Kalou: Elefante laranja
A ainda curta trajetória do atacante Salomon Kalou no futebol se assemelha a um jogo de tabuleiro, daqueles em que o jogador arremessa dados e percorre caminhos que podem ou não ser agradáveis. Aos 16 anos, por exemplo, caiu numa casa na qual se lia: ´Um parente próximo trabalha numa conceituada empresa e arranjou uma vaga para você. Avance dez casas´. E lá foi ´Kalunho´, como é conhecido em sua terra natal, para as categorias de base do Feyenoord, à época o clube do irmão Bonaventure. Em 2002, ainda nas divisões inferiores, topou com um revés: teria de ficar sem jogar por várias rodadas, devido a uma operação no joelho. No momento atual, Kalou está preso numa casa que estampa em letras garrafais e ameaçadoras a palavra ´DILEMA´.
Nem a espantosa velocidade desse marfinense de 1,75m e 65kg livrou-o de empacar numa delicada questão: deve ele, nesse intrincado jogo, optar por ser o peão dos Elefantes (denominação dada à seleção de seu país) ou naturalizar-se holandês e, por conseguinte, tornar-se um peão laranja? Seu magnífico segundo semestre de 2004, repleto de gols no campeonato holandês e na Copa UEFA, transformou-o em peça valiosa no mercado, mas também lhe acarretou essa complexa escolha, que não será feita sem que haja algum embaraço. Kalou está inclinado a aceitar o convite do técnico da Oranje, Marco van Basten, apesar das pressões advindas da FIF – entidade que controla o futebol da Costa do Marfim – e da vontade de jogar ao lado de Bonaventure, hoje no Auxerre e capitão dos Elefantes.
Ser ou não ser
Didier Drogba (Chelsea), Aruna Dindane (Anderlecht), Kolo Touré (Arsenal), Félix Ettien (Levante), Axel Konan (Lecce) e Arthur Boka (Strasbourg), entre vários outros marfinenses espalhados pela elite do futebol europeu, testificam a pujança dessa geração que está executando ótimo papel no grupo 3 das eliminatórias africanas e pode conduzir os Elefantes a uma inédita participação em Copa do Mundo. Salomon Kalou, caso resolva aliar-se aos conterrâneos, tornará esse time ainda mais poderoso e não correrá o risco de defrontar-se com o próprio irmão num embate da Copa de 2006, situação que, de tão inusitada, beiraria as raias do grotesco.
Entretanto, dar primazia às raízes talvez não seja a melhor decisão sob o ponto de vista financeiro, já que o passaporte holandês lhe garantiria um trânsito simplificado nos clubes da Europa. Além disso, jogar ao lado de Robben e Van Nistelrooy na tradicional seleção holandesa geraria mais visibilidade no cenário mundial. Mas será que um possível êxito na seleção marfinense não geraria um prestígio mais autêntico, mais fecundo, até?
Talvez essa inquietante pergunta esteja adiando uma posição definitiva de Kalou. Mas o pendor, agora, é, sem dúvida, para os lados de Van Basten e de Foppe de Haan (técnico da Oranje sub-20), tanto que Kalou rejeitou a convocação para o torneio sub-20 da África, vencido pela Nigéria, em janeiro de 2005. Antes, o camisa 21 do Feyenoord já recusara vestir a camisa dos Elefantes em maio de 2004, pelas eliminatórias para a Copa da Alemanha.
Altos saltos e salto alto
Quando preferiu não ir à África para as partidas contra Líbia e Egito, Kalou estava no Excelsior, pequeno clube da Eerste Divisie (segunda divisão holandesa) para o qual o Feyenoord habitualmente empresta suas promessas, com o intuito de que ganhem experiência. Em 11 jogos, anotou quatro gols e convenceu o time de De Kuip a ´resgatá-lo´. Se com o técnico Bert van Marwijk, na primeira metade da temporada 2003/4, Kalou só tivera duas chances de jogar, com Ruud Gullit a jovem e lépida peça ofensiva ganhou confiança e desenvoltura. O pupilo se posta imediatamente atrás de Dirk Kuijt, de quem recebe ótimas assistências, como as duas do jogo contra o Schalke 04, pela Copa UEFA, que resultaram em gols da equipe de Rotterdã.
Sua jogada predileta consiste em vir de trás aos galopes e com a bola colada ao pé, em contra-ataques incontíveis. ´´É incrível a maneira como ele utiliza o espaço de que dispõe e ultrapassa os adversários´´, elogia Gullit, que não é seu único admirador. O Chelsea de Abramovich espera sua naturalização, a fim de poder levá-lo à Premier League. Guy Roux, treinador do Auxerre, também revelou interesse, talvez imaginando ter comprado o Kalou errado. À sondagem do clube francês, Salomon reagiu com certo desprezo, julgando que a Ligue 1 seria um retrocesso. Sinceridade ou arrogância? Bem, pode ser apenas franqueza mesmo, embora alguns torcedores do Excelsior reclamem até hoje de sua postura egoísta em campo e de seu ar de superioridade – dizem que Kalou estava sempre insatisfeito, pois achava a agremiação excessivamente modesta para o calibre de seu futebol. ´´A soberba precede a ruína´´, diz a bíblia, de que Kalou afirma ser leitor.
Ontem e amanhã
Salomon Kalou e seus irmãos, Bonaventure e Michel, sempre se dedicaram à prática do futebol, especialmente na escola. Assim que Bonaventure deixou o ASEC, da cidade de Abidjan, para integrar o elenco do Feyenoord, em 1997, Salomon ingressou na academia de formação de jogadores criada pelo ex-meia francês Jean-Marc Guillou. A instituição nem é reconhecida pelas autoridades do futebol marfinense, mas já exportou vários atletas para o Beveren, da Bélgica, além de figuras como Kolo Touré e o meia Gilles Yapi-Yapo (Nantes), com os quais Kalou chegou a treinar.
O fã de Bonaventure Kalou e de Thierry Henry almeja evoluir e acredita que ceder aos apelos de Van Basten – como fez o atacante turco Yildirim, do Heerenveen – e às facilidades da condição de comunitário contribuirá para isso. Não há como obrigar Kalou a defender os Elefantes, tampouco será ele o precursor desse procedimento no país do oeste africano: recentemente, o zagueiro Basile Boli tomou parte na seleção francesa.
Se mantiver a toada dos últimos meses e superar pequenos problemas, como as lesões musculares que por vezes o incomodam, Salomon grafará seu nome em negrito no livro do futebol. Como nos jogos de tabuleiro, ele torce para não ter o destino reservado àqueles que caem na medonha casa cuja superfície exibe, em letras sombrias: ´Volte para o ponto de partida´.
