Jogos dos estaduais dão prejuízo para os pequenos, e é por isso que eles querem mais
Toda discussão para reformar o calendário do futebol brasileiro começa e termina no mesmo lugar, como se fosse um círculo. Todos sabem que o elefante na sala são os campeonatos estaduais, grandes demais e interessantes de menos. O problema é que ninguém sabe o que fazer com eles. Muitos argumentam que eles deveriam ser menores, mesmo porque os clubes do interior também têm sofrido com públicos baixos (mesmo quando recebem os grandes) e o prejuízo de jogar os torneios. A Trivela resolveu conversar com alguns deles, e todos foram unânimes em dizer que não gostam dos estaduais como são. Eles querem é mais.
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Se para os grandes o problema é o calendário cheio demais, os torcedores do interior reclamam de não ter partidas o bastante para ir ao estádio ou ligar a televisão. A maioria desses clubes não chega a 20 partidas em uma temporada e encerra suas atividades antes das festas juninas. Na prática, existem para o grande público e para a imprensa apenas durante os primeiros meses do ano, antes de caírem no esquecimento. Isso também impossibilita qualquer projeto em longo prazo porque os contratos sempre têm que ser curtos, já que não se pode contar com as vagas na Série D, nem com as deficitárias competições que as federações inventam para o segundo semestre, ruins a ponto de não atraírem o interesse nem da torcida e nem dos próprios times, loucos por um torneio para disputar.
Esses buracos negros demagógicos não servem para arrecadar: não há bilheteria, visibilidade para patrocinador ou dinheiro de televisão.
O formato ideal (para eles)
No português claro, a fórmula do Campeonato Paulista, neste momento, é uma aberração. Para mantê-lo robusto e ao mesmo tempo cortar algumas datas, por causa da Copa do Mundo, Marco Polo Del Nero e seus amigos criaram quatro grupos com cinco times, mas eles não se enfrentam dentro da própria chave. Em 2014, o Penapolense se classificou com 19 pontos, menos que Corinthians (24), Audax (23), São Bernardo (23), Bragantino (23), Portuguesa (20) e Rio Claro (20). Sem nenhuma lógica. A FPF poderia muito bem usar uma roleta para definir os classificados.
A expectativa do presidente do São Bento, Fernando Martins, é que esse regulamento seja abandonado no ano que vem. Não foi ainda porque o Estatuto do Torcedor obriga que um formato seja repetido por pelo menos uma temporada. Segundo o dirigente, a ideia da Federação Paulista é reduzir o número de clubes. Ele apoia: quer 16 na primeira divisão. “Seria mais difícil ficar na elite e valorizaria a Série A2”, argumenta. A pegadinha? Teria que ser em turno e returno porque ele quer ter a certeza de que receberá todos os grandes no seu estádio para inchar os ganhos com bilheteria. “Quero jogar no Morumbi e em Sorocaba. Sei que o Campeonato Paulista é deficitário e seria difícil, mas recuperaria os clubes do interior”, explica.
Mais realista, Rodrigo Boaventura, o mandachuva do XV de Piracicaba, aceitaria de bom grado a fórmula anterior ao ano da Copa do Mundo, quando 20 clubes jogavam entre si, apenas em turno, e se classificavam os oito primeiros às quartas de final. Um torneio mais longo, com no mínimo 19 rodadas, e tempo suficiente para um time começar mal e se recuperar. Mas, para ele, na verdade, não importa tanto o formato do estadual. Ele quer que haja jogos ao longo de todo o ano. “Uma vez tive uma conversa com o Bom Senso FC. Começa regionalizado e depois vai afunilando, como se fosse a Champions League”, conta.
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Luciano Viana não reclama do tamanho do seu estadual, mas adoraria que ele fosse um pouquinho maior, com 20 clubes, que nem o de São Paulo. O problema é que ele preside o Americano, do Rio de Janeiro, um estado que já precisa de muito esforço para juntar 16 times com condições de disputar a primeira divisão e nem isso consegue direito. Metade dos participantes não venceu mais do que dois jogos em 11 rodadas. O Nova Iguaçu, nenhum deles. “Teria mais possibilidade de oxigenar não apenas a primeira divisão, mas a segunda também”, rebate. Atualmente, o Americano disputa a Segundona carioca, ao lado de outras tradicionais equipes do estado, como Goytacaz, Olaria e o America.
O Campeonato Mineiro tem uma fórmula que costuma ser aplaudida porque não espreme o torneio até tirar a sua última gota de suor. São apenas 11 rodadas na primeira fase, semifinal, final e acabou. Ótimo para Cruzeiro e Atlético Mineiro, que aproveitaram muito bem essa folga nas últimas temporadas e conquistaram os principais títulos disponíveis. Nem tanto para o Guarani de Divinópolis, lanterninha do torneio, que fica praticamente sem receita quando o estadual termina. Sem televisão, não tem, obviamente, cotas de transmissão, mas os patrocinadores também debandam. Como andorinhas, esperam o verão voltar para investir nos clubes pequenos porque não têm muito interesse em estampar suas marcas em camisas que nunca são vistas. “Talvez um campeonato com os times do interior no início e depois os outros se juntam. Ou talvez um Campeonato Mineiro como ele é hoje, com 11 jogos, e depois um torneio no segundo semestre com os clubes do interior”, exemplifica o vice-presidente do Guarani, Vinicius Morais. Porque, no segundo semestre, os clubes pequenos desaparecem.
O buraco negro
Faz dois anos que a Federação Mineira de Futebol não organiza a Taça Minas. A última edição foi em 2012, quase tão vazia quanto o grid da Fórmula 1 no último GP da Austrália. Apenas cinco equipes participaram. O número de interessados foi caindo a ponto de, ano passado, apenas dois clubes, segundo o vice do Guarani, terem manifestado vontade de disputar esse torneio deficitário que, para não dizer que leva a lugar nenhum, cede uma vaga na Copa do Brasil. Para os times pequenos, isso significa, geralmente, receber um grande e ser eliminado na primeira rodada. Essa bilheteria ajuda no orçamento, mas dificilmente resolve o problema.
No último mês de dezembro, a própria Federação Mineira assinou o seu atestado de incompetência. Falando em nome do departamento técnico de futebol da entidade, Jacson Alves da Silva admitiu que “a Taça não foi feita nos últimos anos porque ninguém queria participar dela”. Quando uma federação de futebol não consegue bolar uma competição minimamente interessante para clubes sedentos por, em um período em que eles literalmente não têm nada melhor para fazer, talvez seja a hora de tentar entender o que ela está fazendo de errado. O calendário de 2015 prevê o retorno da Taça Minas, apenas para os clubes das primeiras duas divisões, mas, segundo Jacson, ainda “tem que ser feita uma reunião entre os clubes para ver quem vai se candidatar”.
Os torneios que servem mais para encher linguiça do que para encher as arquibancadas não são muito melhores nos outros estados. Para o presidente do São Bento, Fernando Martins, a Copa Paulista é “totalmente deficitária” e seria melhor que não existisse no formato atual porque “só dá despesa”. Ano passado, ela teve 22 clubes divididos em três grupos. Depois quatro grupos de quatro equipes antes das semifinais (a Federação Paulista adora grupos). O Santo André foi campeão. “A Federação tem que se preparar melhor para ter um campeonato do interior com peso. Porque quando acaba o Campeonato Paulista, não tem mais nenhum interesse para o associado. Fica impossível manter a folha de pagamento”, afirma.
Atualizada às 11h56, 25 de março: o site da FPF não ignorou o jogo final da Copa Paulista e publicou várias matérias sobre o jogo. Elas não aparecem na listagem de notícias do torneio, mas podem ser encontradas nas páginas do Botafogo de Ribeirão e do Santo André no portal.
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Isso sempre será verdade. Por melhor que seja a organização de um torneio entre os clubes pequenos do estado, ele continuará sendo um torneio entre os clubes pequenos. Sem a presença dos grandes para puxar dinheiro de televisão, bilheteria e patrocínio, não dá para manter o mesmo investimento e as mesmas ambições. “Esses campeonatos servem como um laboratório para os clubes que tem jogadores estourando na base”, afirma Luciano Viana. Ele gostaria que a Copa Rio fosse mais regionalizada. Atualmente, pega os 12 melhores da Série A do estadual, os quatro primeiros da Série B, três da C e o atual campeão. Resultado: o Americano ficou sem vaga.
Mesmo a Série D no segundo semestre não é certeza de contas em dia. Rodrigo Boaventura afirma que a Série D “pode não ser viável financeiramente”, mesmo com a CBF pagando transporte e hospedagem. Depende dos patrocinadores. De qualquer forma, ele considera que seria excelente ter a oportunidade de subir de divisão e garantir o calendário do ano que vem. Por isso, não seria má ideia ampliar os torneios nacionais, com séries E e F, por exemplo, bastante regionalizadas. Porque sem jogos, pagar as contas requer uma contabilidade criativa.
Nem jogo salva
Em Campos dos Goytacazes, essa criatividade fez que o Americano faturasse ao ajudar os torcedores a pagarem menos por diversos serviços. O programa de sócio-torcedor tem parceria com o comércio da cidade, desconto em estabelecimentos que vão desde um circuito de kart a um curso de pilates. Sem falar em outros benefícios.
Desta forma, Luciano Viana diz pagar todos os seus funcionários em dia. O departamento de marketing ajuda, com a venda das placas de publicidade do estádio e o lançamento da terceira camisa. Porque, mesmo quando tem jogo para disputar, não dá para contar com a bilheteria. O Americano arrecadou R$ 7.250 contra o Duque de Caxias, o terceiro melhor valor da primeira rodada. Descontadas as despesas, embolsou R$ 84,68. Contra o America, a bilheteria foi quase igual, mas os gastos foram um pouquinho maiores. Resultado: prejuízo.
Rodrigo Boaventura dá o nome das fontes de dinheiro. Recebe R$ 2 milhões pelos direitos de transmissão do Campeonato Paulista, de R$ 300 a 400 mil por mês dos patrocinadores, “alto para um time do interior”, segundo ele, e de vez em quando entra a receita da venda de jogadores, como de Paulinho, que foi para o Flamengo, e Jonathan Cafu, negociado com a Ponte Preta (atualmente no São Paulo). Tem mil sócios no momento e espera chegar até dez mil. Com isso, também afirma pagar em dia o salário dos jogadores e mantém uma média salarial, independente da fase do time. Mas e a bilheteria? “Muito pouco, é até deficitária”, afirma.
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O XV de Piracicaba teve prejuízo em três dos cinco jogos que sediou no Campeonato Paulista deste ano. Não pegou nenhum dos grandes no seu estádio. Na primeira rodada, contra o Mogi Mirim, arrecadou R$ 86 mil e conseguiu um lucro de R$ 19 mil. Contra o Botafogo de Ribeirão Preto embolsou R$ 4 mil. Nas outras partidas teve que arcar com um prejuízo somado de R$ 20 mil. Contra o São Bento, o rombo foi de R$ 10 mil, curiosamente, o melhor público do time na temporada (5.963 pagantes). A 15ª rodada leva o Corinthians para Piracicaba para ajudar nessa conta.
Vinicius Morais afirma que termina o Campeonato Mineiro “zerado”, sem prejuízo nem lucro. Tem a menor folha salarial do torneio, o que se reflete na campanha, a pior, com nenhuma vitórias em nove rodadas. Poderia fazer loucuras para melhorar o time, mas não quer deixar dívidas. Fernando Martins segue a mesma filosofia no São Bento, o quarto do Grupo 2 do Paulistão, com sete empates em 11 partidas.. “Poderíamos ter um time mais competitivo? Poderíamos, mas não teríamos condições de honrar a folha de pagamento”, afirma, sublinhando uma lógica inquestionável.
Eles não ligam para a gente
A discussão sobre calendário sempre gira em torno do excesso de partidas dos grandes, que geralmente entram em campo mais de 70 vezes a cada 12 meses, uma média de quase seis jogos a cada 30 dias. Mas o outro lado da moeda vive o problema oposto. O XV de Piracicaba, segundo o seu presidente, disputa 17 partidas por temporada. Pouquíssimo. “Queria aumentar esse número de jogos e espaçá-los, talvez até diminuir um pouco o número de jogos dos times grandes. O que me incomoda é quando a imprensa fala que tem que acabar com o Campeonato Paulista. Isso acaba com os clubes do interior, só favorece os maiores”, afirma Boaventura.
O ideal é favorecer os dois. Porque um torneio regional forte também é interessante para os grandes reforçarem as suas próprias arrecadações e prepararem os times para os desafios mais difíceis. Tem que haver uma parceria. “Sugerimos uma vinculação na federação. Digamos que a cota de TV é de 10 para o Mineiro. Agora é 15, e cinco fica vinculado ao clube disputar o torneio no segundo semestre”, afirma Vinicius Morais, vice do Guarani de Divinópolis. “Quem tem força de negociação são os clubes grandes”.
Porque do jeito que está, e da forma como a discussão caminha, a tendência é os campeonatos estaduais serem cada vez mais favoráveis aos grandes. Isso é bom do ponto de vista dos grandes jogos. Haverá melhores pré-temporadas, jogos mais interessantes em abundância, partidas mais técnicas, e por isso muita gente defende a redução dos regionais. Mas como ficam os pequenos? “Os pequenos ficam sem nada”, responde Fernando Martins, presidente do São Bento. “Não dá para o clube do interior crescer porque toda a movimentação no calendário é feita pensando nos grandes. Não tem mais espaço para o campeonato regional. Ele está fadado a um dia ser extinto”, conclui.