O silêncio dos estádios vazios na Copa Africana diz muito sobre a instabilidade no Gabão

A cada partida, uma multidão de cadeiras vazias e poucas centenas de pessoas que se aventuram nas arquibancadas. A Copa Africana de Nações 2017 apresenta um futebol de nível superior ao das últimas edições do torneio. Entretanto, ao menos no público, o fracasso é mensurável aos olhos. Durante a primeira fase, o embate entre Tunísia e Zimbábue, que valia classificação, não passou dos 1,8 mil espectadores. Número baixíssimo, ainda que se pesem os diferentes fatores envolvidos. Até porque os organizadores no Gabão vinham se empenhando para mudar essa sensação de desprezo da população local pela competição. Mas não vem conseguindo, em entrave político que vai muito além dos estádios.
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Ao contrário do que aconteceu em outras edições da CAN, a Confederação Africana de Futebol não disponibiliza em seu site os públicos presentes a cada partida ou os borderôs. Mesmo após contato da redação por três canais de comunicação diferentes, a entidade não ofereceu a resposta. E nem mesmo alguns jornalistas presentes na competição puderam ajudar completamente com os números de espectadores, anunciados apenas no sistema de som do estádio ao final de cada jogo. A média de público na Copa Africana deste ano se tornou um grande ponto de interrogação, e a impressão por aquilo que se vê não é boa.
Analisando a partir de 2000, a CAN pode não ter contado com públicos espetaculares em todos os anos. De qualquer maneira, a média é razoável, variando de 14 a 23 mil nas últimas nove edições. O número mais baixo é exatamente o de 2012, quando Gabão dividiu a realização com Guiné Equatorial. Levando em conta que três dos quatro estádios usados em 2017 possuem capacidade para 20 mil presentes, visualmente eles não atingem taxas de ocupação de 50%. Além disso, o maior estádio, que poderia alavancar os números, conta com 40 mil lugares. E nele também preponderou o vazio. Até que a CAF prove o contrário, a probabilidade de recorde negativo de público parece grande.
As razões para o insucesso são muitas. O fato de ser realizada de dois em dois anos não gera tanta comoção para a Copa Africana quanto para outros torneios internacionais. Pior, o Gabão já foi palco do torneio há cinco anos, e mesmo assim sem empolgar tanto os seus torcedores. Some-se a isso também a fraca campanha da seleção local, caindo ainda na primeira fase. Se os gaboneses ainda enchessem o estádio de Libreville a cada partida nos mata-matas, poderiam inflar os números, mas nem isso.
Outro ponto a ser debatido é a ausência de alguns dos países mais populosos do continente, que poderiam levar mais torcedores ao torneio – sobretudo a Nigéria, próxima territorialmente, mas também África do Sul, Etiópia e Sudão. Ainda assim, mesmo aos classificados, a viagem de sua torcida não foi tão simples. A crise econômica global afeta em cheio a África Ocidental, sobretudo os países exportadores de petróleo, com a queda no preço dos barris. O Gabão, inclusive, sofre bastante com esta questão, já que 80% de suas exportações e 43% de seu PIB são provenientes da venda de petróleo.
E o entrave financeiro é só o ponto de partida para entender aquela que, majoritariamente, é a explicação para o fracasso de público na Copa Africana 2017: a crise interna vivida pelos gaboneses. A baixa da economia potencializa a atmosfera de insatisfação no país. As taxas de desemprego são altas, acima dos 20% para a população economicamente ativa. Itens básicos faltam à população, como remédios e carteiras nas escolas. Enquanto isso, dois modernos estádios foram construídos para esta edição da Copa Africana, se somando aos outros dois inaugurados para a CAN 2012. Os dois mais novos, sequer foram concluídos. Ao todo, US$ 746 milhões foram investidos no evento.
Como se não bastasse, o Gabão vive uma “ditadura familiar” desde 1967. O atual presidente, Ali Bongo, sucedeu seu pai no cargo em 2009. Ganhou eleições suspeitas de fraude e permaneceu sete anos no cargo. Já a reeleição do estadista aconteceu em agosto do último ano, novamente sob alegações de irregularidades – com a “falta de transparência”, entre outros problemas, relatados por observadores independentes da União Europeia. Bongo superou o seu opositor, Jean Ping, por menos de seis mil votos. E, diante de protestos contra o resultado, as forças de segurança nacionais reprimiram violentamente a população. Os conflitos nas ruas deixaram mortos (três, segundo o governo, e 26, segundo a oposição), dezenas de feridos e centenas de detidos.
Diante da hostilidade evidente, grupos de oposição ao governo de Obongo organizam boicotes à Copa Africana de Nações. “Às vezes, países que desprezam normas internacionais se esforçam para passar a impressão de que estão melhorando os seus índices de direitos humanos, através de grandes eventos esportivos. Os torcedores que assistem à Copa Africana no estádio ou pela TV têm a chance de aprender sobre as razões levantadas pela sociedade civil para organizar o boicote e colocar pressão sobre o governo”, afirma Sari Bashi, membro do Human Rights Watch, em entrevista ao jornal Daily Maverick.
Ali Bongo, por outro lado, viu na Copa Africana a oportunidade de clamar uma unidade nacional através do futebol. O país ganhou a concorrência de Gana e Argélia para receber o torneio em 2015, quando a crise econômica já se intensificava. E, dentro do contexto político, tinha sua chance de transmitir a ordem através do futebol. Não consegue. Diante da falta de espectadores, o governo tem tomado diversas medidas para ocupar as arquibancadas: distribuindo ingressos nas escolas, vendendo os mais baratos a míseros US$0,80, oferecendo várias cortesias. Não há clima no país para se celebrar um torneio de futebol. Como se não bastasse, parte dos estádios são distantes da área urbana e três deles estão inseridos em cidades com menos de 140 mil habitantes. Para ocupá-los, seria necessária muita força de vontade. O que, definitivamente, não vem rolando. Na decisão, a proximidade geográfica do vizinho Camarões pode ajudar, mas talvez nem isso seja suficiente para 100% de ocupação.
No fim das contas, uma questão muitíssimo pertinente se concentra sobre a própria escolha do Gabão: como um país que vive uma ditadura familiar há cinquenta anos acaba selecionado para ser sede duas vezes, em menos de cinco anos? É o jogo de poder que vigora na CAF, sem se importar com o regime autoritário que promoverá, desde que o dinheiro continue entrando nos bolsos dos dirigentes – e que respingou também sobre a seleção brasileira, a portuguesa e Lionel Messi, que emprestaram suas imagens a Bongo durante os últimos anos. Mas, por outro lado, também é a oportunidade para uma população expor a sua luta a diversas partes do mundo, e ganhar voz nem que seja pelo silêncio das arquibancadas vazias.