Portugal

O adeus a Fernando Gomes, não só o maior artilheiro do Porto, mas o ídolo que marcou um antes e um depois aos portistas

Fernando Gomes talvez não tenha sido o maior craque do Porto em todos os tempos, mas muito provavelmente foi o ídolo mais identificado com o clube: letal, multicampeão, transformador

O Porto possui um antes e um depois em sua história vitoriosa. O final da década de 1970 marca um período decisivo para o clube, com o fim de longos jejuns. O Dragão ficou nove anos sem conquistar a Taça de Portugal, embora a seca mais cruel acontecesse no Campeonato Português, com uma espera de 19 anos encerrada em 1978. Aqueles troféus serviam de presságio à histórica década de 1980 para os portistas, em que se iniciou não apenas um período de domínio na liga, como também se registrou a inédita conquista da Copa dos Campeões. E não é coincidência que, concomitantemente, a torcida descobria uma de suas maiores lendas. Fernando Gomes era Porto em sua identidade. Nasceu na cidade, era sócio do clube, nunca escondeu sua paixão. E sua relação com a equipe do coração se traduziu em gols, muitos. Foram 355 tentos, que o tornam o maior artilheiro da história da agremiação. Que renderam enormes façanhas. Que garantiram duas Chuteiras de Ouro. Que fizeram o camisa 9 eterno, mesmo que os portugueses lamentem a morte de um dos maiores jogadores de sua história.

Fernando Gomes faleceu neste sábado, aos 66 anos, vítima de um câncer no pâncreas que enfrentava há alguns anos. Em plena Copa do Mundo, o adeus de um antigo mundialista da seleção portuguesa causou comoção. E nada se compara à grandeza alcançada pelo apelidado “Bibota” (uma referência ao seu bi na ‘Bota de Ouro') em seus tempos de Porto. O ponta-de-lança não foi homem de um clube só, com uma passagem pelo Sporting de Gijón e a despedida da carreira em Lisboa com outro Sporting. Ainda assim, não se nega que o Porto foi sua vida. Foram mais de 500 partidas pelo Dragão, com 14 títulos conquistados, em vasta lista que inclui a Champions e o Mundial Interclubes, além de seis ligas. Gomes era sinônimo de gols, vitórias e taças no antigo Estádio das Antas. Não é exagero colocá-lo como o grande responsável, em campo, por esse antes e depois, dos flagelos portistas às sequências de troféus. Sua carreira é o marco da grandeza do Porto, e isso cabe a raríssimos no futebol.

Fernando Gomes nasceu em 22 de novembro de 1956, no Porto. Só tinha um caminho a seguir: o Futebol Clube do Porto. O pai de Bibota o tornou sócio do clube quando o garoto tinha apenas seis anos. Aos nove, ele passou a se interessar mais pelo futebol e a frequentar o Estádio das Antas. Seu sonho era ser goleiro, enquanto se provava no handebol e no futsal. Sua vocação, logo ficaria claro, era maltratar os arqueiros. E o atacante tinha como seu grande ídolo Pavão, meia com grande visão de jogo que se consagrava nos tempos de vacas magras durante a década de 1960.

Quando tinha 14 anos, Fernando Gomes passou por uma peneira com o Porto. Acabou aprovado e logo se juntou às categorias de base do Dragão, saltando categorias. Já em dezembro de 1973, num momento em que despontava como uma das maiores promessas portistas, o atacante lidou com um dos maiores traumas experimentados pelo clube. Durante uma partida contra o Vitória de Setúbal, Pavão caiu desacordado em campo e faleceu, vítima de uma parada cardíaca. Tinha apenas 26 anos e, em sua oitava temporada pelo clube, usava a braçadeira de capitão. Seria uma perda irreparável para a torcida lidar. E entre aqueles que logo passaram a ocupar os corações portistas estava Bibota, que ganhou sua primeira chance menos de um ano depois, em setembro de 1974. Aos 17 anos, o fenômeno teve um início espetacular.

Reconhecido por seu impressionante posicionamento e pela movimentação constante, sendo um ponta-de-lança inteligente e fatal, Fernando Gomes precisou de uma partida para provar seu faro de gol pela equipe principal do Porto. Aymoré Moreira foi o responsável por lançá-lo contra a CUF, na primeira rodada do Campeonato Português 1974/75. O novato marcou os dois gols do Dragão na vitória por 2 a 1. Seriam 14 gols em 24 partidas naquela primeira temporada na liga nacional. Chegaria a marcar quatro num só jogo, em duelo contra o Farense. Era um desempenho assustador, que tão logo o levou a estrear pela seleção em 1975, aos 18 anos.

Fernando Gomes anotou 10 gols na temporada seguinte, em 1975/76. E sua grandeza começaria a ficar expressa em 1976/77. Bibota contabilizou 26 gols pelo Campeonato Português, que renderam a artilharia da competição, mas ainda assim não permitiram que o Porto passasse da terceira colocação. Entretanto, a primeira conquista do atacante ocorreu naquela mesma temporada, pela Taça de Portugal. Depois de nove anos sem levar o troféu, o Dragão derrotou o Braga por 1 a 0 na finalíssima. Gol de quem? Do camisa 9, é claro. Aquele era apenas o início dos sucessos registrados sob o comando do técnico José Maria Pedroto e de Jorge Nuno Pinto da Costa, então diretor de futebol, que tempos depois se tornaria presidente.

O Porto conquistou o título transformador de sua história em 1977/78. Até então, o Dragão havia levado cinco vezes o Campeonato Português. O troféu faturado naquela temporada seria o primeiro de uma série de 22 ligas faturadas desde então. E a glória da equipe de José Maria Pedroto dependeu dos muitos gols de Fernando Gomes. O atacante pela segunda vez foi artilheiro do Portuguesão. Assinalou 25 tentos, que podiam nem configurar sua melhor marca, mas impulsionaram a campanha vitoriosa. Seriam dois gols no triunfo sobre o Braga, que fechou aquela temporada. Aos 21 anos, o camisa 9 já ganhava a gratidão dos portistas. Viria mais.

Em 1978/79, o Porto já se sagrou bicampeão. E pela terceira temporada consecutiva Fernando Gomes emplacou como artilheiro do Portuguesão. Seriam mais 23 gols na conta do atacante, com algumas atuações destrutivas. A sequência seria quebrada apenas em 1979/80, quando o Sporting terminou na primeira colocação. Bibota também não seria goleador, apesar dos 23 tentos, superado por Rui Jordão. Seria a deixa para que Gomes aceitasse uma proposta do exterior, num momento de crise política na qual 15 jogadores se despediram do Porto, após as demissões de Pinto da Costa e Pedroto pela perda do título. Aos 23 anos, o camisa 9 assinou com o Sporting de Gijón. Tinha uma responsabilidade imensa ao substituir Quini, maior ídolo da história dos rojiblancos. O camisa 9 da Espanha na Copa de 1978 tinha três artilharias de La Liga nas sete temporadas anteriores. A missão do novato lusitano era suplantá-lo.

Quini continuou sendo artilheiro de La Liga no Barcelona. Enquanto isso, o início de Fernando Gomes em Gijón teve seus percalços. O atacante sofreu com lesões e disputou apenas quatro partidas no Campeonato Espanhol 1980/81. A volta por cima aconteceu apenas na segunda temporada, quando se manteve mais saudável e contabilizou 11 gols em 23 aparições. Bibota seria fundamental para livrar os rojiblancos do risco de rebaixamento, especialmente pelos dois gols nos 4 a 0 sobre o Las Palmas na última rodada. Foi o que salvou a equipe da queda pelos critérios de desempate. Ao final daquela campanha, o camisa 9 preferiu se despedir das Asturias e retornou a Portugal. A torcida no Estádio das Antas o esperava de braços abertos. Sua recontratação tinha sido até promessa de campanha quando Pinto da Costa foi eleito presidente em 1982 e o dirigente não mediu esforços para viabilizar o negócio. A primeira de suas famosas transferências certeiras.

A volta de Fernando Gomes ao Porto marcou um de seus melhores momentos individuais. O atacante anotou surreais 36 gols em 29 aparições pelo Campeonato Português de 1982/83. Teve longas sequências famintas e até partida que rendeu cinco gols. Os portistas ficaram com o vice-campeonato, mas nenhum outro jogador ao redor da Europa marcou tantos gols. A Chuteira de Ouro como maior artilheiro de uma liga nacional europeia ia pela primeira vez a Bibota, numa honraria que não ficava com um goleador do Portuguesão desde 1973/74. Gomes ainda seria eleito o melhor jogador em atividade em Portugal naquela temporada de 1982/83.

Fernando Gomes marcou “só” 21 gols no Campeonato Português em 1983/84, com nova artilharia do torneio. O Porto seria vice-campeão, mas se consolou com o título da Taça de Portugal. E aquela temporada seria marcada por outras razões. O clube chegou à final da Recopa Europeia, com gols importantes de Gomes numa campanha em que Dinamo Zagreb, Rangers e Aberdeen sofreram com a efetividade do camisa 9. Só não daria para passar por uma fortíssima Juventus na final. Paralelamente, a seleção portuguesa encerrava um hiato de 18 anos fora das competições internacionais, ao se classificar para a Euro 1984. Bibota disputou pela primeira vez um grande torneio. O atacante seria reserva na maior parte da campanha, mas escreveu seu nome numa marcante caminhada até a semifinal, em que a eliminação aconteceu num épico vencido pela França por 3 a 2.

O quase da temporada anterior seria encerrado em grande forma em 1984/85. O Porto reconquistou o Campeonato Português depois de seis anos. Fernando Gomes viveu sua temporada mais letal, com nada menos que 39 gols em 30 partidas. A sequência mais absurda aconteceu de dezembro a abril, com 27 gols num intervalo de 14 rodadas, sem passar em branco em uma partida sequer. O montante rendeu não só a artilharia isolada, mas também sua segunda Chuteira de Ouro. Desde Eusébio um jogador lusitano não fazia tantos gols na liga nacional. Já a conquista do bicampeonato português em 1985/86 seria importante para o que viria logo depois. Bibota, pra variar, seria o artilheiro da liga – pela terceira vez consecutiva e pela sexta na carreira. O camisa 9 guardou mais 20 gols.

Neste ínterim, Fernando Gomes contribuiu ativamente para a classificação de Portugal à Copa do Mundo de 1986, na primeira participação do país no torneio em 20 anos. O atacante anotou cinco gols no qualificatório, incluindo um fundamental na vitória por 1 a 0 sobre a Suécia na visita ao Estádio Rasunda. A Seleção das Quinas até ganhou na estreia da Inglaterra, mas a sequência da campanha no grupo da morte daquele Mundial decepcionou. Com derrotas para Polônia e Marrocos, os lusitanos terminaram eliminados logo na primeira fase. Seria praticamente um ponto final em seus serviços para a equipe nacional, com só mais três aparições depois disso. Bibota anotou 11 gols em 47 partidas pela Seleção das Quinas.

A maior temporada do Porto no Século XX aconteceu em 1986/87. O Dragão definitivamente expandiu suas fronteiras e conquistou a Copa dos Campeões da Europa. Fernando Gomes era o capitão do time e anotou cinco gols na campanha. Guardou quatro nos 9 a 0 da estreia contra o Rabat Ajax, de Malta, e também selou a vitória por 2 a 1 sobre o Dynamo Kiev na semifinal. O adversário na inédita decisão seria o Bayern de Munique. Todavia, Bibota não jogou. Dez dias antes da finalíssima em Viena, o veterano sofreu uma fratura em treino com os juniores. Sua ausência poderia ser um baque aos companheiros, mas ele prometeu que voltaria para decidir o Mundial. E os portistas comandados pelo técnico Artur Jorge cumpriram a missão mesmo sem o artilheiro, com os gols de Rabah Madjer e Juary na virada por 2 a 1 sobre os bávaros.

Fernando Gomes voltou a tempo de conquistar a Supercopa Europeia contra o Ajax. E em Tóquio, na final do Mundial contra o Peñarol, o matador comandou o ataque do Porto. Não apenas estava pronto para ficar com o troféu, como também seria determinante na vitória. Em meio à neve que tomava o Estádio Nacional, o veterano abriu a contagem no primeiro tempo. O triunfo por 2 a 1 acabaria fechado por Madjer na prorrogação. O garoto nascido e crescido no Porto levava o clube de seu coração ao topo do mundo. Não havia nada mais simbólico.

A última grande temporada de Fernando Gomes pelo Porto aconteceu em 1987/88. O atacante teve participação ativa na dobradinha nacional, com as conquistas do Campeonato Português e da Taça de Portugal. O veterano guardou 21 gols na liga, a dois de alcançar Paulinho Cascavel no topo da artilharia. Já a última temporada com o Dragão veio em 1988/89, com poucas aparições e apenas cinco gols pelo Portuguesão, a pior marca da carreira. Em conflito com a comissão técnica portista, ao questionar um dia em que dirigentes foram servidos antes que os jogadores num jantar às vésperas de uma partida, o atleta de 33 anos recebeu um processo disciplinar e se despediu da torcida no Estádio das Antas. Mas não se aposentou de imediato: preferiu experimentar uma passagem por Lisboa e vestiu a camisa do Sporting.

O primeiro ano de Fernando Gomes pelo Sporting não chamou tanta atenção. O atacante marcou nove gols e os leoninos terminaram na terceira posição do Campeonato Português 1989/90. O grand finale ficaria guardado para a temporada 1990/91. Bibota assinalou 22 gols na liga, sua maior marca em seis anos, por mais que os sportinguistas de novo tenham repetido o terceiro lugar. Ficou o sonho europeu de uma duradoura caminhada na Copa da Uefa. Os lisboetas foram até as semifinais. Fernando Gomes contribuiu com cinco gols, mas os alviverdes sucumbiram diante da Internazionale do trio alemão – Lothar Matthäus, Jürgen Klinsmann e Andreas Brehme. Naquela temporada final, Gomes ainda teve contato com Luis Figo, que surgia como um prodígio nos profissionais do Alvalade.

Após se aposentar, Fernando Gomes não se manteve totalmente afastado do futebol. Ele voltou ao Porto na posição de dirigente. Trabalhou principalmente na categoria de base e na observação de atletas. Os últimos anos seriam duros com Bibota. Lutou contra um câncer no pâncreas, enquanto perdeu uma filha. Apesar disso, não deixou de ser repetidamente homenageado, em justíssimos reconhecimentos em vida. Despede-se como uma parte bonita da história. Talvez não o maior craque do Porto em todos os tempos, mas muito provavelmente o ídolo mais identificado com o clube. Letal, multicampeão, transformador.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
Botão Voltar ao topo