A história do Espérance, rival do Flamengo que transcende futebol com luta social e política na Tunísia
Clube do norte africano é potência no país e expõe relação entre esporte e questões populares

Um artigo no site da Champions League africana define o Espérance de Tunis como “ameaça silenciosa” do Mundial de Clubes de 2025. A descrição sugere alerta aos adversários do grupo D da Copa do Mundo dos Clubes, Flamengo, Chelsea e Los Angeles FC, ao mesmo tempo em que remonta a origem combativa do time tunisiano que ousou usar o esporte nas relações sociais.
O Espérance foi criado de forma humilde em 1919 por dois jovens, o sapateiro Mohamed Zouaoui (18 anos) e o funcionário público Hédi Kallel (20 anos). A dupla não tinha experiência no segmento esportivo, mas queria desenvolver um clube que representasse a identidade local de Tunis, a capital. À época, a Tunísia era colônia francesa e as equipes de futebol repletas de atletas da França e da Espanha, cujas religiões geralmente eram Cristianismo ou Judaísmo.
Adversário do Flamengo, Espérance lutou por independência da Tunísia

Zouaoui e Kallel instituíram o Espérance em um café chamado “l'Espérance” (a esperança, em português) no bairro Bab Souika, localizado na medina de Tunis. Os fundadores batizaram o time inicialmente de “Café de l'Esperance” (Café da Esperança).
O nome ultrapassava a barreira dos estádios e realmente buscava ser lugar de esperança à população, sem relação com Cristianismo ou Judaísmo e de origem 100% tunisiana. A situação até levou a equipe a ser conhecida como “clube muçulmano” — a religião oficial na Tunísia é o Islã.
Além disso, os precursores almejaram se estabelecer contra a colonização, embora os primeiros passos só tenham sido possíveis devido a um francês.
Isso porque a lei em vigor exigia um cidadão da França na administração de associações, o que obrigou a dupla a recorrer ao secretário-geral do governo na ocasião, Louis Montassier, para o posto de presidente honorário do então “Café de l'Esperance”. Pouco depois de o clube ser autorizado, a legislação mudou, e o tunisiano Mohamed Melki assumiu o cargo.
O corpo diretivo também teve ao longo dos anos o advogado Habib Bourguiba, que fundou o Partido Neo-Destour (nacionalista e liberalista) e endossou o coro por independência da Tunísia. O político viu no futebol uma forma de se comunicar com a população e reforçar ideais patriotas.
O estudante de Cinema e criador de conteúdo Anis Hattab, torcedor do Espérance, explica à Trivela como isso acontecia.
— Bourguiba entendeu que o futebol poderia ser usado como uma ferramenta poderosa durante a era colonial. Não com apoio financeiro ou favoritismo, mas instrumento social. O Espérance, com raízes e liderança tunisiana, era um dos poucos clubes que não estavam sob influência francesa. Bourguiba reconheceu isso e usou momentos em torno do futebol como espaço para expressar a identidade nacional sem confrontar a autoridade colonial.
O mecanismo fez do advogado um “visionário”, segundo Hattab. “O Espérance tornou-se um símbolo de resistência, dignidade e unidade, e Bourguiba viu como essa paixão poderia servir à causa maior da independência”.

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Espérance cresceu pós-independência da Tunísia com laços no governo
A equipe começou a fazer sucesso a nível nacional em 1936 e, 20 anos depois, o país declarou independência da França. Bourguiba se tornou primeiro-ministro na ocasião e presidente da República em 1957. O clube, dessa forma, tinha forte ligação com o governo.
Essa conexão perdurou nos 30 anos de mandato do advogado e na presidência seguinte, o regime repressivo de Zine El Abidine Ben Ali. Slim Chiboub, que assumiu o posto de mandatário do Espérance em 1989, era genro de Ben Ali.
Chiboub deixou o comando do clube em 2004, mas o grupo manteve a crescente. Do “Café de l'Esperance” em Tunis, a “ameaça silenciosa” chegou ao status de potência do futebol tunisiano com 16 taças entre 1988 e 2011.
No lado político, o movimento popular chamado de Revolução de Jasmim, que culminou na “Primavera Árabe”, derrubou Ben Ali do governo em 2011.
‘Taraji Dawla': O orgulho dos torcedores
Atualmente, a galeria de troféus do Espérance inclui quatro taças da Champions League africana, 34 do Campeonato Tunisiano, 16 da Copa da Tunísia e sete da Supercopa Tunisiana.
As honrarias fazem dos “Sang et Or” (Sangue e Ouro, em português — alusão ao uniforme) o maior campeão tunisiano e são motivo de orgulho aos torcedores. O plantel vai ao Mundial de Clubes em busca do título inédito e com apoio da massa de fãs que fazem a tradicional “Craquage”, termo em referência à fumaça proporcionada pelos sinalizadores.
“O público ‘espérantiste' é conhecido pela paixão sem limites, celebrações e pirotecnias. Nas vitórias, o bairro de Bab Souika (onde o clube surgiu) se inflama. Esse fervor, que mistura todas as classes sociais, faz do Espérance uma instituição única na Tunísia”, diz o jornalista Hakim Kraiem, do site “Top Mercato”.
— Os torcedores fazem do craquage um ritual essencial. Acreditam que uma partida sem craquage não tem o mesmo gosto.
L’incroyable craquage lors du derby de Tunis hier entre l’Espérance Tunis et le Club Africain. 😱🇹🇳🎇pic.twitter.com/pLyC2xsbnV
— Actu Foot (@ActuFoot_) March 17, 2024
Kraiem afirma ainda que o papel do Espérance na luta nacionalista, as raízes populares e o sucesso contínuo fazem do clube um “monumento vivo” e um pilar tunisiano pela influência além do futebol.
Isso desagua no “Taraji Dawla”. É bom se acostumar com a expressão, que deve ser amplamente usada durante a competição nos Estados Unidos e significa “Espérance é um estado”, em português.
— O Espérance é mais que um clube. Cuida dos seus como uma nação. Jogadores, comissão e torcedores sentem que pertencem a um sistema que os apoia. O clube é poderoso, dominante e estruturado, por isso é chamado de ‘estado' — ressalta Hattab.
Há ainda a alcunha “Mkachkha”, que em português é “aqueles que estão sempre alegres e orgulhosos” e serve para se referir aos torcedores do Espérance que esbanjam sorrisos por onde passam.
Hattab destaca o desejo de ver esse espírito no torneio e almeja que o time mostre a cultura tunisiana e o talento com a bola no pé diante ao mundo. Uma das oportunidades para isso é logo na estreia diante do Flamengo nesta segunda-feira, às 22h (de Brasília), o Lincoln Financial Field, na Filadélfia.
— O Flamengo é um dos maiores clubes do Brasil. Jogadores como Jorginho e Bruno Henrique são bem conhecidos. Enfrentar o Flamengo será um grande desafio e um grande momento do futebol.
Fica de alerta para a equipe de Filipe Luís a veia aguerrida dos Sangue e Ouro. Hattab afirma que os jogadores se entregam em campo nos lemas “suor antes do estilo” e “identidade em primeiro lugar, tática em segundo”. As principais estrelas estão no ataque: Youcef Belaili, argelino, e os brasileiros Yan Sasse e Rodrigo Rodrigues.
“Belaili é conhecido pelo talento, criatividade e atuações decisivas. Sasse e Rodrigues somam ritmo, técnica e qualidade de finalização”, comenta o estudante.
