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Carpegiani, 70 anos: A história do meio-campista cerebral que se tornaria um técnico de feitos notáveis

Ser um grande jogador nem sempre é a garantia de se tornar também um grande técnico. Paulo César Carpegiani, porém, conseguiu unir o melhor de ambos os universos. Nos tempos em que calçava chuteiras, foi craque. Mesmo que a trajetória tenha sido abreviada pelas lesões no joelho, em uma década como profissional conseguiu marcar o seu nome. Disputou uma Copa do Mundo, colecionou títulos com o Internacional, liderou um esquadrão do Flamengo. Poucos meio-campistas foram tão técnicos e tão inteligentes quanto ele na década de 1970. Tudo isso para se tornar um treinador vitoriosíssimo logo após assumir a prancheta. Honrou o legado de Cláudio Coutinho ao levar os rubro-negros à conquista da Libertadores e do Mundial. Rodaria bastante depois, mas com capacidade para impulsionar uma das melhores seleções paraguaias de todos os tempos, deixando fortes lembranças na Copa de 1998. Graças ao seus pés ou ao seu cérebro, um personagem acima da média, que completou 70 anos nesta quinta-feira.

O início de Carpegiani no futebol é curioso. Como ele próprio contaria ao Jornal dos Sports, em 1981: “Foi a coisa mais engraçada que me aconteceu. Em 1969, eu morava em Erechim e precisei fazer um curso pré-vestibular para ingressar na faculdade. Foi então que um dirigente do Inter ficou sabendo que estava na cidade um rapaz muito bom no futebol de salão e que poderia ser aproveitado nos juvenis do colorado. Fui chamado para um teste e, apesar de poucas vezes ter jogado no campo, agradei no primeiro treino. Imediatamente os dirigentes do Inter me convenceram a assinar a ficha de amador, o tal contrato de gaveta e passaram a me dar casa, comida e algum dinheiro. Para quem chegou a Porto Alegre sem ter onde morar e recebeu todas essas atenções, tive que ficar deslumbrado. Pouco depois o treinador Foguinho me promoveu aos profissionais, o que foi um deslumbramento total”. Há ainda uma versão que dá outros detalhes da história, referendada pelo próprio site do Internacional. Carpegiani estava a caminho de Porto Alegre, convidado para realizar um teste no Grêmio. No meio do caminho, teria sido abordado por um funcionário colorado. Aceitou a oferta de treinar no Beira-Rio e acabou ficando.

As regalias no Inter, porém, não eram garantias suficientes de que Carpegiani viraria jogador de futebol. Ainda pensava na faculdade de engenharia e, meses após sua chegada ao clube, voltou a Erechim. A desilusão aconteceu após estrear no time principal e sofrer duas derrotas contra adversários bem menores – um deles, o Montenegro, time amador de Porto Alegre. Nos dias seguintes, ao entrar nos vestiários após um treino, ouvi os companheiros mais experientes criticando os “guris” que não rendiam. Então, fez as malas e retornou ao interior. O responsável por demovê-lo da ideia foi Abílio dos Reis, técnico dos juvenis e grande garimpeiro de talentos colorados. Ele convenceu o jovem de 20 anos a retomar sua trajetória no Beira-Rio. Amigo da família, Foguinho recolocou Paulo César nos juvenis e por lá ele ganhou o estadual ainda em 1969. No ano seguinte, ganharia sequência nos profissionais pelas mãos de Daltro Menezes, substituto de Foguinho no comando.

Posteriormente, a ascensão de Carpegiani teve grande contribuição de Dino Sani, treinador que logo começou a enfileirar títulos estaduais no Beira-Rio. O novo técnico transformou o jovem em titular absoluto a partir de 1972. Mais do que um comandante, o antigo meio-campista da seleção brasileira se tornou um mestre à promessa. Segundo palavras do próprio Paulo César, foi um dos grandes responsáveis por suas noções dentro de campo. E o professor também o ouvia, especialmente quando o atleta o convenceu a botar Paulo Roberto Falcão como titular na meia-cancha colorada.

O rapaz que deslumbrava no Internacional não demorou a ganhar suas primeiras chances pela Seleção. Sua estreia aconteceu em março de 1974, em um amistoso contra o México às vésperas da Copa do Mundo. Disputou mais quatro partidas e acabou levado para a Alemanha Ocidental. Reserva de início, ganhou a posição durante a competição. Tornou-se um dos homens de confiança de Zagallo ao longo da campanha, na qual a Seleção terminou com a quarta colocação, eliminada pela Holanda no quadrangular semifinal. “Foi a minha única Copa. Foi a coroação das minhas atuações pelo Internacional. Acabei jogando no início como meia e ponta de lança. Mas, no terceiro jogo, quando o Clodoaldo se machucou, o substituí. O Zagallo me perguntou se eu poderia atuar como primeiro volante. Aí eu disse: ‘Mas tem o Piazza!’. O Zagallo me respondeu: ‘Quem escala sou eu. Quero saber se você concorda em jogar na primeira função’. Eu aceitei”, declararia à Rádio Gaúcha, em 2014.

Que o time canarinho não tenha sido páreo à Laranja Mecânica, seria uma experiência de peso ao jovem de 25 anos. “Incansável na ligação, destruiu com muito entusiasmo e contra-atacou em velocidade. Um dos bons elementos da equipe. Nunca se atemorizou”, pontuaria o Jornal dos Sports no dia seguinte à eliminação, colocando-o como um dos melhores em campo na derrota para a Holanda. Em 1998, já técnico do Paraguai, Carpegiani teria a honra de trocar figurinhas com Rinus Michels. O holandês foi designado pela Fifa como supervisor técnico dos guaranis durante a Copa do Mundo, onde as lembranças sobre o que ocorrera na Alemanha Ocidental voltaram à tona. Puderam transmitir conhecimentos, enquanto a Albirroja ficava a um triz de eliminar a França nas oitavas de final.

De volta ao Rio Grande do Sul após a Copa do Mundo de 1974, Carpegiani viveria a sua própria revolução com o Inter de Rubens Minelli, um time que ajudou a transformar a maneira de se jogar no futebol brasileiro e, para se eternizar, conquistou o bicampeonato do Brasileirão. Formaria uma célebre trinca no meio-campo ao lado de Caçapava e Falcão. Enquanto era o vértice mais adiantado do triângulo durante o combate sem a bola, Paulo César ganhava a companhia do excepcional Falcão quando os colorados partiam para cima. Assim, os craques arrebentaram defesas e acumularam vitórias célebres. Uma delas, contra o Fluminense de Rivellino, na semifinal do Brasileirão de 1975. O triunfo por 2 a 0 acabou ratificado por um belo gol de Carpegiani no Maracanã, se infiltrando na entrada da área, aplicando um drible da vaca no zagueiro e batendo por cima do goleiro Félix. A memória mais viva de seu protagonismo.

“Carpegiani era a referência técnica daquela equipe. Mais do que Falcão. Ele ditava o ritmo”, analisaria o próprio Minelli, tempos depois, ao blog do Mauro Beting. Elogio e tanto a quem, no início da carreira, recebia críticas da imprensa por ‘exagerar' nos passes curtos – consequência direta de suas origens no futsal, que logo seria vista como a sua grande virtude Além da reconquista do Brasileirão em 1976, Carpegiani ajudou a consumar o histórico octacampeonato do Gauchão no mesmo ano. Deixaria o Beira-Rio em 1977, quando o Flamengo o transformou no jogador mais caro do futebol brasileiro até então. O técnico Cláudio Coutinho, com quem tinha trabalhado na Copa de 1974, se tornou decisivo à mudança e fez o convite para o amigo. Pior ao Internacional, que relutou a vendê-lo. O clube sentiu a ausência de seu maestro e interromperia as sequências, tanto no nacional quanto no estadual, até se recuperar ao final da década.

A estreia de Carpegiani no Flamengo aconteceu em março de 1977. Enfrentou dificuldades de adaptação no início, também pelos salários atrasados e por sentir o boicote de alguns companheiros, conforme relataria. O momento não era favorável à equipe, em processo de renovação. Além do mais, o badalado reforço passou meses afastado dos gramados por contusão. Quando recuperou a forma, ganharia confiança e firmaria-se como um excelente volante na Gávea, fio condutor do time que começava a transformar o seu talento individual em troféus. Era tão importante que usava a braçadeira de capitão dos rubro-negros. Na faixa central, o gaúcho geralmente tinha a companhia de Adílio e Zico, depois com a participação mais frequente de Andrade. No emblemático Carioca de 1978, pedra fundamental à era mais gloriosa do Fla, Paulo César terminou eleito o melhor jogador da campanha – selada pelo inesquecível gol de Rondinelli. O veterano conquistaria o tricampeonato estadual, assim como o Brasileirão de 1980. Teve papel vital durante a decisão contra o Atlético Mineiro, ao marcar Éder.

Sem vestir a camisa da Seleção desde 1974, a boa forma no Flamengo levou Carpegiani de volta às convocações. Participou da Copa América de 1979, titular e ainda capitão da equipe que parou nas semifinais. Cláudio Coutinho acabaria admitindo o erro por não tê-lo convocado ao Mundial de 1978. “Tivemos três azares na Copa: estrear naquele campo horroroso de Mar del Plata, a contusão de Rivellino no primeiro jogo e a ausência de Carpegiani. Ele daria a alma, a força, a liderança, o toque a mais decisivo naquele time”, declarou o treinador à Placar, em fevereiro de 1979.

Coutinho possuía os seus motivos, cabe dizer. Antes do Mundial da Argentina, Carpegiani passara longos meses se recuperando de lesão. Além disso, em abril, pegara uma toxoplasmose e o tratamento, que durou dois meses, afetou diretamente o seu fôlego. Por isso, o treinador preferiu não chamá-lo para a Copa de 1978. Acabou se arrependendo. “Aprendi muitas coisas importantes com o Paulo César. Macetes de posicionar os jogadores em campo, macetes de orientar o time no intervalo de uma partida, macetes de relacionamento com os estreantes”, admitiria o próprio Coutinho, sem vaidades. Já indicava como o pupilo estava pronto para sucedê-lo.

Naquele momento, mais de dois anos antes de assumir a prancheta, Carpegiani demonstrava a mentalidade que continuaria garantindo seu sucesso no futebol. “Se eu fosse treinador, teria muito a ensinar. Uma: futebol é 50% bola e 50% personalidade. Mostraria, principalmente, como enfrentar os momentos adversos, que são muito mais constantes que as horas de alegria. Ensinaria aos novos e até mesmo a alguns veteranos como resistir sozinho às horas de amargura”, afirmou à Placar, também em fevereiro de 1979. “Gosto de conhecer bem as pessoas que me cercam. Eu encaro com naturalidade esse negócio de ser líder. E não existe liderança absoluta. No Flamengo, as coisas são resolvidas por um trio – eu, Zico e Júnior, todos sempre procurando um consenso”.

Os joelhos logo cobrariam uma pesada conta ao craque, em lesões que se tornavam frequentes e o tinham levado duas vezes ao centro cirúrgico. Justamente quando o Flamengo despontava para ser considerado o melhor time do mundo, Carpegiani precisou interromper a sua carreira. Em maio de 1981, disputou o seu último jogo como atleta profissional. Sem alarde, depois de alguns dias indicou que sua trajetória se encerrava ali, aos 32 anos. Consciente de que não entregaria o nível de desempenho que almejava, não lamentou, embora houvesse um pingo de desilusão. Meses antes, um clube árabe ofereceu um salário suntuoso para o maestro e ele desejava a transferência, mas os cartolas cariocas recusaram o negócio. Não queriam diminuir as forças da equipe, abrindo mão do medalhão. Segundo suas próprias palavras, isso também influenciou na aposentadoria. “Largo a bola antes que ela me largue”, apontou à Placar, em junho daquele mesmo ano. E não demoraria para a história do ex-jogador virar.

Carpegiani tornou-se inicialmente assistente de Dino Sani, então treinador do Flamengo, integrando imediatamente a comissão técnica. Já o convite para comandar os rubro-negros veio após a demissão do mestre, que entrou em atrito com algumas estrelas do elenco e perdeu o emprego no final de julho. Fortemente especulado por Sport e America, o gaúcho deveria ser apenas o interino, enquanto Nelsinho Rosa era dado como nome certo pela imprensa. Em 24 de julho, horas depois de assumir a bronca, o ex-volante já estreava no novo cargo e empatava contra o Olimpia pela Libertadores. Só que a chegada de Nelsinho nunca aconteceu, com uma proposta tentadora de um clube catariano selando sua mudança ao Oriente Médio. Três dias depois da erupção na Gávea, o antigo capitão posava apertando a mão do presidente, efetivado como novo técnico do Fla.

Carpegiani ainda teve o gosto de entrar em campo mais uma vez, em setembro de 1981, durante amistoso contra o Boca Juniors. Mais de 64 mil estiveram presentes no Maracanã para sua despedida como jogador e o ovacionaram, ao ser substituído por Adílio. No aguardado encontro entre Zico e o promissor Maradona, melhor para o Galinho, autor de ambos os tentos na vitória por 2 a 0. Paulo César, de qualquer maneira, já tinha dado início à sua ascensão na nova jornada como técnico. Um sucesso meteórico logo sacramentado pelas vitórias sobre Cobreloa e Liverpool, antes de render também o Brasileirão de 1982. O meio-campista cerebral se transformaria em um técnico de feitos inegáveis. O elo entre duas histórias distintas, que formam a mesma figura notável ao futebol sul-americano.

Abaixo, a reportagem da revista Placar publicada após a confirmação da aposentadoria de Carpegiani, e que repassa suas perspectivas na transição ao cargo de treinador:

https://www.youtube.com/watch?v=hYTvkhJHWE4

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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