Ex-árbitro e preparador físico do Corinthians atua como cambista e vende ingressos destinado a autistas
Reportagem da Trivela fez o caminho da compra e registrou a atuação de Bruno Gouveia na venda ilegal de entradas destinadas a cadastro de pessoas atípicas
Em meio a alta demanda por ingressos para a final do Campeonato Paulista entre Corinthians e Palmeiras, vencida pelo Timão na última quinta-feira (27), até mesmo entradas destinadas ao público autista foram comercializadas de maneira irregular. Antes mesmo das vendas serem abertas, diversas ofertas circulavam em redes sociais, incluindo em setores reservados a Pessoas com Deficiência (PCDs) e Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Ao ter acesso a algumas dessas divulgações, a Trivela chegou até Bruno Cezar Pedroso de Gouveia. Responsável legal por uma criança autista, ele pratica cambismo com os ingressos de acompanhante que retira por meio do sistema de sócios-torcedores do Timão destinado a pessoas TEA.
Através das redes sociais, Bruno Gouveia oferece ingressos entre R$ 800,00 e R$ 850,00, quantias superiores ao dobro do preço da compra.
Ao público autista, o Corinthians disponibiliza a retirada de um ingresso com gratuidade e outros três, destinados a acompanhantes, a preço de meia-entrada no setor Oeste Superior, que possui local específico com monitoramento infantil e isolamento acústico para pessoas atípicas que possuem sensibilidade sensorial. No clássico contra o Palmeiras, pela final do Paulistão, a meia-entrada para o setor custava R$ 350,00.
De acordo com o artigo 166 da Lei Geral do Esporte (14.597/2023), “vender ou portar para venda ingressos de evento esportivo por preço superior ao estampado no bilhete” é crime e configura pena de reclusão de um a dois anos e multa.
Inicialmente, Bruno Gouveia confirmou a comercialização irregular de dois ingressos no setor Oeste Superior – destinado ao público autista e acompanhantes. Havia variação de preço conforme a quantidade da compra.
- R$ 800,00 era o valor para um ingresso;
- R$ 1.300,00 o valor para dois ingressos.
Na troca de mensagens foi passado o portão B, ao lado da escadaria de mármore da Neo Química Arena, como ponto de encontro.
Questionado sobre a necessidade de passar o nome das pessoas que comprariam os ingressos, Bruno respondeu não haver necessidade, pois a entrada ao estádio seria com ele e o filho.
De acordo com relatos de fontes que possuem familiares autistas registrados no programa específico ao grupo no Fiel Torcedor, geralmente há uma lista com nomes dos acompanhantes que é conferida ao entrar no estádio.
Em um segundo momento, a Trivela conversou com Bruno através de chamada de voz, ainda se passando por um suposto interessado em comprar os ingressos vendidos por ele de forma ilegal.
Na ocasião, Bruno afirmou que, diferentemente do que havia sido informado no contato inicial, só teria uma entrada disponível para comercialização. O cambista reforçou que o bilhete vendido era direcionado ao ambiente específico para autistas, no setor Oeste Superior, e que a entrada seria através do portão 911 da Neo Química Arena.
– O meu filho também é autista. Ele tem cinco anos e vai em todo jogo comigo. Porque o setor que tenho ingresso é específico para os autistas, porque se o seu filho tiver problema com barulho, essas coisas, lá tem uma sala com abafador ou ele pode assistir ao jogo dentro dessa sala, que abafa todo o barulho do estádio. Ou ele pode ficar na arquibancada, que é uma parte específica só para autistas, que é mais tranquilo, não tem pessoal fumando, é bem suave. Que é o setor Oeste Superior, que é destinado para o público autista, na entrada 911. Nessa parte você não encontra problema algum porque é totalmente à parte da torcida organizada, fica na entrada dos camarotes, é um pessoal mais elitizado que frequenta essa área – disse o cambista à reportagem.
Questionado sobre a apresentação de documentos na entrada ao estádio, Bruno afirmou que só seria necessário para o filho, que é a pessoa supostamente cadastrada. Já os acompanhantes ingressariam ao local da partida sem a necessidade de identificação.
– O único documento que tem que ser apresentado é do meu filho, na entrada, porque o cadastro é dele. Os outros três são acompanhantes. Ou seja, um ingresso é do meu filho, o outro é meu, o outro estou passando para a minha namorada e sobrou um, que é esse que estou comercializando – afirmou Bruno.
A Trivela, porém, apurou que o nome do filho do cambista, que é quem possui o espectro autista, não consta na lista de beneficiários. Por outro lado, há o registro de Bruno Cezar Pedroso de Gouveia no cadastro de sócios-torcedores TEA.
Por fim, Bruno se colocou à disposição de encontrar outro ingresso de forma irregular, mas por preço ainda superior. Ele afirmou que veria com “cambistas mesmo” em grupos dos quais faz parte.
– O que eu posso ver em outros grupos, que o pessoal vende ingressos, é arrumar outra coisa e te passar. Não sei se vou conseguir fazer no mesmo valor, porque aí é ingresso de outras pessoas, de cambista mesmo. Vai depender do que eles estão pedindo. São cambistas que eu conheço, que quando não consigo comprar ingressos, compro diretamente com eles. Aí você me fala se tem interesse e eu vejo o valor que eles estão pedindo para esse setor – disse Bruno Gouveia.
A conversa completa pode ser escutada na íntegra abaixo.
A reportagem entrou em contato com Bruno e o questionou sobre a prática do cambismo através de ingressos destinados ao público autista e acompanhantes. Em resposta, ele afirmou não ser cambista, que tem direito a quatro ingressos e “faz o que bem entender com eles”. Também disse que, por conta do horário, o irmão não poderia ir ao jogo e, por isso, o bilhete em questão foi repassado.
– Que legal, mas sinto lhe informar que eu não sou cambista. Tenho o direito de comprar quatro ingressos. Daí em diante, faço o que bem entender com eles. Meu filho TEA vai para o jogo e posso levar mais dois acompanhantes. Se você entende isso como cambismo, sinto lhe dizer que o próprio Corinthians libera três ingressos para acompanhantes e um TEA. E estou repassando apenas um ingresso, pois, por conta do horário, o meu irmão não poderá ir. De resto, é isso – disse.
Porém, diferentemente do que foi citado por Bruno, ele não está autorizado a fazer o que bem entender com os ingressos com desconto para acompanhantes em jogos do Corinthians na Neo Química Arena. Por se tratar de um benefício, a comercialização de forma paralela é proibida, ainda mais pelo valor superior a venda destinada pelo clube.
Conforme mencionado anteriormente, esse tipo de atitude é crime previsto no artigo 166 da Lei Geral do Esporte, com pena de reclusão de um a dois anos e multa.
Fontes escutadas pela reportagem e que optaram por preservar a identidade afirmaram que a prática de Bruno em vender ingressos a quantias maiores do que a comercialização do clube é recorrente e que diferentes modus operandi já foram utilizados.
Foram relatadas práticas como a venda de ingressos de acompanhantes de outros autistas cadastrados e até mesmo a comercialização maior do que a quantidade permitida, em um momento onde a fiscalização não era adequada. De toda forma, foi registrado que nas últimas partidas o profissional responsável pela catraca de acesso ao setor TEA foi modificado, o que aumentou o rigor na observação dos documentos antes da entrada ao estádio.
Cambista foi árbitro da FPF e também já prestou serviços ao Corinthians
Formado na turma de 2005 da Federação Paulista de Futebol (FPF), Bruno Cezar Pedroso Gouveia atuou como assistente e quarto árbitro. O nome dele consta na súmula de algumas partidas que ainda estão disponíveis de forma virtual, a maioria delas válidas por divisões de acesso do Estadual. O registro mais recente de Bruno envolvendo a FPF é a presença na lista de aprovados na avaliação teórica habilitadora em 2020.
A reportagem apurou também que Bruno prestou serviços de preparação física ao Corinthians como Pessoa Jurídica (PJ) entre 2011 e 2017. No entanto, não foi levantada relação alguma do cambista com a atual administração do clube alvinegro.
Em setembro de 2019, durante a celebração do “Dia do Profissional de Educação Física”, Bruno foi um dos profissionais homenageados pelo Conselho Regional de Educação Física. Em sessão realizada na Câmara Municipal de São Paulo, ele recebeu a Medalha da Educação Física CREF4/SP.
Atualmente, Bruno Cezar Pedroso de Gouveia atua como consultor em nutrição e performance esportiva.
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Líder de movimento autista classifica valor comercializado como abusivo e lamenta episódio
A Trivela entrou em contato com Rafael Lopes, presidente do movimento “Autistas Alvinegros”, que Bruno, durante a ligação, mencionou ser integrante. Decepcionado com a denúncia de cambismo através de ingressos destinados ao público autista, Rafael considerou abusivo o valor ofertado por Bruno Gouveia.
– Com certeza, é um valor muito abusivo. Ainda se tratando de um benefício. Isso é um benefício, porque se você for em qualquer estádio Brasil afora, o TEA paga e o acompanhante nem se fala, o valor é muito mais alto. A gente vai chegar ao ponto, infelizmente, de ir atrás, fazer uma busca minuciosa para denunciar essas pessoas – disse Rafael
O líder dos “Autistas Alvinegros” repudiou a prática, deixou claro que há uma dificuldade em saber se integrantes do grupo praticam a venda ilegal de ingressos e dissociou a ação isolada de Bruno do grupo, que busca a inclusão social para quem é TEA. Ele também ressaltou que a modalidade de venda para pessoas atípicas e os seus acompanhantes é um benefício fornecido pelo Corinthians promovendo o acesso a famílias que possuem pessoas com o espectro.
– A gente repudia, vai totalmente contra, não temos como fazer uma triagem de quem vende e não em valor abusivo. Nós, dos Autistas Alvinegros, repudiamos e somos totalmente contra qualquer tipo de ação nesse sentido. Uma coisa que precisa ser frisada que é um benefício que o clube oferece, independentemente de ser em pouca quantidade, que mais para frente vamos lutar para ser maior, mas é um benefício que o clube oferece para alcançar as famílias atípicas e muitos não tem condições de ir ao estádio – ressaltou o líder do movimento.
Atualmente, são mais de 3 mil autistas cadastrados na modalidade específica para eles no programa de sócios torcedores do Timão.
A Trivela teve acesso ao trecho de um documento oficial em que o Corinthians afirma que aproximadamente 1.200 ingressos são destinados às Categorias Especiais (não pagantes) inclusos no programa de sócio torcedor do clube. Esse número, no entanto, contempla, além de autistas, pessoas com deficiência e idosos com mais de 60 anos. A reportagem, então, apurou que 10% dessa quantia (120) é destinada ao público TEA.
Corinthians intensificou medidas de combate ao cambismo em semana de decisão
Procurado pela reportagem, o Corinthians informou em nota que “vem tomando todas as medidas cabíveis para coibir o cambismo” e que “conta com o apoio da torcida para comater esse problema solicitando sempre que não efetue a compra de ingressos de forma ilegal”.
– Os departamentos do Corinthians estão agindo para mudar toda situação que estamos enfrentando em relação aos ingressos. Nosso objetivo é fazer com que a torcida esteja sempre nos jogos e apoiando o time incondicionalmente – diz trecho do comunicado enviado à Trivela.
O Timão também afirma que “a pedido do presidente Augusto Melo, o Corinthians ingressou com as seguintes medidas mais intensas a partir da semana da final do Paulistão”, são elas:
- Ações do Departamento de TI junto às plataformas de redes sociais para remover perfis que comercializam ingressos de maneiras irregulares. Foram 40 perfis denunciados somente na META (Facebook, Instagram e WhatsApp);
- Novo pedido de inquérito policial anexando diversos perfis que estão vendendo ingressos através das redes sociais;
- Bloqueio dos ingressos dos associados identificados praticando cambismo e exclusão do Programa Fiel Torcedor;
- Criação do e-mail “[email protected]” como canal de denúncias sobre a venda ilegal de ingresos.
