Negro, Macumba e Futebol
Alguns textos e livros sobre o futebol no Brasil deveriam ser obrigatórios para todos aqueles que se debruçam seriamente sobre esse esporte em nossas terras. Um desses textos, quem diria, não foi escrito por nenhum brasileiro, mas sim pelo crítico alemão Anatol Rosenfeld, em 1956. Trata-se do artigo ´´O Futebol no Brasil´´, escrito para o público alemão e publicado no Brasil na obra ´´Negro, Macumba e Futebol´´, da Editora Perspectiva.
Nesse texto, Rosenfeld chama nossa atenção inicialmente para a diferença entre o uso da mão e do pé no futebol. Segundo o crítico alemão, o arremesso feito com as mãos denota um comportamento incomparavelmente mais ´civilizado´ do que o golpe desferido com o pé. Existiria uma certa amabilidade na troca de bolas feita com as mãos, o que se observa acentuadamente nos jogos das moças. No futebol, entretanto, o movimento de chutar representaria um ato de agressão, por mais flexível que fosse o modo pelo qual o jogador tocasse na bola com os pés. Essa singularidade, aliás, é uma das explicações possíveis para o fato de o futebol ter-se tornado um esporte ´masculinizado´ por excelência, tanto na maneira como se joga como na platéia que lhe dá assistência.
O chute impetuoso, desta forma, teria sempre um caráter violento, que, entretanto, estaria domado pela disciplina. E essa ambivalência exerceria assim um apelo acentuado nas culturas ocidentais, que tanto reverenciam o ideal de masculinidade, principalmente os povos latinos. Aqui, porém, cabem algumas ressalvas históricas ao texto: esse escrito de Rosenfeld foi dirigido ao público alemão do pós-guerra; portanto, é preciso levar em consideração algumas particularidades de hoje que não se faziam totalmente presentes naquela época para o autor. Uma delas, por exemplo, é o fato de não poder caracterizar-se o Brasil como paradigma acabado de cultura ocidental, em função justamente da miscigenação e da transfiguração das matrizes que fundamentaram nossa colonização; mas essa já é outra discussão.
O que cabe aqui mostrar é como Anatol Rosenfeld chama a atenção ainda para a presença do negro no futebol brasileiro. Diante de novas perspectivas, o esporte tornou-se para o negro um caminho de fuga que o levava à ascensão social. Dar pontapés numa bola era, para o negro, um ato de emancipação. De repente o próprio jogo tornava-se para eles um trabalho, fato que se relacionava inversamente com o período da escravidão, quando, por muitas vezes, o trabalho era realizado como se fosse um jogo.
Com o profissionalismo no Brasil, as massas arrancaram às camadas superiores o privilégio de praticar o futebol. Isso provocou, segundo Anatol, o abandono gradativo das ´moças de bem´, representantes da alta burguesia, da assistência desse esporte, uma vez que elas passaram a preferir modalidades mais exclusivas e reservadas. Além disso, houve igualmente uma queda na reputação social do futebol, que, todavia, começava a tornar-se o esporte nacional por excelência, envolvendo todos os círculos masculinos, inclusive as elites.
De todo modo, Anatol Rosenfeld acredita que, no caso brasileiro, o futebol assumiu uma evolução moderna de caráter inteiramente profano, por conta certamente da presença dos torcedores. Apesar desse caráter profano, porém, o futebol configurou-se como objeto de culto, fator de transcendência e redenção. Numa atividade esportiva em que tanta coisa depende da sorte ou do acaso, entende-se melhor por que os times procuram apoio nas esferas sobrenaturais irradiadas pela imensa carga de paixão das torcidas de futebol. É como se essas forças manifestamente míticas trouxessem um estímulo benéfico à equipe e, ao mesmo tempo, ocasionassem um desfavor demoníaco ao adversário.
A conclusão a que chega Anatol Rosenfeld em seu artigo sobre as práticas futebolísticas no Brasil é emblemático e revela como se pode fazer a ponte entre esporte de massa e cultura. Seu raciocínio deveria fazer inveja aos intelectuais de gravata, que esnobam o futebol, o samba, o Carnaval, enfim, todas as práticas de apelo mais popular de nossa sociedade: ´´O futebol leva a uma catarse das massas, a uma descarga do ser animal – cuja motivação em sua escala de valores não vem ao caso – e a uma sublimação de tensões que, como se mostrou, contam, no Brasil, com uma abundância extraordinária de pontos de cristalização e de condensação´´ (p. 106).
Pois é. Já faz quase 50 anos que um alemão, que por aqui vivia, conseguiu enxergar o óbvio ululante. Há muitos letrados que ainda não se deram conta do óbvio. Alguns, aliás, pouco enxergam.