Quando a dupla de zaga do Flamengo pulou o muro do vocalista da banda de rock The Smiths
Uma excursão do Flamengo ao Reino Unido colocou Rogério Lourenço e Gélson Baresi em uma trilha improvável

Março foi um mês agitado para o técnico Rogério Lourenço. Trabalho intenso e alguns aniversários na família — entre eles o dele próprio, que completou 54 anos no último dia 20) — adiaram essa entrevista algumas vezes. Mesmo assim, valeu esperar: no último domingo, ele atendeu gentilmente esta coluna, vestido com uma camisa da banda de rock britânica The Smiths, que fez muito sucesso nos anos 80. O figurino não foi à toa: era sobre isso mesmo que eu queria falar.
Os Smiths não são uma banda necessariamente conectada ao futebol. Fundado em Manchester, em 1982, o grupo se consolidou como um dos mais importantes do rock alternativo. Por aqui, influenciou gente como Renato Russo, líder da Legião Urbana. No quesito futebol, o guitarrista Johnny Marr é um torcedor ilustre do Manchester City, e a figura central da banda, o polêmico (pra dizer o mínimo) vocalista Morrissey, não costuma falar de esportes.
Esses dois mundos — Smiths e futebol — se uniram em 1994, quando a dupla de zaga do Flamengo aproveitou uma excursão ao Reino Unido para procurar a casa do vocalista de Morrissey e pular o muro em busca de uma foto. Era essa a história que eu precisava ouvir da boca de quem viveu.
Djalminha, o jogador roqueiro
uma parada que eu sou apaixonado é o fanatismo do Djalminha pela banda The Smiths pic.twitter.com/SFcuPNP1ZG
— Andrey Raychtock (@_andreyray) April 27, 2024
Em 1999, o craque Djalminha, do Deportivo La Coruña, deu uma entrevista ao jornal espanhol “La Voz de Galicia”. Falou de futebol, da vida doméstica e do nascimento iminente de seu terceiro filho. Mas se soltou realmente quando o papo enveredou pelo caminho da música.
A música também o interessa. Sua banda favorita são The Smiths, com toda certeza a melhor banda britânica dos anos 80. “O que Morrissey faz agora?”, pergunta. Se refere ao elegante vocalista da banda inglesa.
No ano passado, roubaram seu chalé em A Zapateira. “Levaram a televisão, o videocassete, várias coisas. Mas o que mais me doeu é que roubaram os discos dos Smiths.” Djalma tem vinis desse grupo que só estão ao alcance de colecionadores. “Há alguns anos, meus amigos foram à Inglaterra e estiveram na casa de Morrissey. Pularam o muro, mas não puderam vê-lo” conta com admiração
La Voz de Galicia, 20 de Maio de 1999
O que Djalminha não contou ao repórter é que esses dois amigos eram a dupla de zaga do Flamengo de 1994: Gélson Baresi e Rogério Lourenço.
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As aventuras na Inglaterra
“O Gelson Baresi nem sabia o que era The Smiths”, conta Rogério. “Ele foi mais como companhia mesmo”.
Se você é mais velho, deve lembrar de Rogério como zagueiro (principalmente de Flamengo e Cruzeiro, clubes com os quais é mais identificado). Se tem mais ou menos a minha idade, o nome evoca a carreira de treinador, em que disputou a Libertadores de 2010 pelo Flamengo e passou pelo Bahia antes de se mudar para a Arábia Saudita.
— Eu devia ter 13 para 14 anos quando comecei a comprar discos. Lá onde eu morava, em Irajá, tinha uma festa junina muito legal. Quando ela acabava, o responsável pela música, o DJ, colocava músicas pra tocar. Ele colocou The Smiths uma vez e bateu no meu ouvido. Eu falei ‘quem canta isso?’. Foi justamente 84, 85, que era o primeiro disco que tinha sido lançado no Brasil —
O amor pela banda colocou Rogério no caminho do rock, de onde ele nunca mais saiu. E influenciou outros companheiros de Flamengo.
“O Djalminha e todos eles conheceram através de mim. Eu levava eles pra minha casa Eu gosto muito de som. Quando estive em uma excursão com o Flamengo, em Nova Iorque, comprei uma aparelhagem de som da Pioneer. E tenho um amigo que me apresentou outras bandas — desde The Cure, A-Ha, até coisas mais alternativas, como Diesel Park West.”
O amor pelos Smiths deu uma certeza a Rogério: quando ele fosse ao Reino Unido em alguma excursão do Flamengo, tentaria procurar a casa do vocalista Morrissey. A oportunidade surgiu em 1994, na pausa do calendário para a Copa do Mundo, quando o Rubro-Negro foi convidado a fazer dois amistosos contra o Celtic.
Foram dois empates, um na Irlanda e um na Escócia. Depois do segundo jogo, o plano foi colocado em prática.
“A bebida é uma m****, né, cara? Naquela época eu ainda bebia, hoje não bebo mais. A gente tinha um dia de folga e eu calculei o tempo para ir de Glasgow até Manchester de trem. A gente estava no quarto bebendo cerveja, conversando, brincando e aí já eram 5, 6 horas da manhã. O primeiro trem saía às 8. Chamei o Gélson, que era um grande amigo meu, e ele disse ‘Não sei nem o que é isso, mas vamos’.
Há uma luz que nunca se apaga
A primeira etapa era chegar em Manchester. Em uma época pré-internet, a solução era ir perguntando e torcer pelo melhor.
“Chegamos na estação e perguntamos como chegar a Manchester. Aí alguém começou a falar uma palavra estranha e eu estava entendendo “Cristine”. Pedi para a pessoa escrever e ela escreveu Preston. Era a estação que precisávamos descer pra pegar o outro trem. Pegamos esse outro trem, de ressaca. Deu umas cinco ou seis horas pra chegar em Manchester.”
“Descemos no centro da cidade e começamos a perguntar aos taxistas com nosso inglês: ‘I want to go in the house of Morrissey’. Ninguém entendia nada. É como chegar no Rio e pedir pra ir na casa do Roberto Carlos. Até que chegou um taxista com a camisa dos Smiths e disse que ia nos levar lá. Ficamos desconfiados, mas ele botou uma fita dos Smiths no carro. Saímos da cidade, ele pegou uma estrada, depois outra e disse: É ali. E apontou para uma casa”.
“Chegamos lá e começamos a tocar a campainha, mas ninguém atendia. O muro era baixinho e eu falei pra gente pular. Aí eu consegui ver um piano pelo vidro”, conta Rogério, que teve que correr para comprar uma câmera descartável e registrar o momento.
“A gente abriu a caixa de correspondência e realmente haviam cartas endereçadas a Steven Patrick Morrissey. Pensei em pegar uma, mas achamos melhor não. Mas fotografamos as cartas”, diz ele.
O problema é que nenhuma dessas fotos ficou boa. Rogério garante que a culpa era do fotógrafo.
“O Gélson era o fotógrafo, e o problema é que ele estava completamente mamado. Ele continuou bebendo enquanto a gente andava. Só sobrou uma foto: a que eu tirei em frente ao Salford Lads Club, que aparece na contracapa do disco The Queen is Dead.”
A foto é o único registro da epopeia da dupla de zaga do Flamengo perdida na Inglaterra, em busca de um cantor de rock.