Argentina

Pepe Sand se aposenta como lenda do Lanús e um personagem singular do futebol argentino

Maior artilheiro da história do Lanús, Pepe Sand parecia em fim de carreira há uma década, mas deu a volta por cima e fez maravilhas até os 43 anos

O Lanús se orgulha de ser um clube de bairro. Os torcedores gostam, inclusive, de proclamar a agremiação como o “maior clube de bairro do mundo”. Destacar as raízes locais não é problema nenhum aos grenás, por aquilo que se vive entre seus quarteirões. O envolvimento do Lanús com sua vizinhança é enorme, com uma série de ações que incluem o apoio a crianças carentes, a luta por melhorias no atendimento público e outras ações solidárias. Além disso, as fronteiras do clube de bairro podem ser muito maiores, a quem já conquistou duas vezes o Campeonato Argentino e duas taças continentais, bem como foi vice da Libertadores. E o líder da comunidade, praticamente onipresente nesses sucessos, é o atacante José Sand. Uma verdadeira lenda que se despediu do futebol neste sábado, aos 43 anos, com a festa de sua gente que merecia em La Fortaleza.

Discutir quem é o maior ídolo da história do Lanús não é missão simples. Justamente por ser um clube tão enraizado, muitos jogadores preferem atravessar suas carreiras com a camisa grená. Na década de 1950, Juan Héctor Guidi era nome frequente até na seleção. Mais recentemente, Maxi Velázquez e Lautaro Acosta lideraram o Lanús além das fronteiras. Pepe Sand, no entanto, possui uma trajetória que fala por si e que para sempre será valorizada. Tornou-se o maior artilheiro da história do clube, com 173 gols. Quebrou recordes, sobretudo de longevidade. Foi goleador de diferentes competições. E nunca deixou de ser grato à agremiação que, afinal, fez a sua carreira ressuscitar em diferentes momentos. É um símbolo de dedicação.

A primeira passagem de Sand pelo Lanús aconteceu entre 2007 e 2009. Parecia uma promessa desperdiçada, de fama na base do River Plate, mas que nunca tinha sido se confirmado como profissional. Pois foi em La Fortaleza que o centroavante se confirmou como realidade, campeão argentino e duas vezes artilheiro da liga. Depois disso, Pepe rodou por três continentes e entrou em declínio quando voltou à Argentina. Quando vestia as camisas de times pequenos há uma década, como Boca Unidos e Aldosivi, sua carreira parecia próxima do final. Pois foi a volta ao Lanús em 2016 que o reergueu, para ser de novo campeão argentino e finalista da Libertadores. O veterano ainda passou pelo Deportivo Cali depois disso, mas retornou à sua casa. Para viver os últimos anos de sua carreira feliz.

A explosão

Sand teve um início de carreira estrondoso nas categorias de base do River Plate. Goleiro na infância, como o pai, foi convencido pela mãe a ir para o ataque. Como tantos garotos argentinos, se inspirava em Gabriel Batistuta. E se tornou o maior goleador das canteras millonarias, em tempos nos quais a base era muito valorizada em Núñez. Contudo, o centroavante não conseguiu dar um salto como profissional. Rodou por Colón, Independiente Rivadavia, Defensores de Belgrano e até passou pelo Brasil através do Vitória. Sua chance no River só aconteceu entre 2004 e 2005, chegando a ser campeão nacional, mas sem impressionar. Não à toa, voltou a perambular por diferentes clubes. Vesti a camisa do Banfield e voltou ao Colón, antes de assinar com o Lanús. Mudaria a história, a sua e a do clube.

Sand era uma das referências do Granate na conquista do Torneio Apertura de 2007, o primeiro título do Campeonato Argentino faturado pelo clube. Empilhou gols com a camisa grená, foi artilheiro do campeonato nacional em duas oportunidades, disputou a Copa Libertadores. Inclusive, recebeu suas primeiras convocações à seleção argentina. Não era um atacante dotado de grande capacidade técnica, como muitos de seus concorrentes pela Albiceleste. Compensava com vontade e uma presença de área dominante. A notoriedade em La Fortaleza levou o camisa 9 ao exterior. Encheu os bolsos no Al Ain, se aventurou no Deportivo de La Coruña, deixou sua marca no Tijuana. De qualquer forma, nada comparado ao que fez no Granate.

Em 2012, Sand retornou ao futebol argentino. Não emplacou no Racing, no Tigre ou no Argentinos Juniors. Sua carreira parecia destinada ao esquecimento, atuando na sequência por Boca Unidos e Aldosivi. Foi quando se esforçou ainda mais para se reerguer. Por conta própria, passou a treinar em um local específico para atletas de alta performance, bem como dobrou sua carga de exercícios nas semanas de folga. Também começou a se consultar com nutricionista e psicólogo particulares. Percebeu que o trabalho mental era vital para recuperar a velha forma. Assim, se reencontrou.

O renascimento

Em dezembro de 2015, Sand ganhou a oportunidade de retornar ao Lanús. O clube estava ciente que a idade avançada talvez fosse um problema, mas confiava na dedicação do veterano. Sabia o que esperar do artilheiro que conhecia os atalhos de La Fortaleza. Chorou logo em sua apresentação, emocionado por aquilo que poderia continuar construindo. “É minha casa, um clube que é tudo para mim. Que me permitiu crescer como jogador, como pessoa e ser reconhecido”, declarou na época. E a aposta foi paga com gols, muitos, que encaminharam a reconquista do Campeonato Argentino após nove anos, em 2016. Sand voltou a ser artilheiro da liga, autor de 15 gols em 17 partidas. Um deles anotado contra o San Lorenzo, na goleada por 4 a 0 que confirmou o título.

De qualquer maneira, o maior reconhecimento a Sand aconteceu mesmo com a campanha à final da Libertadores. O sucesso continental não era novo ao Lanús, com uma conquista da Copa Conmebol e outra da Copa Sul-Americana no museu. Ainda assim, brilhar no maior torneio da América do Sul era inédito. Sand anotou quatro gols na fase de grupos. Também fez tentos importantes contra Strongest e San Lorenzo nos mata-matas. Isso até arrebentar com o River Plate nas semifinais. Foi um encontro bastante singular a Pepe, que ainda era vaiado em suas voltas a Núñez, visto como um “ingrato” pela torcida millonaria. E a visão diferente que ele tinha junto à torcida do Lanús ficou mais expressa, porque o medalhão comprou briga publicamente com a diretoria pelos altos preços dos ingressos cobrados em La Fortaleza.

Aquelas semifinais foram uma grande provação a Sand. Depois da derrota por 1 a 0 no Monumental, o Lanús tomou os dois primeiros gols em La Fortaleza. Parecia praticamente eliminado, ainda mais em tempos de gols fora valendo como desempate. Pois a equipe virou, num incrível 4 a 2. Pepe marcou o primeiro gol grená no fim do primeiro tempo e o segundo na volta do intervalo. Também criou toda a jogada do terceiro. Incendiou seu time para que a história se cumprisse, com tentos também de Lautaro Acosta e Alejandro Silva. O que parecia impossível se concretizava. Sand incorporou a alma grená naquela noite. O prêmio maior não veio, com a derrota nas finais contra o Grêmio, mesmo que o centroavante tenha anotado o gol de honra na volta em La Fortaleza. Como consolação, o veterano de 37 anos pelo menos se sagrou artilheiro da Libertadores.

“Sou torcedor do Lanús e o amo com toda a minha alma. Quando voltei, senti um pouco de temor, porque no fundo ninguém sabe o que se pode passar. Graças a Deus tudo saiu como eu havia sonhado”, apontou, em entrevista ao Olé, em 2017. “O Lanús é tudo para mim. É minha casa, minha família, meu mundo. Meu filho Benjamín é fanático, vive com a camisa do Lanús, fica feliz quando marco gols e se entristece quando perco. Sempre dei 100% nos clubes em que joguei, desde o maior ao menor, mas o Lanús é diferente de todos. Não sei como explicar. No Lanús, renasci como jogador”.

A confirmação

Em 2018, José Sand aproveitou aquela que era uma das últimas oportunidades de ganhar dinheiro no exterior, ao assinar com o Deportivo Cali. Teve uma passagem razoável pela Colômbia, mas não ficaria muito tempo longe de casa. Em dezembro de 2018, ele retornou para o Lanús. Resolveu seus problemas com a diretoria e voltou a empilhar gols com a camisa grená. Não seria um período de grandes conquistas, como os anteriores. Mas foi o de maior dedicação. A preparação física e mental de Pepe sempre foram um exemplo no Campeonato Argentino. Ele continuou implacável, mesmo que os 40 anos pesassem sobre as pernas, ainda mais em momentos distintos como os da pandemia.

Sand começou então a debulhar recordes. Em outubro de 2019, transformou-se no maior artilheiro da história do Lanús. Superou os 120 tentos de Luis Arrieta e, depois disso, ainda marcaria mais 53 gols. Depois, seria a vez de Pepe ultrapassar Ángel Labruna como jogador mais velho a balançar as redes do Campeonato Argentino. Já tinha 40 anos, mas não se contentaria em parar tão já. Continuou decisivo até os 43 anos. Voltou a uma final de Copa Sul-Americana com o Granate, excepcional nas semifinais contra o Vélez, mas derrotado pelo Defensa y Justicia em 2020. Chegou a brigar pela artilharia do Campeonato Argentino novamente em 2021, com 15 gols, só abaixo dos 18 tentos de Julián Álvarez – um concorrente 20 anos mais jovem que a lenda grená. Nenhum jogador argentino neste século marcou mais gols contra os chamados “cinco grandes” do país, 52 no total.

Ao longo dos últimos dois anos, a efetividade de José Sand diminuiu. Nesta temporada de 2023, o centroavante marcou apenas três gols em 20 partidas. Ainda assim, pôde continuar fazendo o que mais gostava: vestir a camisa do Lanús. Isso até que chegasse a hora de parar, aos 43 anos. Se o tempo é inclemente para qualquer um, com Pepe ele pareceu correr mais devagar. O comprometimento do veterano fez o passar dos anos serem mais dóceis com ele. Comprometimento com o futebol, com as redes, com a camisa que vestia e também com a torcida que tanto o aclamou.

Neste sábado, a despedida aconteceu no último jogo em casa do Lanús pela Copa da Liga Argentina. Tinha que ser em La Fortaleza. A derrota por 2 a 0 para o Racing não proporcionou a noite mais feliz. A multidão presente nas arquibancadas, contudo, estava lá por Pepe. Foram centenas de cartazes e faixas, assim como muitas crianças pintaram o número nove no corpo. O artilheiro entrou em campo no segundo tempo, no lugar de Lautaro Acosta, que o acompanhou em tantas façanhas pelo Granate. Não fez muito, mas já tinha feito a diferença nos outros 336 jogos que disputou pelo clube.

A emoção aflorou em Sand durante diferentes momentos da noite. Seu rosto era onipresente nas arquibancadas desde antes do apito inicial. Já depois, o artilheiro agradeceu todo o carinho e não conteve as lágrimas. Não tinha como ser diferente, depois de uma vida atravessada naquele estádio. “Vocês me fizeram o jogador mais feliz da Terra. Muito obrigado”, agradeceu o gigante. O bairro, afinal, pode ser do tamanho do mundo. Sempre será assim para a lenda.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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