Brasil

Quando a dupla de zaga do Flamengo pulou o muro do vocalista da banda de rock The Smiths

Uma excursão do Flamengo ao Reino Unido colocou Rogério Lourenço e Gélson Baresi em uma trilha improvável

Março foi um mês agitado para o técnico Rogério Lourenço. Trabalho intenso e alguns aniversários na família — entre eles o dele próprio, que completou 54 anos no último dia 20) — adiaram essa entrevista algumas vezes. Mesmo assim, valeu esperar: no último domingo, ele atendeu gentilmente esta coluna, vestido com uma camisa da banda de rock britânica The Smiths, que fez muito sucesso nos anos 80. O figurino não foi à toa: era sobre isso mesmo que eu queria falar.

Os Smiths não são uma banda necessariamente conectada ao futebol. Fundado em Manchester, em 1982, o grupo se consolidou como um dos mais importantes do rock alternativo. Por aqui, influenciou gente como Renato Russo, líder da Legião Urbana. No quesito futebol, o guitarrista Johnny Marr é um torcedor ilustre do Manchester City, e a figura central da banda, o polêmico (pra dizer o mínimo) vocalista Morrissey, não costuma falar de esportes.

Esses dois mundos — Smiths e futebol — se uniram em 1994, quando a dupla de zaga do Flamengo aproveitou uma excursão ao Reino Unido para procurar a casa do vocalista de Morrissey e pular o muro em busca de uma foto. Era essa a história que eu precisava ouvir da boca de quem viveu.

Djalminha, o jogador roqueiro

Em 1999, o craque Djalminha, do Deportivo La Coruña, deu uma entrevista ao jornal espanhol “La Voz de Galicia”. Falou de futebol, da vida doméstica e do nascimento iminente de seu terceiro filho. Mas se soltou realmente quando o papo enveredou pelo caminho da música.

A música também o interessa. Sua banda favorita são The Smiths, com toda certeza a melhor banda britânica dos anos 80. “O que Morrissey faz agora?”, pergunta. Se refere ao elegante vocalista da banda inglesa. 

No ano passado, roubaram seu chalé em A Zapateira. “Levaram a televisão, o videocassete, várias coisas. Mas o que mais me doeu é que roubaram os discos dos Smiths.” Djalma tem vinis desse grupo que só estão ao alcance de colecionadores. “Há alguns anos, meus amigos foram à Inglaterra e estiveram na casa de Morrissey. Pularam o muro, mas não puderam vê-lo” conta com admiração

La Voz de Galicia, 20 de Maio de 1999

O que Djalminha não contou ao repórter é que esses dois amigos eram a dupla de zaga do Flamengo de 1994: Gélson Baresi e Rogério Lourenço.

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As aventuras na Inglaterra

O Gelson Baresi nem sabia o que era The Smiths”, conta Rogério. “Ele foi mais como companhia mesmo”.

Se você é mais velho, deve lembrar de Rogério como zagueiro (principalmente de Flamengo e Cruzeiro, clubes com os quais é mais identificado). Se tem mais ou menos a minha idade, o nome evoca a carreira de treinador, em que disputou a Libertadores de 2010 pelo Flamengo e passou pelo Bahia antes de se mudar para a Arábia Saudita.

— Eu devia ter 13 para 14 anos quando comecei a comprar discos. Lá onde eu morava, em Irajá, tinha uma festa junina muito legal. Quando ela acabava, o responsável pela música, o DJ, colocava músicas pra tocar. Ele colocou The Smiths uma vez e bateu no meu ouvido. Eu falei ‘quem canta isso?’. Foi justamente 84, 85, que era o primeiro disco que tinha sido lançado no Brasil —

O amor pela banda colocou Rogério no caminho do rock, de onde ele nunca mais saiu. E influenciou outros companheiros de Flamengo.

“O Djalminha e todos eles conheceram através de mim. Eu levava eles pra minha casa Eu gosto muito de som. Quando estive em uma excursão com o Flamengo, em Nova Iorque, comprei uma aparelhagem de som da Pioneer. E tenho um amigo que me apresentou outras bandas — desde The Cure, A-Ha, até coisas mais alternativas, como Diesel Park West.”

O amor pelos Smiths deu uma certeza a Rogério: quando ele fosse ao Reino Unido em alguma excursão do Flamengo, tentaria procurar a casa do vocalista Morrissey. A oportunidade surgiu em 1994, na pausa do calendário para a Copa do Mundo, quando o Rubro-Negro foi convidado a fazer dois amistosos contra o Celtic.

Foram dois empates, um na Irlanda e um na Escócia. Depois do segundo jogo, o plano foi colocado em prática.

“A bebida é uma m****, né, cara? Naquela época eu ainda bebia, hoje não bebo mais. A gente tinha um dia de folga e eu calculei o tempo para ir de Glasgow até Manchester de trem. A gente estava no quarto bebendo cerveja, conversando, brincando e aí já eram 5, 6 horas da manhã. O primeiro trem saía às 8. Chamei o Gélson, que era um grande amigo meu, e ele disse ‘Não sei nem o que é isso, mas vamos’.

Há uma luz que nunca se apaga

A primeira etapa era chegar em Manchester. Em uma época pré-internet, a solução era ir perguntando e torcer pelo melhor.

“Chegamos na estação e perguntamos como chegar a Manchester. Aí alguém começou a falar uma palavra estranha e eu estava entendendo “Cristine”. Pedi para a pessoa escrever e ela escreveu Preston. Era a estação que precisávamos descer pra pegar o outro trem. Pegamos esse outro trem, de ressaca. Deu umas cinco ou seis horas pra chegar em Manchester.”

“Descemos no centro da cidade e começamos a perguntar aos taxistas com nosso inglês: ‘I want to go in the house of Morrissey’. Ninguém entendia nada. É como chegar no Rio e pedir pra ir na casa do Roberto Carlos. Até que chegou um taxista com a camisa dos Smiths e disse que ia nos levar lá. Ficamos desconfiados, mas ele botou uma fita dos Smiths no carro. Saímos da cidade, ele pegou uma estrada, depois outra e disse: É ali. E apontou para uma casa”.

“Chegamos lá e começamos a tocar a campainha, mas ninguém atendia. O muro era baixinho e eu falei pra gente pular. Aí eu consegui ver um piano pelo vidro”, conta Rogério, que teve que correr para comprar uma câmera descartável e registrar o momento.

“A gente abriu a caixa de correspondência e realmente haviam cartas endereçadas a Steven Patrick Morrissey. Pensei em pegar uma, mas achamos melhor não. Mas fotografamos as cartas”, diz ele.

O problema é que nenhuma dessas fotos ficou boa. Rogério garante que a culpa era do fotógrafo.

“O Gélson era o fotógrafo, e o problema é que ele estava completamente mamado. Ele continuou bebendo enquanto a gente andava. Só sobrou uma foto: a que eu tirei em frente ao Salford Lads Club, que aparece na contracapa do disco The Queen is Dead.”

A foto é o único registro da epopeia da dupla de zaga do Flamengo perdida na Inglaterra, em busca de um cantor de rock.

Foto de Andrey Raychtock

Andrey RaychtockColaborador

Colunista da Trivela. Mais angustiado que um goleiro na hora do gol. Jornalista com passagens por Globo, Esporte Interativo (atual TNT Sports) e Cazé TV. Percorrendo os becos e vielas do futebol alternativo e dividindo o que encontrei.
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