Brasileirão Série A

Parece coisa dos anos 90, mas não é: basta Brasileirão chegar ao fim que o assunto mala branca reaparece

Na reta final do Brasileirão, mais uma vez as práticas de mala branca e mala preta voltam às manchetes esportivas do país

Mais uma edição do Campeonato Brasileiro está chegando ao fim. A última rodada de 2023 acontece nesta quarta-feira (6), às 21h30 (horário de Brasília), e com algumas vagas ainda indefinidas na competição, tanto para rebaixamento quanto para G4, a mala branca voltou à tona no noticiário esportivo do país.

A prática é mais do que conhecida no futebol brasileiro, e apesar do pacto de silêncio no mundo da bola sobre o assunto, povoou o imaginário popular, principalmente nos anos de 1990. Alguns aprovam, outros nem tanto… A Trivela mergulhou no mundo do direito desportivo e trouxe as nuances dessas duas condutas.

Brasileirão de 2023 teve ofertas de mala branca – recusada, segundo atletas

A mala branca é um incentivo financeiro oferecido por terceiros interessados na obtenção de resultados favoráveis de algum clube sem perspectivas dentro do campeonato. E pode estar mais perto do que imaginamos.

Nesta semana, por exemplo, tivemos um exemplo claro de mala branca no Brasileirão. Matematicamente rebaixado para a Série B, o América-MG recebeu diversos PIX de torcedores interessados na derrota do Bahia, adversário do Coelho no último domingo (3). A equipe de Belo Horizonte venceu o jogo e complicou o Tricolor de Aço na luta contra o descenso.

Após a partida, Juninho, volante do América-MG, revelou que ele e seus companheiros de time receberam, além dos depósitos, outras propostas de mala branca para que o Coelho vencesse e, assim, complicasse o Bahia na briga contra o rebaixamento. Vale destacar que Vasco e Santos são os adversários do Tricolor de Aço nessa luta. Juninho, no entanto, garantiu que o elenco recusou todas as ofertas.

– Tentaram de alguma forma esse incentivo (financeiro), mas a gente negou. Tenho compromisso com minha família, com minha carreira, com o clube, com a camisa que eu visto. E quando dá um dinheiro desse como incentivo, com todo respeito, não estou falando que é errado não, é uma vergonha para gente. Quando a gente aceita isso, estamos provando que somos movido pelo dinheiro. Se alguém falar que a gente jogou por dinheiro, não. Não aceitamos nem um real, nem um centavo. Por nossa escolha -, disse Juninho.

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E a mala preta?

A mala preta é o incentivo em dinheiro dado a uma determinada equipe para perder uma partida contra um segundo time, de modo que o resultado do jogo beneficie um terceiro clube, na maioria das vezes o responsável pelo pagamento.

O caso mais famoso e emblemático de mala preta no futebol ocorreu na Copa do Mundo de 1978. Na ocasião, a Argentina, anfitriã da competição, precisava vencer o Peru por quatro gols de diferença para passar o Brasil e chegar à final. Os peruanos já estavam eliminados e não brigavam mais por nada. O placar? 6 x 0 a favor dos donos da casa.

Anos depois, o escritor colombiano Fernando Mondragón, filho de narcotraficante do cartel de Cáli, revelou que existiu um acordo envolvendo o pagamento de cerca de US$ 300 mil para a equipe peruana, com o apoio da Casa Rosada (sede da presidência da Argentina) e de cartéis de drogas.

O que o direito desportivo diz sobre mala branca e mala preta?

Antes de mais nada, é importante deixar claro que as práticas de mala branca e mala preta são ilegais. Os dois casos se enquadram no artigo 242 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) e em quatro artigos da Lei Geral do Esporte.

É importante destacar, no entanto, que o CBJD só permite punir clubes, instituições, jogadores e outros atores jurisdicionados da Justiça Desportiva. A Lei Geral do Esporte, por sua vez, abrange mais personagens e inclui também atores “não desportivos”, como torcedores comuns e outras pessoas ou instituições sem vínculo formal com clubes – como no caso do América-MG, citado no início desta reportagem.

Código Brasileiro de Justiça Desportiva

Art. 242. Dar ou prometer vantagem indevida a membro de entidade desportiva, dirigente, técnico, atleta ou qualquer pessoa natural mencionada no art. 1º, § 1º, VI, para que, de qualquer modo, influencie o resultado de partida, prova ou equivalente.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e eliminação.

Art. 243. Atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende. (Mala preta)

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias.

Art. 243-A. Atuar, de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente.

PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.

Lei Geral do Esporte

Art. 177. A prevenção e o combate à manipulação de resultados esportivos têm por objetivo afastar a possibilidade de conluio intencional, ato ou omissão que visem a alteração indevida do resultado ou do curso de competição esportiva, atentando contra a imprevisibilidade da competição, prova ou partida esportiva com vistas à obtenção de benefício indevido para si ou para outros.

Parágrafo único. A administração pública federal estabelecerá parcerias com as organizações esportivas que administram e regulam a prática do esporte para promover mecanismos de monitoramento das competições esportivas com vistas a possibilitar a prevenção e o combate à manipulação de resultados esportivos.

Segundo o texto da Lei, a mala branca e a mala preta são ilegais por que buscam modificar o resultado da partida, que deveria ser definido apenas pelas condições físicas e técnicas dos jogadores em campo.

Mas e se a mala branca vier de um torcedor?

Bom, nesse caso, como citado acima, pelo fato do torcedor não ser um jurisdicionado da Justiça Desportiva, o CBJD não pode julga-lo. Mas a esfera penal sim. A Lei Geral do Esporte prevê punição para aquele cometer crime contra a incerteza do resultado esportivo. Vejamos os artigos 198, 199 e 200.

Art. 198. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado:

PENA – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Art. 199. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado. 

PENA – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Art. 200. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado:

PENA – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

É possível sair ileso de uma prática comprovada de mala branca ou mala preta?

Em contato com a reportagem da Trivela, o advogado de direito desportivo Higor Maffei reforçou a ilegalidade da prática.

– Ao meu ver, para efeitos de aplicação da legislação, não existe diferença entre mala branca ou mala presta, já que em ambas práticas um clube, seu dirigente ou torcedor oferece dinheiro a jogadores de uma equipe, para influenciar o resultado da disputa, seja para fazer uma equipe jogar mais ou jogar menos, porque tem o interesse naquele resultado. Temos de ter em mente que a Lei Geral do Esporte trata da manipulação de resultado no artigo 177 (…) O pior que poderia acontecer com o clube é a eliminação. e para as pessoas físicas, seria ser enquadrada em manipulação de resultado, respondendo também criminalmente -, disse o advogado.

Questionado se um clube ou pessoa que comprovadamente tenha cometido uma das duas irregularidades possa vir a escapar ileso perante à justiça, Higor assegura que não. O advogado pontua que a lei é clara e deve sempre ser cumprida, seja na justiça desportiva ou criminal.

– Caso existam provas concretas, da ocorrência desta pratica, não apenas indícios ou declarações duvidosas, não deveria existir a possibilidade do clube ou pessoa sair ilesa da justiça desportiva ou criminal, posto que comprovada a materialidade do fato, todos os envolvidos devem responder a processo em todas as esferas.

Único dirigente banido por mala branca foi absolvido meses depois

Em julho de 2011, Herbert Silva Andrade Júnior, presidente do Serrano Sport Clube, da Bahia, foi o primeiro dirigente da história do futebol brasileiro a ser banido pela acusação de mala branca. Na ocasião, o mandatário teria enviado R$ 6 mil ao time do Juazeiro para vencer ou empatar um jogo que classificaria sua equipe para segunda fase da segunda divisão do Campeonato Baiano. No entanto, posteriormente, o conseguiu impedir o banimento e sofreu penalização de 200 dias fora do futebol, além do pagamento de cestas básicas.

A reportagem da Trivela entrou em contato com Hebert, que, inicialmente, em uma mensagem de áudio via Whatsapp, negou a suposta mala branca, assumindo, no entanto, que teria pagado uma dívida anterior com o Juazeiro com acrescimo para “valorizar a vitória do Juazeiro” – sem especificar a quantia.

Minutos depois, o ex-presidente do Serrano apagou a mensagem por áudio e solicitou contato via telefone. Na ligação, mudou a versão e afirmou que, na verdade, pagou a dívida ao Juazeiro e um dirigente da equipe utilizou esse dinheiro para dar um “bicho” (premiação por resultado, comum no futebol) aos jogadores.

– Não foi mala branca. Na verdade, o presidente do Juazeiro era meu amigo e o time [Juazeiro] precisava ganhar e, na época, a gente [Serrano] poderia ser até favorecido com a vitória. Nós [Serrano e Juazeiro] já tinha um acerto de algumas contas. […] Aí, no acerto que fizemos, só aumentamos um dinheiro para valorizar a vitória dos jogadores [do Juazeiro], entendeu? Ele [presidente do Juazeiro] ia dar um prêmio para os jogadores e nós [Serrano] arredondamos um valor, mas não foi nem nada expressivo não, coisa simplória, coisa de amizade. – disse Hebert, no primeiro áudio enviado à reportagem.

Outro caso que não envolveu banimento de dirigente, mas suspensão temporária, aconteceu em 2019, quando o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) puniu o então presidente do Botafogo-PB, Zezinho (hoje vereador de João Pessoa), flagrado em uma escuta oferecendo dinheiro para o Altos-PI vencer ou empatar com o Náutico pela Copa do Nordeste de 2018, resultado que realmente aconteceu, 2 x 2, e deu a classificação ao clube paraibano às quartas de final. Zezinho ficou fora do futebol por um ano, além de multa de R$ 50 mil.

– Eu vou ver aqui com o pessoal pra gente mandar aí alguma coisa pra vocês ganharem o jogo ou empatar – disse Zezinho, em 2018, ao presidente do Altos, Warton Lacerda, que segue no cargo e divide a função como deputado estadual do Piaui.

No fim, o Botafogo da Paraíba caiu nas semifinais da Copa do Nordeste de 2018 para o Bahia, que perderia a final para o Sampaio Corrêa.

Seja mala branca ou preta, incentivo financeiro é pacto de silêncio

Durante a construção desta reportagem, a Trivela buscou alguns personagens do futebol brasileiro que já estiveram envolvidos em episódios associados a mala branca e mala preta nos últimos anos. O assunto é um tabu, e gera uma espécie de pacto de silêncio no futebol. Nenhum aceitou dar entrevistas, mesmo que em off sobre o tema. Até quem, de alguma maneira, já tratou publicamente do assunto, preferiu não se manifestar diante dos contatos da equipe.

Foto de Carlos Vinicius Amorim

Carlos Vinicius AmorimRedator

Nascido e criado em São Paulo, é jornalista pela Universidade Paulista (UNIP). Já passou por Yahoo!, Premier League Brasil e The Clutch, além de assessorias de imprensa. Escreve sobre futebol nacional e internacional na Trivela desde 2023.
Foto de Guilherme Calvano

Guilherme CalvanoRedator

Jornalista pela UNESA, nascido e criado no Rio de Janeiro. Cobriu o Flamengo no Coluna do Fla e o Chelsea no Blues of Stamford. Na Trivela, é redator e escreve sobre futebol brasileiro e internacional.
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