Como outras seleções se reinventaram de seus 7 a 1

Um jogo que marcou a vergonha. E que também desencadeou uma verborragia, até hoje não estancada, um ano depois. Críticas e sugestões surgiram das bocas de qualquer um entre os 200 milhões de técnicos, muitas vezes com uma visão apocalíptica do que havia se passado. A derrota por 7 a 1 para a Alemanha permanece como uma ferida aberta, que o brasileiro insiste em cutucar. Até porque a cicatrização parece um pouco distante de acontecer, diante dos tombos da equipe nacional que se repetem e da permanência da CBF na UTI.
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Só que os vexames não são exclusivos do Brasil. É verdade que nunca um país perdeu uma semifinal de Copa do Mundo em casa tomando sete gols. Mas outras grandes seleções nacionais também sofreram os seus desastres particulares, que puseram em dúvida tudo o que faziam até aquele momento. E se reergueram. Ou, ao menos, se reinventaram para conquistar resultados melhores do que na draga anterior – o que não aconteceu muito com a Seleção após a frustração com a Copa América.
Os caminhos têm alguns pontos em comum: o investimento nas categorias de base e a abertura à experiência que vem de outros países. Muitas vezes, acabando com um mesmo final feliz, o título da Copa do Mundo. O que a seleção brasileira pode aprender? Confiram os cinco exemplos abaixo.
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Alemanha: dois vexames e uma revolução desde a base
A Copa do Mundo de 2002 acabou sendo um ponto fora da curva, diante das atuações monstruosas de Oliver Kahn. A seleção alemã já havia sofrido um baque tremendo na Eurocopa de 2000, quando defendia seu título. Não ganhou um jogo sequer e morreu na primeira fase, em um grupo que também tinha Portugal, Romênia e Inglaterra. Um vexame que se reforçou no torneio continental de 2004, com outra queda precoce. Desta vez a chave também tinha Holanda e República Tcheca. Mas o Nationalelf sequer conseguiu vencer a irrelevante Letônia, com quem ficou em um empate sem gols.
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As duas hecatombes, somadas à aproximação da Copa do Mundo de 2006 em seu quintal, geraram a revolução no futebol da Alemanha. E ela começou fora de campo, em 2000. Com o apoio do próprio governo alemão, a federação iniciou um investimento massivo nas categorias de base, absorvendo também as experiências vividas em outros países. São mais de 350 centros de formação espalhados sob o território nacional, sob um custo total que chega à casa dos € 800 milhões, para preparar crianças e adolescentes de até 14 anos. Já acima disso, a estrutura é oferecida pelos clubes. As academias precisam ter um selo de excelência da federação para que seus donos consigam disputar as ligas profissionais. O que melhorou bastante o nível de preparação das promessas como um todo.
Em um momento no qual os clubes alemães sofriam com problemas financeiros, a exemplo do Borussia Dortmund, que quase faliu, o modelo se tornou um caminho para a sustentabilidade financeira da Bundesliga. Ao invés de gastarem fortunas em contratações, as equipes passaram a investir seu dinheiro neste trabalho de prospecção e formação. Não à toa, a quantidade de jogadores oriundos da base se tornou crescente a partir dos anos 2000. E a qualidade no trabalho se reflete também dentro de campo. Já as seleções de base surfaram neste processo, oferecendo um ambiente voltado ao aprimoramento da elite de atletas, com bastante incentivo à qualidade do jogo – o que acabou culminando em bons resultados.
Ainda assim, este é um esforço que colhe frutos a médio e longo prazo. E, depois da Euro 2004, as necessidades da seleção alemã se colocavam a curtíssimo prazo. Foram revertidas a partir de uma mentalidade renovada com Jürgen Klinsmann, que substituiu Rudi Völler no comando do Nationalelf. O novo treinador passou a abrir mais espaços aos jovens no elenco, e se aproveitou bem do fato de que a Alemanha receberia a Copa de 2006 para dar a injeção de orgulho nacional no grupo. Funcionou. E a manutenção do sucesso veio aproveitando bem as próprias seleções de base. Passar pela equipe sub-21, sobretudo, se tornou cartão de visitas para se alçar à equipe principal. Não à toa, a geração que juntava a tarimba de outras Copas com esta evolução nos degraus da seleção é que triunfou no Maracanã há um ano.
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Argentina: Maradona, o bombeiro, e Pekerman, o reconstrutor
O cenário é trágico, mas poderia ter sido ainda mais. A Argentina tomou um baile em pleno Monumental de Núñez, 5 a 0 para a Colômbia. E só não ficou de fora da Copa do Mundo de 1994 naquele momento porque o Paraguai não venceu o Peru em Lima. A sobrevida veio com a repescagem contra a Austrália, com uma solução de nome e sobrenome: Diego Maradona. Com o retorno do camisa 10, afastado da seleção durante as Eliinatórias Sul-Americanas, a Albiceleste se garantiu no Mundial dos Estados Unidos e até fez uma campanha digna na competição, apesar do exame de doping apontar positivo para o seu grande craque.
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De qualquer maneira, estava claro que ainda havia muito a se melhorar, e os argentinos não pararam no tempo. O problema na seleção principal não era tão trágico assim. O país contava com uma geração de talentos considerável, para qual abriu as portas em definitivo naquele momento. Além disso, também tinha um grande time para se escorar: o River Plate, grande potência do futebol local nos anos 1990, apresentava enorme qualidade em suas categorias de base. Muitos jogadores que chegaram ao profissional e puderam repetir o sucesso na equipe nacional, em uma ponte até natural com o técnico Daniel Passarella.
A grande sacada da Argentina, contudo, veio para as suas categorias de base. Ainda em 1994, a federação buscou José Pekerman, de trabalho duradouro no Argentinos Juniors, grande celeiro do país. E o treinador chegou não apenas para comandar as equipes de base, mas também para coordenar o trabalho. Sob novas ordens, as equipes sub-20 e sub-17 passaram a acumular sucessos nos Mundiais, à medida que também preparavam grandes promessas para os profissionais – que faziam a ponte, especialmente com Marcelo Bielsa.
A partir da filosofia de Pekerman, vieram grandes fornadas de craques, de Riquelme a Messi, assim como duas medalhas de ouro olímpicas. Mas, embora a seleção principal estivesse bem servida de talentos, ainda hoje faltam títulos no primeiro nível. A questão maior, hoje, está sobre a maneira como a equipe adulta se porta nos momentos decisivos. Ainda que também tenha sido criada uma queda na base, com parte do trabalho de Pekerman jogada fora nos últimos anos em favor dos interesses dos Grondona.
França: A grande academia da seleção, unida à multi-identidade
Os franceses se sentiram em uma entressafra considerável a partir do final dos anos 1980. Sua geração mais brilhante, a das semifinais de Copas do Mundo de 1982 e 1986, se aposentava e a geração seguinte se mostrou tão talentosa quanto problemática. Cantona, Ginola, Papin, Sauzée, Boli e Angloma formavam um grupo promissor, mas não conseguiam vencer na hora certa. Assim, ficaram de fora do Mundial de 1990 após um início ruim nas Eliminatórias e decepcionaram na Eurocopa 1992 depois de chegar à Suécia com status de favorito.
Mas o pior veio em 1993. Primeiro, os Bleus perderam em casa para Israel, tomando a virada dos lanternas quando a vitória garantiria a vaga na Copa dos Estados Unidos. Para, na rodada decisiva, outra derrota em Paris de virada, dessa vez para a Bulgária. Kostadinov fez um gol no último minuto e feriu a alma dos franceses a fundo, pois aquela eliminação, até pela forma como ocorreu, tinha requintes de vexame.
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A virada de jogo a longo prazo já vinha sendo projetada desde 1988. Naquele ano, a federação francesa inaugurou Clairefontaine, o quartel general dos Bleus. A estrutura serviu para integrar as seleções de base e ajudar na formação de jogadores. Deu resultado, com os jovens talentos impulsionados pela formação oferecida. Ainda assim, a maioria dos nomes era muito imatura para o objetivo imediato que se colocava: a Copa do Mundo de 1998, que os franceses também se viam sob a responsabilidade de jogar em casa.
A curto prazo, a principal medida veio mais na ideologia do que no trabalho em si. A França se abriu de vez a sua identidade multiétnica. Em um ambiente globalizado, a seleção abraçou a verdadeira cultura do país, que não se faz apenas dos “franceses natos”. Naqueles anos, a integração de africanos, polinésios e outros imigrantes nos Bleus se tornou bem mais intensa. Além disso, souberam não crucificar todo o time de 1993, aproveitando nomes importantes como Blanc, Desailly e Deschamps. Neste ambiente, montou-se um timaço, estrelado por jogadores das mais diferentes origens: Zidane, Lizarazu, Djorkaeff, Vieira, Thuram, Barthez. Um caldeirão étnico que levou a França ao topo na final contra o Brasil.
Também é preciso se dizer que, com auxílio dos clubes, o trabalho conseguiu se manter em alta. A França se transformou em exportadora de jogadores, especialmente depois da Lei Bosman. O que foi possível não apenas pela identidade múltipla já ter sido absorvida pela liga desde muito antes, como pelo próprio investimento local em categorias de base. A massa de imigrantes oferece o amplo material humano, lapidado dentro dos próprios clubes. Valeu a renovação das forças apesar da debandada intensa, especialmente à Inglaterra.
Itália: o mercado como um regulador
Desde a década de 1950, o futebol italiano viveu entre a indecisão de abrir ou não seu mercado. A primeira medida veio logo após a Segunda Guerra Mundial, com a admissão irrestrita dos estrangeiros na Serie A. Contudo, a derrota para a Hungria de Puskás em 1953, na inauguração do Estádio Olímpico de Roma, voltou a limitar o futebol apenas para os descendentes. O que não gerou necessariamente bons resultados, com campanhas fracas nas Copas do Mundo seguintes. Até o desastre total em 1966, quando a Azzurra caiu na primeira fase e, pior, com uma derrota para a Coreia do Norte.
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A partir de então, os italianos vetaram de vez a contratação de estrangeiros. O que pareceu uma boa ideia, por vias tortas. Nos quatro anos seguintes, a seleção venceu a Euro de 1968 e foi vice da Copa de 1970. Desempenhos mais explicados por uma nova geração que surgiu, a partir dos fortes clubes montados pelo país no início dos anos 1960, do que pelo mercado. Mesmo assim, o isolamento se manteve ao longo da década de 1970.
A reabertura gradual aconteceu nos anos 1980, após uma década em que a seleção manteve bons times (e deixou a base para o tri mundial em 1982), mas os clubes sofreram nas competições continentais. Não dá para negar o benefício que o retorno dos estrangeiros fez ao futebol italiano, como um todo. O nível da Serie A aumentou consideravelmente, o que alavancou também a qualidade dos jogadores locais. Não à toa, a Azzurra contou com grandes craques durante as décadas de 1990 e o início dos anos 2000. Foram quatro campanhas de respeito em cinco Copas, até o título em 2006.
Só que a Itália também se perdeu em meio à abertura. O advento da Lei Bosman fez com que os times passassem a contratar sem muitas restrições os estrangeiros, e não só para as equipes principais, mas também para as categorias de base. O trabalho de formação se tornou sucateado, com os dirigentes preferindo um reforço ao investimento nos garotos. O que se colhe atualmente, com duas eliminações consecutivas na primeira fase da Copa do Mundo. Um caminho que os italianos ainda precisam reencontrar, com os talentos locais cada vez mais escassos.
Inglaterra: Foram precisos dois baques para acordar de vez
A Inglaterra dormiu por quase um século em berço esplêndido. Os inventores do futebol se consideraram os melhores do mundo por décadas. E, rivalidade com a Escócia à parte, de fato eram. Só que a evolução dos outros países no futebol se tornou massiva a partir de 1900. Especialmente com o conhecimento que vinha dos próprios britânicos, ajudando a formar escolas muito fortes na Europa continental e na América do Sul. Ainda assim, quando saíam em excursão, os clubes e as seleções da ilha sempre demonstravam supremacia. O que, gradualmente, foi diminuindo, até o início da segunda metade do século 20.
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A participação da Inglaterra na Copa de 1950 se tornou um marco, por finalmente o país descer do salto e admitir enfrentar os outros “mortais”. Só que a noção de superioridade caiu por terra com a derrota para os Estados Unidos. A viagem ao Brasil e o clima tropical poderiam servir de desculpa. Até o que aconteceu dentro de Wembley, em 1953. Tomando um banho de futebol, os Three Lions pareciam mansinhos diante da Hungria. Puskás comandou a goleada por 6 a 3, e o placar até ficou barato, por tudo aquilo que os Mágicos Magiares apresentaram aos britânicos.
A derrota não significou o fim do egocentrismo dos ingleses, mas abriu o campo de visão deles. Passaram a observar o que acontecia no futebol muito além da ilha. E as derrotas serviram para que pudessem absorver também as inovações que aconteciam em outros lugares do mundo, sejam táticas ou técnicas. Alf Ramsey, defensor daquele time, que se ganhou fama como técnico ao ascender com o Ipswich Town, assumiu o comando da seleção com uma mentalidade mais aberta. Ajudou na conquista da Copa de 1966, apesar de todas as controvérsias sobre arbitragem que resistem.
Depois disso, a Inglaterra passou por diferentes ciclos. Tanto se enclausurou quanto se abriu, especialmente após o advento da Premier League. Só que, assim como a Itália, vive um entrave de gastar muito talento com craques estrangeiros, enquanto dá menos espaço aos jovens locais. E o que se vê é uma série de decepções com a seleção principal. Por isso mesmo, os ingleses têm criado uma série de medidas a partir dos anos 2000, não só para garantir vagas aos jogadores da base nos clubes (os chamados “homegrown players”), como também para incentivar o investimento nas academias. Só que o que acontece é que os estrangeiros chegam cada vez mais cedo, minando este espaço. Já a FA, pensando na própria equipe nacional, inaugurou um moderno centro de treinamentos em 2012 para integrar melhor as seleções menores e firmar uma filosofia de jogo. Um processo que segue em andamento.