Eixo FC: Rio e São Paulo comandam futebol nacional
Sete em cada 10 brasileiros torcem para grandes de Rio ou SP; entenda origens da supremacia dos times do eixo

Por Pedro Caruso
No último domingo (21), o Flamengo venceu o Corinthians, pelo Campeonato Brasileiro, no Maracanã, com todos os elementos de um autêntico Clássico dos Milhões: estádio lotado, gol nos acréscimos e herói improvável. Um dia antes, a vitória diante do Fluminense deu consistência ao Botafogo na briga pela liderança. A última vez que o Glorioso passou mais de duas rodadas no topo da tabela foi há 10 anos. Clarence Seedorf, Vitinho e cia chegaram a empolgar em 2013, mas o saldo final de um título estadual deixou gosto amargo para os botafoguenses naquele ano.
Hoje, o time de Luis Castro disputa a liderança ponto a ponto com o Palmeiras. Ano passado, Flamengo e Corinthians decidiam a Copa do Brasil. Em 2021, rubro-negros e alviverdes mediram forças na decisão da Libertadores. Também disputaram, ponto a ponto, pelo menos 3 dos últimos 7 títulos brasileiros. Paulistas e cariocas dominam o cenário do futebol brasileiro. Mas o protagonismo da dupla vai para além do esporte: um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que São Paulo e Rio de Janeiro movimentaram, sozinhos, 41,2% do PIB nacional em 2020. O cenário de destaque na economia e no futebol, no entanto, não é novidade: a dupla de estados concentra os holofotes do país desde o início do século XX.
As duas capitais abrigam, juntas, sete dos doze principais clubes brasileiros. Além do Santos, que fica a 85km da Grande São Paulo. São 140 milhões de torcedores envolvidos com o que acontece esportivamente nessas três cidades. Este é um levantamento inédito, de 2023, do instituto AtlasIntel.
O Brasil teve 66 campeões nacionais ao longo da história. Em 49 oportunidades, as taças tiveram como destino essas capitais ou a baixada santista. Uma supremacia absoluta que, inclusive, passou a ganhar conotações conspiratórias ao longo do tempo. A expressão “times do eixo”, largamente utilizada como referência pejorativa aos clubes de Rio e São Paulo, nasceu a partir de uma teoria controversa.
Existe uma crença, sobretudo em regiões de fora desse eixo, de que a imprensa, sobretudo as emissoras de televisão, através das imagens, tenham desempenhado papel determinante na consolidação destes clubes como populares no cenário nacional, nos primórdios do futebol. E que a partir desta suposta preferência da mídia, estas agremiações tenham construído seus impérios de torcedores.
Entretanto, a versão mais lógica por trás desta supremacia sugere alguns importantes questionamentos. O primeiro diz respeito a cronologia: porque como poderia a imprensa ter influenciado na preferência popular, se o primeiro jogo transmitido com imagens no Brasil aconteceu somente em 1955? A essa altura, os principais clubes nacionais já tinham, pelo menos, 40 anos de existência.
O que levou paulistas e cariocas a despontarem no cenário esportivo nacional?

Para entender as raízes desta supremacia, é preciso voltar ao contexto brasileiro do início do século XX. Na época, o café havia se tornado a principal fonte de renda do Estado Imperial nacional, superando a produção açucareira. Em alta nos Estados Unidos e na Europa, a iguaria, largamente exportada pelo Brasil, se tornou o principal esteio da economia.
78% da produção nacional de café concentrava-se no Vale do Paraíba, localidade que abrange cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. Com mão de obra escrava, a região era super explorada pelos barões. As terras, férteis e virgens, eram consideradas um paraíso para a cafeicultura. Além do clima perfeito.
Este achado geográfico, aliado ao aumento da demanda por café no mundo, renderam, naturalmente, muito dinheiro a dupla de estados. O acúmulo de capital gerado pelo café acelerou o processo de urbanização de cariocas e paulistas. E como num efeito cascata, as regiões também ganharam subsídios para iniciarem o processo de industrialização e criaram condições para o desenvolvimento do sistema bancário.
A ascensão da economia coincidia com o surgimento dos principais clubes “do eixo”. Sete das oito principais agremiações foram fundadas no curto intervalo de 1895 a 1912, época de ouro do café no Brasil. O cenário de otimismo e avanço da indústria, influenciava, em maiores e menores níveis, o desenvolvimento e a profissionalização desses clubes.
Realidade que não se estendeu a outras regiões do país. O volume de café que se produzia no Vale do Paraíba, fruto de exploração humana, era muito grande pelo poder das terras e pela força de trabalho. Outras regiões do Brasil não tinham a mesma lucratividade do eixo Rio-São Paulo e, naturalmente, não tinham condições de investir no fomento de um esporte que, inclusive, tinha sua profissionalização desaconselhada pela principal entidade esportiva da época.
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Queda de braço

No processo de profissionalização do futebol no Brasil, o torneio Rio-São Paulo nasceu como resultado de um conflito ideológico entre a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atual CBF) e representantes de clubes paulistas e cariocas.
De um lado, a entidade máxima do futebol da época defendia a manutenção de uma veia amadora na prática do esporte no Brasil. Os amadoristas, como eram chamados, acreditavam que o futebol deveria ser praticado apenas por amor, como hobby, para o deleite do praticante, uma vez que o dinheiro corromperia este sentimento genuíno. Para garantir este amadorismo, inclusive, eram realizadas verdadeiras inspeções nas vidas pessoais dos atletas amadores. O objetivo era atestar que os jogadores tinham outra profissão e não teriam, por isso, a necessidade de monetizar suas funções em campo para sustentarem-se.
De outro lado, a Associação Paulista de Desportos Atléticos e a Liga Carioca de Futebol defendiam a profissionalização do esporte, sobretudo para que os atletas passassem a ser remunerados. O espírito empreendedor escalava no Rio de Janeiro e em São Paulo a partir da ascensão do café. E impactava em um novo modelo de gestão esportiva. Cidadãos de Rio e São Paulo ficaram imersos em uma cultura mercadológica. Acreditava-se, ainda, que o fato das equipes atuarem com jogadores profissionais elevaria o nível técnico das partidas. E isso, consequentemente, atrairia mais dinheiro. O futebol viraria um negócio.
Entre diversas quedas de braço e intensas disputas políticas, o torneio só foi alcançar alguma estabilidade em 1950. Nascia, também, uma intensa disputa entre cariocas e paulistas pelo protagonismo do futebol nacional. O Torneio Rio São Paulo teve 28 edições, com 18 títulos paulistas e 10 cariocas. Disputada pela última vez em 2002, a competição deixou saudades.
“Tem que voltar. Tem que voltar porque é um mérito para torcedores, para a imprensa, para as pessoas que gostam de futebol. Hoje, se você pegar o apanhado do futebol da América do Sul, o Brasil está em primeiro disparado. E quem está a frente do futebol no Brasil são cariocas e paulistas. Estaríamos falando de uma competição de alto valor comercial, com audiência nas alturas e jogos de altíssimo nível, envolvendo os principais times brasileiros”, defendeu o jornalista Ronaldo Cezar Chaves.
Flamengo e Palmeiras se destacam administrativamente

Se o torneio voltará ao calendário do futebol brasileiro, é uma incógnita. Mas o fato é que cariocas e paulistas encontraram outras maneiras de manter a rivalidade viva. Isso porque os clubes do eixo têm monopolizado conquistas e protagonizado momentos marcantes no cenário esportivo internacional nos últimos anos. Das últimas dez edições do Campeonato Brasileiro, oito foram vencidas por clubes desses estados. Das últimas cinco Libertadores da América, Flamengo e Palmeiras venceram quatro.
O protagonismo de Rio e São Paulo na história recente do futebol deve-se, substancialmente, ao sucesso individual das administrações de Palmeiras e Flamengo, que concentram, atualmente, grande parte da receita do futebol brasileiro. Entre 2019 e 2022, o clube carioca teve receitas brutas de R$ 3,878 bilhões, ante R$ 3,001 bilhões do alviverde. Juntos, os dois clubes gastaram quase R$ 5 bilhões em aquisição de direitos federativos de atletas nos últimos quatro anos.
Essa realidade, no entanto, não se estende aos rivais estaduais. Vasco e Botafogo recorreram a implementação da Sociedade Anônima de Futebol, a SAF, como uma tentativa de aumentar o investimento no futebol e interromper um ciclo amargo de dívidas, derrotas e frustrações.
Santos e São Paulo também têm passado frequentemente por situações incômodas, com jejum de títulos, dificuldades financeiras e flertes com o rebaixamento. Corinthians e Fluminense não vivem uma estabilidade plena, mas tiveram lampejos nos últimos anos.
Apesar de monopolizarem os principais títulos recentes e concentrarem grande parte do capital nos últimos anos, é improvável, no entanto, que Flamengo e Palmeiras estabeleçam algum tipo de dinastia definitiva. Isso porque a dinâmica do futebol brasileiro permite a ascensão repentina de clubes médios e a recuperação – fiscal, financeira e esportiva – de agremiações tradicionais, ainda que se leve anos.
“Em um médio prazo, acredito que não corremos o risco de sofrer um processo de espanholização no futebol brasileiro, como muitos chegaram a temer. Ao contrário de países como Itália, França, Alemanha, e a própria Espanha, o Brasil tem pelo menos 12 clubes que são muito grandes. E por mais que a grande maioria viva crises financeiras, sempre existe a chance de se recuperarem. O Flamengo é a maior prova disso. Saiu da maior dívida para a maior arrecadação do país. Imagina quando todos entenderem a importância de se profissionalizarem”, analisou Levi Marques, especialista em gestão esportiva.
Retomada carioca?

Se nas últimas duas décadas o domínio foi absolutamente paulista dentro de campo, em 2023 o Rio voltou a dar sinais de recuperação, ao menos pelo que foi apresentado no primeiro semestre da temporada. A regularidade de Luis Castro, o brilhantismo de Fernando Diniz e a intensidade de Jorge Sampaoli colocaram Botafogo, Fluminense e Flamengo, respectivamente, no centro do debate esportivo nacional. As equipes ocupam três das seis vagas do G-6.
Após ter virado uma rotina carioca, com descensos recentes de Vasco e Botafogo, a zona de rebaixamento hoje é uma realidade do Corinthians. E era uma iminência para o São Paulo, não fosse a chegada providencial – e nada planejada – de Dorival Júnior, e também para o Santos.
Os dois artilheiros e principais atacantes do futebol brasileiro na atualidade também jogam no Rio: German Cano e Pedro somam 46 gols juntos, 20 a mais do que o time inteiro do Corinthians no ano.
Nos confrontos diretos que aconteceram até aqui na atual edição do Campeonato Brasileiro, vantagem também para os cariocas: três vitórias, contra duas dos paulistas e um empate.
Crise em São Paulo

O Palmeiras de Abel Ferreira, hoje, é uma exceção à regra de um futebol paulista enfraquecido, pragmático e mal gerido. Os presidentes Duilio Alves e Andres Rueda, de Corinthians e Santos respectivamente, são constantemente ofendidos pelas torcidas em reivindicações acaloradas nos estádios.
Ex-executivo de futebol da gestão de Rueda, o ídolo santista Edu Dracena deixou o clube no mês passado em meio a rusgas com o mandatário. Ele alegou má gestão e falta de transparência ao sair do cargo. O Santos preocupa sua torcida há pelo menos um ano e meio.
“Não entende nada de futebol e sente raiva de quem entende”, disparou contra o ex-chefe.
Em abril, chamou a atenção o imbróglio criado por Duilio Monteiro na busca pelo novo técnico do Corinthians, após demissão de Fernando Lázaro. O controverso presidente contratou Cuca, acusado de estupro na Suíça há 35 anos. A torcida do Timão reagiu fortemente contra a permanência do paranaense, que só durou dois jogos no cargo. Para o jogo contra o Palmeiras, no Allianz Parque, pela terceira rodada do Brasileiro, não tinha técnico. A direção escalou Danilo, ex-jogador do clube e atual comandante do sub-20, para dirigir a equipe no clássico.
Fernando Lázaro, demitido do cargo do time principal há poucos dias, até estava à disposição. Ele foi mantido na comissão técnica permanente do clube, mas não teve seu nome cogitado para comandar o time no dérbi para evitar desgaste com a torcida. Alguns dias depois, o clube anunciou a contratação de Vanderlei Luxemburgo, que não trabalhava há dois anos, desde que deixou o Cruzeiro, em 2021.
No CT da Barra Funda a situação é razoavelmente mais amena. Ainda que sofra críticas recorrentes pela condução do futebol no clube, o presidente Julio Casares conseguiu reduzir a dívida do São Paulo em R$ 23 milhões nos primeiros meses deste ano. A redução da dívida bancária era uma prioridade da gestão. O montante devido chegava perto da casa dos R$ 700 milhões.
Hoje, comandado pelo técnico Dorival Júnior, atual campeão da Copa do Brasil e da Libertadores pelo Flamengo, o time parece viver dias mais tranquilos, passada a turbulência causada pelo trabalho de Rogério Ceni. Após 18 meses no cargo, o ídolo são-paulino não emplacou suas ideias: foram 106 jogos, com 49 vitórias, 28 empates e 29 derrotas. Aproveitamento pouco acima de 54%. O trabalho terminou com 156 gols marcados, 107 gols sofridos e nenhum título.
A SAF é o caminho?

Encarada como a solução dos problemas para alguns, a SAF ainda não ganhou adeptos entre os grandes clubes de São Paulo. O próprio presidente Julio Casares chegou a admitir, em janeiro, uma consultoria da Alvarez & Marsal para uma “implementação planejada” no São Paulo, mas as conversas não avançaram.
A experiência vascaína com a americana 777 Partners serve, no entanto, para ligar um sinal de alerta quanto a larga utilização desse modelo de negócio no futebol nacional. Geralmente executadas em momentos de desespero, buscando soluções rápidas, as negociações podem representar frustrações para clubes e torcedores, caso não sejam bem conduzidas.
Uma percepção preliminar indica que a venda de 70% do futebol cruzmaltino foi exagerada. Homem de negócios, o presidente Jorge Salgado talvez tenha se deslumbrado com os números propostos pela empresa americana, sem ter avaliado as minúcias práticas do contrato e os contextos que os aportes financeiros prometidos aconteceriam. E se de fato seriam interessantes para o momento, as urgências e as exatas carências do clube.
Novamente na zona de rebaixamento do Campeonato Brasileiro e com sérias lacunas no elenco, o Vasco precisaria se reforçar de forma contundente na próxima janela de transferências, em julho, para acalmar os ânimos de uma torcida já ferida com quatro rebaixamentos. Mas não é o que deve acontecer. Afinal, o segundo aporte da empresa americana, de R$ 190 milhões, está previsto para setembro, um mês depois do fechamento da janela.
O Botafogo, por outro lado, colhe frutos de uma transição mais cautelosa: o processo de implementação da SAF levou, ao todo, quase dois anos, entre debates, aprovação do Conselho Deliberativo, prospecção e assinatura do contrato com o bilionário John Textor. O Vasco discutiu a possibilidade e resolveu todos os trâmites em alguns meses.
O resultado da diferença entre os dois processos é escancarado pela tabela de classificação do Campeonato Brasileiro. Essa realidade parcial, evidentemente, está longe de ser um termômetro definitivo quanto a sucesso ou fracasso dos modelos, mas a verdade é que, hoje, a torcida do Botafogo consegue vislumbrar um futuro vitorioso mais facilmente do que a torcida cruzmaltina.