Universo do Futebol

Apesar de ser o esporte nacional por excelência e de representar um dos ícones internacionais de nossa ´brasilidade´ (ao lado do samba e do carnaval), durante muito tempo o futebol foi desconsiderado nas pesquisas acadêmicas em nosso país. Esse descaso da ´intelligentsia´ brasileira se deve, nomeadamente, ao fato de a conquista do tricampeonato da seleção canarinha, na Copa do México de 1970, ter servido para os propósitos da propaganda militar da época, encarnada no regime de força implantado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici. Para dar o troco, artistas, intelectuais e professores universitários acusaram o futebol de representar ´o ópio do povo´, ou seja, o esporte bretão praticado no Brasil serviria sob esse prisma como forma de alienação das massas, por distanciar o cidadão comum de seus problemas políticos cotidianos.

Esse quadro mudou sobremaneira na década de 1990, com o país reinserido num processo de democratização bem consolidado. Entretanto, é preciso ressaltar a importância do antropólogo Roberto DaMatta, que já nos anos 70 começou a preocupar-se com as principais manifestações populares brasileiras e a investigar o porquê de o futebol ter-se transformado, em nosso país, no esporte das multidões e num fenômeno digno de importância social e cultural. Uma publicação lançada em 1982, que permaneceu esquecida por longos anos, reapareceu nos últimos anos de maneira surpreendente em algumas livrarias e sites de venda de livros. Ela traz textos de quatro antropólogos que, no Rio de Janeiro, começaram de forma pioneira a tratar do futebol na academia. Trata-se da obra ´´Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira´´, da editora Pinakotheke, com textos de Luiz Felipe Baêta Neves, Arno Vogel, Simoni Lahud Guedes e do próprio Roberto DaMatta, coordenador da publicação.

Nessa obra, os quatro pesquisadores traçam um painel sociológico das representações simbólicas e estéticas que o futebol ganhou no Brasil, com uma visão que procura realçar a importância da prática dessa modalidade esportiva entre nós. DaMatta escreve o prefácio do livro e o artigo ´´Esporte na Sociedade: um Ensaio Sobre o Futebol Brasileiro´´; Baêta Neves é responsável pelo texto ´´Na Zona do Agrião: Algumas Mensagens Ideológicas do Futebol´´; Lahud Guedes comparece com o artigo ´´Subúrbio: Celeiro de Craques´´; e Arno Vogel, finalmente, é autor do artigo ´´O Momento Feliz – Reflexões Sobre o Futebol e o Ethos Nacional´´.

O torcedor comum, obviamente, poderá achar que o livro apresenta uma linguagem muito ´filosófica´ e cheia de jargões típicos dos estudos universitários. Decerto, há por vezes um certo ranço acadêmico ao longo dos textos, mas nada que desconforte ou que seja incontornável. A grande ressalva que se pode fazer, porém, é de ordem diversa: alguns conceitos e análises efetuadas nos quatro artigos da obra são bastante atuais quando aplicados à realidade do futebol brasileiro até o final da década de 1970, quando ainda não havia algumas particularidades que se fazem tão presente nos dias de hoje (como o êxodo constante de jogadores brasileiros para o exterior, o merchandising e as ações de marketing esportivo, o aprimoramento das técnicas de alta competição, o predomínio de empresários nas negociatas de contratos, etc.).

De todo modo, repito, deve-se louvar a iniciativa desse grupo de estudiosos, responsável por fazer a aproximação mais relevante entre futebol e cultura de massa no Brasil por meio de análises em que se pretendia inaugurar um novo olhar sobre o país. Para Roberto DaMatta, por exemplo, ´´o futebol seria popular no Brasil porque permite expressar uma série de problemas nacionais, alternando percepção e elaboração intelectual com emoções e sentimentos concretamente sentidos e vividos´´. Desse modo, vemos que o mundo do futebol acaba contaminando outros discursos por meio de expressões que passam a ser aproveitadas coloquialmente em outras situações, seja no meio político e econômico, seja nas conversas cotidianas na escola, família, supermercado, etc.

Roberto DaMatta lembra a expressão ´ter jogo de cintura´, que circula livremente no âmbito do Congresso Nacional. Mas existem inúmeras outras que, originárias do mundo futebolístico, são incorporadas pelo meio cultural em sentido amplo. Como exemplo, podemos citar ´administrar o resultado´, ´chutar e correr para o abraço´, ´embolar o meio-de-campo´, ´fazer marcação cerrada´, ´estar na marca do pênalti´, ´partir para o ataque´, ´pendurar as chuteiras´, ´pisar na bola´, entre outras. Assim, a importância desse esporte em nosso país transcenderia a mera esfera do entretenimento, já que estaria incluída no meio da ordem social:

´´Se, de fato, carnaval, religiosidade e futebol são tão básicos no Brasil, tudo indica que diferentemente de certos países da Europa e América do Norte, nossas fontes de identidade social não são instituições centrais da ordem social, como as leis, a Constituição, o sistema universitário a ordem financeira, etc., mas certas atividades que nos países centrais e dominantes são tomadas como fontes secundárias e liminares de criação de solidariedade e identidade social. Assim é a música, o relacionamento com os santos e espíritos, a hospitalidade, a amizade, a comensalidade e, naturalmente, o carnaval e o futebol, que permitem ao brasileiro entrar em contato com o permanente de seu mundo social´´. (pg. 39)

Deixo a citação acima como exemplo daquilo que o leitor poderá encontrar ao longo do livro: ao fazer uma leitura das particularidades sociais e culturais do futebol no Brasil, os quatro pesquisadores cumprem o percurso de demonstrar que o ´esporte bretão´ deixou de ser ´bretão´ no Brasil e assumiu outras cores, outras importâncias, outras conotações.

Está aí uma lição importante, que o mundo globalizado não consegue superar e que por si só já justifica a validade da obra: futebol, no Brasil, é assunto de todas as horas, de todas as esquinas, de todas as camadas sociais, de todas as idades. E merece ser tratado dessa forma, como ingrediente que tem sabor bem brasileiro, ainda que se possam colocar nele temperos estrangeiros. O problema é quererem dar mais importância ao tempero do que ao prato em si. O universo do futebol consegue pôr a comida na mesa de maneira original e valorizando o caso próprio do Brasil, tal qual uma saborosa feijoada, um inusitado acarajé, um bem-feito tutu à mineira. E o melhor: consegue mostrar que essa mistura não causa indigestão. Ao leitor, portanto, bom apetite.

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Equipe Trivela

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