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Fundado em plena ditadura, clube da várzea de São Paulo é símbolo de luta contra o racismo

Conheça o Grêmio Esportivo Black Power, do Ipiranga, que tem cores inspiradas no homônimo do Sul e é referência na resistência negra

No começo dos anos 1970, em plena Ditadura Militar, um grupo de amigos e familiares se inspirou em movimentos sociais norte-americanos da década anterior e usou o futebol para se juntar à luta contra o racismo e exaltar a cultura negra.

Com as cores do Grêmio Porto-alegrense, da Série A do Campeonato Brasileiro, o Grêmio Esportivo Black Power movimentou a várzea de São Paulo e até hoje é referência na valorização da identidade da população negra.

Fundado no fim de 1972 no bairro Ipiranga, Zona Sul de São Paulo, o GE Black Power passou a empoderar a comunidade negra da região e fez sucesso no futebol de várzea.

Em conversa com a Trivela, o Édson Aparecido Corrêa, conhecido como Branca, contou a história do clube, falou sobre a luta contra o racismo e comentou sobre a ligação com o Grêmio — a cor da camisa, uma parceria firmada com o clube e até os casos de racismo envolvendo torcedores do time gaúcho.

Branca recebeu a reportagem da Trivela no bar que funciona, hoje, como uma sede do Black Power. É lá, na Rua Vergueiro, que ficam alguns troféus — poucos, perto dos cerca de mil, segundo as contas de Branca, conquistados ao longo dos 52 anos de história do clube, muitas fotos na parede e os uniformes do clube.

— Era um time familiar. Tinha uma família muito grande e a gente se reunia sempre no fim do ano para poder fazer festejos de Natal, reveillón, e a gente fazia uns jogos também. Na época a gente tinha um time de futebol de salão, que era muito praticado na época.

— A gente jogava durante a semana, mas a coisa foi crescendo e no salão não cabe todo mundo. Aí em 1972, numa véspera de Natal, nos chamaram para jogar um futebol de campo. Juntou todo mundo e foi. A gente viu que deu liga. Tinha qualidade e gente — disse Branca à Trivela.

Time do Grêmio Black Power no começo dos anos 1970, ainda sem uniforme tricolor (Foto: Divulgação)
Time do Black Power no começo dos anos 1970, ainda sem uniforme tricolor. Assis, ídolo do Fluminense, é o quarto agachado (Foto: Divulgação)

Com familiares e amigos, surgiu o clube que viria a se chamar Grêmio Esportivo Black Power. Antes, no salão, o time teve os nomes Cartola e Águia Negra.

E a inspiração para o novo nome veio de fora do país. Apenas com jogadores negros, muitos deles com o cabelo black power, o time passou a fazer referência à luta dos norte-americanos no movimento por direitos civis. E a ideia do clube do Ipiranga era a mesma: resistir e lutar contra o racismo.

— Um dos nossos jogadores tinha o estudo adiantado, estudava engenharia numa faculdade, e viu em uma revista sobre o movimento.

Viu sobre o momento do hino quando fecharam o punho (durante os Jogos Olímpicos de 1968, os atletas Tommie Smith e John Carlos usaram uma luva preta e ergueram os punhos fechados para o alto durante a execução do hino dos EUA), falou sobre as questões de mandarem negros para a guerra, banheiros separados — disse Branca.

— Sofriam muito racismo lá e tinha o símbolo da mão fechada, do poder negro, e eles usavam o cabelo como a gente também usava. Lá chamavam de “black power“. Aí ficou Black Power.

Foi na hora, todo mundo aprovou e ficou. A gente quis mandar uma mensagem. Estávamos representando. Estamos aqui. O nome era forte, Black Power, para lutar, assim como irmãos americanos. Queria ser resistência – completou o presidente do clube.

Racismo e representatividade na várzea de São Paulo

Alguns jogadores faziam parte de movimentos sociais da época, mas Branca sempre gosta de enfatizar que o clube não tinha, institucionalmente, envolvimento partidário ou com movimentos políticos. Ainda assim, é claro, isso não impediu o Black Power de sofrer uma perseguição: a racista.

— Éramos todos negros, cabelo black power. Falavam “esses neguinhos”, “neguinho de canela fina”, “esses neguinhos são chatos”, uma série de coisas. E o racismo existe até hoje.

É velado no Brasil, mas é um dos piores. As pessoas não admitem que são racistas. Admite que é tudo, menos racista – relembrou Branca.

O Black Power, na verdade, teve alguns jogadores brancos ainda no começo da sua história. Mas não no time titular, que visava dar protagonismo aos negros.

Cerca de cinco anos mais tarde, o time passou a ter brancos. Mas uma coisa não mudava: todos tinham que defender a causa do GE Black Power.

— Se comungava a nossa filosofia, podia jogar. Branco, japonês, as portas estavam escancaradas. Lutávamos pela agremiação que a gente representava. Somos negros e queríamos representar os negros no Brasil – reforçou Branca.

Troféus e fotos históricas decoram o bar que funciona como sede do Black Power (Foto: Gabriel Rodrigues/Trivela)
Troféus e fotos históricas decoram o bar que funciona como sede do Black Power (Foto: Gabriel Rodrigues/Trivela)

A luta do clube e a qualidade do time fizeram o Black Power virar um sucesso futebol de várzea de São Paulo. Os jogos do “Black”, como o time também ficou conhecido, arrastavam pessoas do Ipiranga e também de outras regiões pela capital paulista.

O Black Power ajudou a revelar jogadores como Ruy Ramos, que fez sucesso no futebol do Japão, Robson Ponte, que atuou em clubes como Bayer Leverkusen e Wolfsburg, da Alemanha, e Urawa Reds, do Japão.

Assis, ídolo do Fluminense, também passou pelo Black Power ainda no começo da sua carreira.

— Modéstia à parte, nós fomos durante anos o dream team da várzea. Todo jogador negro queria jogar aqui com essa camisa. E os caras saíam da Zona Leste, do Centro, da Norte para assistir. Todo domingo no desafio do Galo era lotação. Se tava fraco, quando o Black chegava todo mundo queria ver. Sempre foi um grande time – disse Branca.

— Depois de muito tempo caiu a consciência. Alguns falavam: “vocês não sabem o quanto vocês nos representavam”, “a gente sentia parte de vocês”. A gente não sabia, a gente queria jogar futebol. Representar uma raça tão forte como nós fizemos foi importante. E a gente atuava em todas as áreas, sociais, temos projetos de escolinha, temos projetos para ajudar pessoas carentes, projeto para melhorar os estudos das pessoas, para as pessoas saberem os seus direitos.

Daqui saiu grupo de samba, escola de samba. Deixamos um bom legado para a comunidade e para o bairro do Ipiranga. É uma referência ao Black Power do Ipiranga – se emociona Branca ao falar do clube de 52 anos.

Black Power já com a camisa azul, preto e branco nos anos 1990 (Foto: Divulgação)
Black Power já com a camisa azul, preto e branco nos anos 1990 (Foto: Divulgação)

Ligação com o Grêmio e parceria com o clube gaúcho

Praticamente desde a sua fundação, o Grêmio Esportivo Black Power carrega as cores do Grêmio mais famoso do Brasil. Branca garante que o azul, preto e branco foram escolhidos antes de ver a camisa do clube gaúcho, mas citou o Tricolor como referência.

— Todo mundo gostava de azul. Branco porque nós somos de paz, e somos negros. Aí falaram “tem o Grêmio lá no Sul”. Fomos ver a camisa e achamos legal. “É igual essa que a gente quer”. E estamos até hoje com ela, 52 anos – afirmou Branca.

Mas essa coincidência entre as cores dos clubes acabou rendendo frutos ao clube do Ipiranga. Em 2023, o Grêmio assinou parceria com o Black Power para o desenvolvimento de projetos sociais e esportivos entre os clubes.

O termo de intenções prevê a possibilidade de jogadores do Black Power fazerem testes no time gaúcho, além do Grêmio, apoiar as escolinhas e projetos sociais do Black, que também deve participar de ações contra o racismo no Tricolor.

Em uma partida do Grêmio em São Paulo, em 2023, os jogadores entraram em campo com 11 crianças do Black Power.

Além disso, garotos do Black Power também participaram de um torneio organizado pelo Grêmio, em São Paulo, no dia da Consciência Negra. No ano anterior, o Tricolor gaúcho já havia homenageado o Black pelos 50 anos do time.

— Tivemos um contato recente. Fizeram uma matéria para um jornal, contando nossa história e teve uma boa visibilidade. O Guerra (Alberto Guerra, presidente do Grêmio) parece que viu e pediu o contato e começamos a montar a parceria. Na época fomos muito bem acolhidos. Roger, Mazarópi, o Guerra mesmo, pessoal do marketing – disse Branca.

Branca, presidente do Black Power, com Alberto Guerra, presidente do Grêmio (Foto: Eduardo Muniz/Grêmio FBPA)
Branca, presidente do Black Power, com Alberto Guerra, presidente do Grêmio (Foto: Eduardo Muniz/Grêmio FBPA)

A tragédia das enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul no primeiro semestre deste ano teria atrasado o desenvolvimento de mais projetos, mas o protocolo de intenções segue válido. A Trivela procurou o Grêmio para falar sobre a parceria, mas não obteve retorno até o momento.

 

Branca não escondeu um certo incômodo com casos de racismo que aconteceram envolvendo torcedores do Grêmio – como o caso Aranha, em 2014. O presidente do Black Power disse saber que se trata de uma minoria, mas ressaltou o prejuízo a imagem do clube.

— Acho que o Grêmio deveria fazer ações no meio da torcida para identificar isso. O Grêmio tem condições de junto a torcida monitorar isso. Prejudica a imagem do clube. Sei que o Grêmio aonde vai sempre falam “esses caras são racistas”. Uma minoria faz uma maioria perder. Sei que não é todo mundo. Aquela pessoa que faz está prejudicando a imagem de um clube muito grande, campeão mundial. O legado todo vai pelo ralo. Imagino como o torcedor do Grêmio que não é (racista) também sofre com isso. Mas não é só no sul. Vai jogar fora e todo mundo faz sinal de macaco – disse Branca.

Foto de Gabriel Rodrigues

Gabriel RodriguesSetorista

Jornalista formado pela UFF e com passagens, como repórter e editor, pelo LANCE!, Esporte News Mundo e Jogada10. Já trabalhou na cobertura de duas finais de Libertadores in loco. Na Trivela, é setorista do Vasco e do Botafogo.
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