma elite, para ter um faturamento e aí sim pensar num modelo como a SAF. Porque senão você está entregando uma história centenária a custo de nada — justifica.
Como o legado de Charles Miller ainda resiste no Nacional?
Está enganado quem pensa que aquele clube parte da ala esportiva da São Paulo Railway largou suas origens junto aos ferroviários.
A relação é exposta na presidência do clube. Por estatuto, apenas pessoas que trabalharam nas ferrovias podem ser presidentes e vice do Naça, casos do mandatário Ayrton Franco Santiago e o braço direito Edison Gallo, ambos nos cargos há cerca de 50 anos.
O pequeno grupo de conselheiros também são ferroviários aposentados ou ainda em atividade, alguns na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Inclusive, um dos projetos atuais do clube é que a estação de trem mais próxima da sede, a Água Branca, ganhe o nome do Nacional, como acontece com Corinthians (Itaquera), São Paulo (Morumbi) e Palmeiras (Barra Funda).
Outro projeto atual é a valorização da história centenária da equipe que já foi o time de Charles Miller com a abertura de um museu abaixo das arquibancadas do Alayon, expondo o arquivo que possuem.
— É uma catalogação que foi feita de maneira muito profissional em bastante tempo. E agora a nossa ideia é expor esse material dentro do Nicolau Alayon, nessa área embaixo do estádio. Então a nossa vontade é cada vez tratar melhor esse patrimônio aqui, e cada vez ter mais gente vindo aqui conhecer essa história — revelou o diretor de operações Ivan Mendes.
Dentro de campo, a aposta é ousada na Copinha
Além de Deco e Cafu, o ex-atacante Dodô (que frequenta o clube às vezes) e o campeão mundial Félix foram outros revelados pelo Naça. O histórico de formação é reforçado também por dois títulos da Copinha (1972 e 1988), além de um vice em 2005.
A competição segue valorizada pelo clube e a aposta é ousada para 2025: título. Jacopetti garante que o time buscará o tricampeonato adotando uma estratégia de trazer garotos mais velhos, no limite da idade permitida. A equipe está no grupo 32 ao lado de Canaã-DF, Vasco e XV de Piracicaba.
— Estamos tentando dar preferência para garotos nascidos em 2004 e 2005, que são os últimos anos, para ter um elenco forte. Os outros times normalmente são formados pelos mais novos, para ter mais visibilidade. Já o Nacional está indo pelo caminho oposto, teremos um time mais velho, cascudo, para tentar resultado. E consequentemente também isso ajuda a nossa preparação da própria A4 — disse Tato Jacopetti.
Para quarta divisão estadual, apenas o acesso importa. A competição promete competitividade pela presença de times tradionacionais como São Caetano e Paulista de Jundiai.
Para isso, o investimento virá, além de empresários (dessa vez com a tentativa de tornar a parceria mais longeva), do social e do que sobrar nas cotas da Federação após a penhora de parte dos valores pelas questões trabalhistas, por um patrocínio master da área de marketing esportivo tratado com otimismo pelos diretores.
— No departamento de futebol não tem como fugir, o objetivo é subir, não existe ficar no meio da tabela. Vamos investir para subir e o investimento do clube às vezes não é direto no futebol, mas, só o saneamento do passivo, já possibilita que parte da cota liberada [da Federação Paulista de Futebol] esteja disponível para a gente. Então isso é um investimento muito grande — explicou.
A gestão atual segue pelo menos até o próximo ano, quando acontecem eleições. Caso sejam reeleitos, seguirão mais três anos.
Já o Nacional segue sonhando com dias melhores, nos quais não precisará se preocupar com as dívidas que o sufocam e poderá recuperar o papel de um coadjuvante importante em São Paulo, algo que não acontece há muito tempo.
Fatos históricos do Nacional Atlético Clube:
- Fundação: 16 de fevereiro de 1919, ainda como São Paulo Railway Athletic Club (muda de nome em 1947)
- Títulos: 2 Copinhas (1972 e 1988) e Torneio Início Paulista (1943)
- Apelidos: Naça, Ferrinho
- Presidente: Ayrton Franco Santiago
- Estádio: Nicolau Alayon (também chamado de Comendador Souza)
- Jogadores importantes revelados: Deco (Porto, Barcelona, Chelsea e Fluminense), Cafu (São Paulo, seleção brasileira, Palmeiras, Milan e Roma), Dodô (São Paulo, Fluminense, Botafogo e Vasco), Félix (seleção brasileira, Fluminense, Juventus-SP e Portuguesa), Magrão (Sport, Athletico-PR, Fortaleza e Ceará), Paulo César (PSG, Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco) e muitos outros
*NOTA DA EDIÇÃO: No site oficial do Nacional-SP consta que Cafu foi revelado pelo clube. No entanto, não há registros oficiais de que ele tenha atuado pela equipe, nem nas categorias de base, nem no time principal. Antes de chegar ao São Paulo, Cafu passou pelo extinto Itaquaquecetuba AC.