Não há o que ser discutido: gramado tem que ser bom, natural ou artificial
Brasil tem histórico de descaso com campo de jogo. Atualmente, gramados servem como muletas para alguns e combustível de disputas de influenciadores digitais e analógicos.

Os analistas de dados que me desculpem, mas gramado é fundamental. O campo de jogo é determinante para a qualidade do espetáculo. Recentemente os gramados saltaram do ambiente de jogo para o tribunal de condenação das redes sociais e ganharam visibilidade que nunca tiveram.
Grandes times se estabeleceram e grandes jogos do futebol brasileiros foram disputados em gramados horrorosos, esburacados, com tufos de grama de várias espécies diferentes.
Hoje, justamente, o gramado está nos holofotes. O debate é algo contaminado por paixões, desculpas, interesses e ativismo digital. Caiu como uma luva para o gosto do que chamo de jornalismo de nicho digital – escancarado ou disfarçado. Existe uma produção de conteúdo dirigido de excelente qualidade no ambiente futebol. Assim como existe uma produção de conteúdo enviesado e de baixo nível.
Allianz Parque é centro e topo da discussão sobre gramados brasileiros
No topo da discussão aparece o gramado artificial do Allianz Parque. Muito mais citado que os gramados artificiais do Nilton Santos e da Ligga Arena, além de outros sintéticos de menos repercussão. Um fato é indiscutível: o atual gramado do Allianz Parque está horroroso. Em meio a uma disputa de guarda compartilhada entre Palmeiras e WTorre, quem sofre é o time – como filhos que sofrem com falta de acordo em disputas entre pais separados.
Há uma série de gramados naturais que estão frequentemente ruins pelo Brasil. Maracanã, Mineirão, Castelão, Arena do Grêmio, Arena MRV do Atlético-MG. Em determinados jogos, a bola não rola, pipoca, atletas escorregam, patinam, gols que não deveriam acontecer acontecem por mudanças absurdas de rumo dos chutes. Teoricamente, os gramados artificiais deveriam oferecer uma condição de jogo semelhante à dos naturais – quando analisamos superfícies boas nos dois casos.
Há jogadores que não se importam em jogar em gramados artificiais e há outros que reclamam muito. São eles os donos dos espetáculos, eles têm direito de argumentar. A demonização do sintético me parece precipitada. Assim como usar gramado ruim natural como muleta para atuação ruim. O mais recente clássico entre Palmeiras e Santos trouxe elementos dessas narrativas. Giuliano, que pelo que se sabe, foi poupado por desgaste, entrou no segundo tempo, foi substituído por dores e culpou o gramado do estádio palmeirense. Num Santos x Palmeiras de 2023, na Vila Belmiro, João Martins, auxiliar de Abel Ferreira que dirigiu o time palmeirense na ocasião, detonou o gramado santista após um empate sem gols.
Rivalidade entre São Paulo e Palmeiras jogou gasolina na fogueira da discussão
A crescente rivalidade entre São Paulo e Palmeiras jogou gasolina no depósito de combustível do debate. O Tricolor culpou diretamente o gramado alviverde por algumas lesões ligamentares. Mas houve lesões de ligamento de atletas são-paulinos ocorridas nos campos naturais do centro de treinamento do clube que não geraram repercussão por parte do clube. O próprio treinador do Palmeiras, Abel Ferreira, é um crítico do atual estado do gramado artificial do Allianz. Dentro desse debate é comum ver postagens em redes sociais de ativismo jornalístico/digital que repostam textos e comentam assim: “pois é”. Com esse nível de profundidade. Alguns ex-atletas que militam nesse ambiente de influenciadores resolvem emitir conceitos para agradar torcidas e fustigar a rivalidade entre clubes.
Gramados naturais sempre serão melhores que os artificiais para a prática do futebol. Mas entre um natural ruim e um artificial bom é preciso debater com argumentos. Afinal, a FIFA aprova há tempos os gramados artificiais e até torneios mundiais sob sua chancela adotam esse tipo de piso. Países com dificuldades no acesso à água ou questões climáticas deveras adotam o piso sintético há mais tempo que o Brasil. No Chile há campo sintético no Sul, onde chove muito, na região de Santiago e no Norte, onde não chove quase nunca.
Debate sobre grama sintética em estádios está bem além do Brasil
Em 2010 comentei as finais da Libertadores entre Internacional e Chivas Guadalajara. Primeiro jogo em Guadalajara, piso sintético em um estádio sensacional. Fui ao gramado durante o primeiro contato dos jogadores do Inter. Todos aprovaram e usaram chuteiras comuns de grama natural. O Inter venceu por 2 a 1 no México e por 3 a 2 no Beira-Rio.
Na Espanha, cerca de 80% dos jogos das categorias de base são disputados em campos sintéticos, assim como os treinamentos das equipes.
Na Holanda, um debate ganhou corpo e a partir de 2025 os times da primeira divisão serão obrigados a ter campos naturais. Times de outras divisões reclamaram e o assunto segue em discussão, porque o custo do gramado natural é mais elevado, segundo as agremiações com menos recursos.
O debate mais inflamado sobre os tipos de piso ocorre quando acontecem lesões graves. Estatisticamente, não há consenso sobre o impacto dos gramados sintéticos no aumento das lesões. Há estudos que dizem que sim, que a ocorrência é maior, e outros que dizem que é menor. As diferenças são percentualmente mínimas. Boa parte dos estudos toma como base o futebol americano, com dinâmicas de movimento muito diferentes das do nosso futebol.
Neymar sofreu uma grave lesão ligamentar num campo natural bom. Dudu sofreu uma grave lesão ligamentar num gramado sintético ruim. Apenas exemplos.
Há alguns anos o goleiro e treinador Émerson Leão lançou uma tese sobre chuteiras modernas serem responsáveis pelo aumento das lesões de ligamento no futebol. Segundo ele, as travas das chuteiras atuais não são redondas e dificultam o movimento de rotação dos pés dos atletas. Não conheço estudos sobre o tema. Além disso, jogadores ganham muito dinheiro para usar chuteiras e esse debate talvez não seja comercialmente interessante para eles.
A utilização de gramados sintéticos passa pela definição do equipamento. Um estádio como o do Palmeiras, moderno e projetado com dupla função, com alta rotatividade, talvez não se sustente com gramado natural. Curiosamente, o Palmeiras jogou no Morumbis por causa do estado de seu gramado sintético, e o São Paulo jogou no Allianz por causa do estado de seu campo natural após shows. O Corinthians tem um equipamento pouco utilizado fora do ambiente do futebol e geralmente conta com um gramado natural impecável na Neo Química Arena. O Maracanã, gerenciado por Flamengo e Fluminense, sofre com o estado do gramado natural porque alterna shows e muitos jogos. Assim como o Castelão e o Mineirão.
Estádios no estilo Arena, com cobertura, sofrem com a incidência solar irregular. Por isso utilizam técnicas de iluminação artificial nos gramados naturais. A Neo Química Arena, do Corinthians, tem cobertura parcial e um percentual de cerca de 15% de grama sintética entrelaçada aos fios naturais. Talvez seja por isso que o gramado resista bem, além de ser menos utilizado em jogos e quase nunca para shows.
Precisa haver uma discussão série e sem clubismo sobre gramados sintéticos: somos capazes?
Como estão na regra, os campos sintéticos precisam ser debatidos dentro de padrões. A cobrança tem que ser por qualidade dentro de parâmetros para naturais e sintéticos. As diferenças climáticas do Brasil são apontadas como dificuldades para que gramados naturais perfeitos estejam disponíveis 100% do tempo. Mas isso ocorre em países com dificuldades climáticas até maiores que as do Brasil. Vide Arábia Saudita.
Há soluções caríssimas como gramados retráteis, que são retirados do terreno de jogo para a realização de shows e depois recolocados por um sistema de rolagem. Para alguns estádios brasileiros faltaria dinheiro, para outros, espaço para adotar essa solução. Mas a tecnologia evolui. Na Euro de 2008, no grupo de Portugal e Alemanha, no estádio Saint Jakob-Park, em na Basiléia, houve muitas críticas ao estado do gramado. Para o duelo entre os times foi trazido um gramado natural novo da Holanda, em caminhões refrigerados. O campo foi instalado 24 horas antes do jogo, e deu conta.
Seria saudável que no Brasil uma comissão de atletas fosse ouvida nos casos dos gramados naturais e sintéticos. São deles as observações pertinentes sobre problemas encontrados em cada tipo de superfície. Especialistas técnicos em gramados naturais ou artificiais muitas vezes defendem os interesses comerciais de seus modelos e empresas e não têm a experiência de viver o jogo de futebol no ambiente competitivo de alto rendimento. Eles fornecem dados técnicos importantes e relevantes, mas não sofrem correndo pelo campo por 90 minutos sob condições diversas.
Se é preciso conviver com duas opções, que um parâmetro seja estabelecido dentro das regras da FIFA. Não deve ser a rivalidade clubística ou o duelo de influenciadores quem vá balizar a discussão. Além disso, é preciso que os jogadores e essa eventual comissão tenham poder de vetar gramados ruins, naturais ou artificiais. Curadora da qualidade do espetáculo, a CBF deveria canalizar mais recursos para que os gramados estejam à altura da importância de seus torneios nacionais.