As histórias das outras duas visitas do Flamengo a Marrocos, com direito a vitória sobre os campeões do mundo
O Flamengo foi campeão num torneio amistoso em 1968 e voltou em 1985, enfrentando nas ocasiões os clubes que serviam de base à seleção marroquina

A presença do Flamengo no Marrocos para a disputa do Mundial de Clubes remete às outras duas visitas dos rubro-negros ao país do norte da África, ambas rendendo passagens dignas de nota. A primeira, em 1968, valeu ao clube uma prestigiosa conquista, sacramentada com uma grande vitória sobre os argentinos do Racing, coincidentemente os detentores do título de campeão mundial interclubes naquele momento. Já a segunda viagem, em 1985, foi mais turbulenta e não tão bem-sucedida, mas registrou um duelo interessante em Casablanca contra um bom time do Wydad, que por pouco não se repetiu na atual competição da Fifa.
Na primeira vez, uma conquista muito prestigiosa
A primeira visita do Flamengo ao Marrocos aconteceu ao final de uma excursão internacional iniciada na Espanha em meados de agosto de 1968. A primeira parada havia sido na Catalunha, onde o clube disputou o Troféu Joan Gamper, promovido pelo Barcelona no Camp Nou. Depois de derrotar o Athletic Bilbao na semifinal por 1 a 0 com um golaço de bicicleta do atacante Silva “Batuta” (que passara pelos blaugranas no ano anterior), os rubro-negros foram derrotados pelos donos da casa por 5 a 4 num jogo insano, repleto de reviravoltas.
Em seguida, a delegação rumou para A Corunha, onde participou da primeira edição do Torneio Conde de Fenosa, disputando apenas uma partida, derrota de 2 a 0 para o Racing de Avellaneda – com quem muito em breve os rubro-negros voltariam a medir forças e teriam a oportunidade da revanche. De lá, o clube da Gávea cruzou a fronteira portuguesa e foi para Lisboa, tendo como adversário o tradicional Belenenses, no Estádio do Restelo, em jogo válido pelo troféu de mesmo nome. A taça ficou com o Flamengo com uma vitória por 3 a 2.
Depois, os rubro-negros seguiram para o sul e atravessaram o estreito de Gibraltar com destino ao Marrocos. O ponto final da excursão era a participação no Troféu Mohamed V, cujo nome era homenagem ao monarca marroquino que negociara com os franceses a independência do país em 1956 e morreria em 1961, um ano antes da criação da competição. Disputada anualmente (com poucas interrupções) entre 1962 e 1980, ela seria revivida sob o nome simples de Torneio de Casablanca para três derradeiras edições em 1986, 1988 e 1989.
Dentre os famosos torneios de verão realizados no hemisfério norte, aquele tinha o diferencial de ser o único na África. Ao longo de sua história, contaria com a participação de gigantes do futebol mundial, como Real Madrid, Barcelona, Atlético de Madrid, Bayern de Munique, Internazionale, Boca Juniors e Peñarol, o que evidencia seu prestígio. Quatro clubes brasileiros fizeram parte deste seleto grupo: Flamengo, São Paulo, Internacional e Grêmio. Só os rubro-negros, porém, tiveram a honra de levantar a enorme e imponente taça oferecida.
Dirigido pelo baiano Válter Miraglia, ex-centromédio do time nos anos 1940 e 1950 e técnico de várias passagens pela base do clube, o Flamengo chegou ao Marrocos com dois desfalques: o zagueiro uruguaio Manicera tinha um estiramento muscular no adutor esquerdo, enquanto o ponta-de-lança Fio estava vetado por uma fissura no dedo mínimo do pé esquerdo. Assim, o esforçado Guilherme, ex-Campo Grande, entrava na zaga e o paraguaio Reyes era improvisado numa posição mais adiantada, encostando nos atacantes.

De resto, o time escalado para a partida de estreia na competição contra o FAR Rabat, clube das forças armadas marroquinas, começava pelo goleiro Marco Aurélio. Na defesa, também estavam os históricos laterais Murilo e Paulo Henrique e o quarto-zagueiro baiano Onça. A dupla de meio-campo reunia o clássico volante Carlinhos “Violino” e o dinâmico Liminha. Já na frente, a linha incluía o ponta-direita Néviton, também baiano, o camisa 10 Silva “Batuta” e o jovem curinga Rodrigues Neto na ponta-esquerda, ajudando a compor o meio-campo.
O jogo aconteceria no Stade d’Honneur, inaugurado em 1955 com o nome de Marcel Cerdan (em homenagem a um boxeador francês que iniciou sua carreira em Marrocos), mas rebatizado um ano depois com a independência do país. Atual campeão marroquino, o FAR Rabat contava com vários jogadores que dali a pouco menos de dois anos disputariam a Copa do Mundo do México pelos Leões do Atlas: o goleiro Allal Ben Kassou, os defensores Abdallah Lamrani, Jalili Fadili e Boujemaa Benkhrif, os meias Driss Bamous e Mohammed Maaroufi e o atacante Abdelkader El Khiati.
Além de ter a torcida local a seu favor, o time do FAR atuaria diante do rei do Marrocos, Hassan II, filho de Mohamed V. No entanto, o Flamengo é que abriria o placar com Liminha aos 15 minutos. Com futebol veloz e aguerrido, o FAR reagiria, empatando aos 34 minutos com Maaroufi e criando chances para virar o placar. O Fla conseguiu se segurar e voltou mais objetivo para a etapa final. Pressionou durante quase todo o segundo tempo a defesa local, mas só conseguiu marcar o gol da classificação aos 40 minutos, com Silva.
Antes disso, porém, a influência de Hassan II já havia interferido no andamento da partida num lance curioso. Com o placar em 1 a 1, a bola saiu pela lateral num ataque do Flamengo, sendo devolvida por um jogador do banco de reservas rubro-negro a Paulo Henrique para o arremesso antes da chegada do gandula. Silva recebeu a cobrança rápida, driblou seu marcador e chutou da quina da área, batendo o goleiro. Mas o rei não concordou e obrigou o árbitro (também marroquino) a anular o lance, no que surpreendentemente foi atendido.
Quando a nova saída estava para ser dada, o juiz foi avisado do desagrado do monarca e invalidou o lance, voltando atrás e apontando tiro de meta para o FAR. Mas não adiantou: no fim, a vitória acabou mesmo com o Fla por 2 a 1. E o adversário na decisão seria o Racing, que bateu o Saint-Étienne por 1 a 0, gol de Roberto Salomone, na outra semifinal. O time argentino era a grande estrela do torneio. Não era para menos: tratava-se do campeão da Taça Libertadores da América do ano anterior e, na ocasião, ainda detentor do título mundial interclubes.

A equipe dirigida por Juan José Pizzuti mantinha a base que vencera outro esquadrão lendário, o Celtic de Jock Stein, numa dura série de três jogos realizada entre outubro e novembro de 1967. Estariam em campo no Marrocos nomes como o goleiro Agustín Cejas, o lateral uruguaio Nelson Chabay, os meias Juan Carlos Rulli e Enrique “Quique” Wolff e os atacantes Juan Carlos Cárdenas e Humberto Maschio, além de outros que marcariam época no clube, como os atacantes Jaime Martinolli e Roberto Salomone. Um time experiente e bastante técnico.
O Flamengo, por sua vez, apresentou algumas mudanças em relação ao time que venceu o FAR, justificadas em parte pelo cansaço da maratona da excursão. Claudinei entrou no gol no posto de Marco Aurélio. No meio, o armador Cardosinho – trazido do interior paulista junto com Liminha – ganhava uma chance ao lado de seu antigo colega na vaga de Carlinhos. Na frente, o habilidoso ponta-de-lança Luís Cláudio, ex-Santos (e que havia atuado no próprio Racing entre 1964 e 1967), e o atacante Diogo, ex-Prudentina, substituíam Néviton e Reyes.
Mesmo com alguns jogadores mais descansados, o Flamengo logo assistiu ao Racing tomar conta do jogo e abrir o placar com apenas cinco minutos, quando o atacante Marcos Cominelli escorou para as redes um cruzamento de Cárdenas. Ao longo da primeira etapa, aos poucos os rubro-negros conseguiram se recolocar na partida e equilibrar as ações, sendo enfim premiados com o empate um minuto antes do intervalo, num lance em que Cejas saiu em falso após o cruzamento, e Luís Cláudio concluiu para o gol vazio, igualando o marcador.
O jogo recomeçou parelho na etapa final, mas aos 23 minutos o Flamengo passou à frente num chute de Liminha que surpreendeu Cejas. Com o Racing tonto, Silva ampliou aos 30 em grande jogada individual, passando por dois defensores antes de finalizar. O time argentino só conseguiu se reorganizar já perto do fim do jogo e descontou aos 40 com o ponteiro Salomone. Mas os rubro-negros seguraram a vantagem e confirmaram o triunfo sobre os campeões mundiais, que valeu também como o troco da derrota em A Corunha.
Ao fim do jogo, o rei Hassan II desceu das tribunas para entregar a taça ao capitão Paulo Henrique, que precisou da ajuda dos companheiros para erguer o imenso e pesado troféu sob aplausos entusiasmados do público e enquanto uma banda marcial entrava em campo tocando um tema comemorativo da conquista. A delegação rubro-negra retornou ao Rio dali a dois dias, recebida com festa pela torcida no aeroporto do Galeão e exibindo a belíssima taça, trabalhada em ouro e prata. Digna do feito de derrotar um campeão do mundo.
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Quase duas décadas depois, o turbulento retorno
A segunda passagem do Flamengo por Marrocos foi mais tumultuada e menos bem sucedida, embora o time não chegasse a perder nas outras duas partidas que fez em solo marroquino. Aconteceu durante uma longa pausa de dois meses e meio (!) no Brasileirão de 1985, entre o fim da primeira fase e o início da segunda, devido aos jogos entre seleções sul-americanas por amistosos e pelas Eliminatórias da Copa de 1986. Então dirigido por Zagallo, o time do Flamengo fez rápido giro pelo norte da África na virada de abril para maio jogando na Líbia e no Marrocos.
Os rubro-negros, que já iniciavam as tratativas para repatriar Zico (então na Udinese), viajaram com muitas baixas. Jorginho e Leandro, às voltas com lesões desde março, sequer embarcaram. Bebeto e Mozer, convocados pela seleção brasileira do técnico Evaristo de Macedo, também não puderam se juntar ao time, assim como Fillol, defendendo a seleção argentina. Por outro lado, Tita, que ainda não havia entrado em campo naquele ano devido a uma complicada renovação contratual, resolvera sua situação e estava confirmado no grupo.
O meia-atacante seria assim um dos poucos jogadores experientes – os outros eram o goleiro Cantarele, os meias Andrade e Adílio e o ponta-esquerda Marquinho, ex-Vasco, que chegara ao clube naquele ano – em um elenco formado em sua maioria por jovens. No entanto, um dos mais promissores deles, o lateral-esquerdo Adalberto, estaria de fora do primeiro jogo da excursão contra a seleção da Líbia, forçando Zagallo a improvisar nas duas laterais: o volante Bigu entraria na direita e o ponta-de-lança Adílson Heleno na esquerda.
O primeiro adversário do Flamengo, aliás, vivia momento interessante de seu futebol: em 1982, a Líbia havia sediado e disputado pela primeira vez a Copa Africana de Nações, terminando como vice-campeã após perder a final para Gana nos pênaltis. E chegaria muito perto de se classificar para a Copa do Mundo do México em 1986, superando Níger (que desistiu), Sudão e Gana, antes de decidir uma das duas vagas do continente contra Marrocos, de quem perderia na cidade de Rabat por 3 a 0, antes de vencer na volta, em casa, por 1 a 0.
O bom futebol dos líbios, além dos inúmeros desfalques rubro-negros, o duro piso sintético do Estádio Nacional de Trípoli e a falta de ambientação ao fuso horário seriam apontados por Zagallo como determinantes na derrota por 2 a 0, com dois gols na etapa final, no primeiro amistoso, disputado em 21 de abril. No mesmo dia, era anunciada no Brasil a morte do presidente eleito Tancredo Neves, o que levaria ao adiamento, e posterior cancelamento, de dois amistosos que o Flamengo faria no país, embarcando em seguida para o Marrocos.
O primeiro dos dois jogos agendados no país aconteceria uma semana depois, contra o Kawkab, de Marraquexe, clube que havia sido um dos primeiros campeões do país após a independência, em 1958, mas que voltava então de passagem pela segunda divisão. Com o retorno de Adalberto na lateral-esquerda, o Fla entrou com a escalação que Zagallo tinha como ideal com os nomes disponíveis: Cantarele no gol; Bigu na lateral-direita; Guto e Ronaldo na zaga; Andrade, Adílio e Júlio César Barbosa no meio; Tita, Chiquinho e Marquinho no ataque.

O gramado do estádio El Harti desta vez era natural, mas o piso bastante duro e irregular e o estilo fechado do adversário provocaram um jogo sem emoções, que frustrou o público e terminou com empate em 0 a 0. Os torcedores só comemoraram na véspera da partida, quando uma chuva torrencial, que há dois anos não acontecia na cidade, chegou bem no meio do treino rubro-negro, assistido por grande número de espectadores. No dia seguinte ao jogo, a delegação rubro-negra seguiu para Casablanca, onde faria o último duelo da excursão.
O adversário seria o Wydad, que contava com nomes destacados do futebol marroquino. Um deles era o goleiro Ezzaki Badou, conhecido como “Zaki”, tido como um dos melhores da posição no futebol africano na história e que mais tarde se tornaria ídolo no Mallorca. Outro era o meia-armador Aziz Bouderbala, jogador de estilo clássico e que naquela época já defendia o Sion, mas aparentemente aproveitou uma folga no calendário suíço (a seleção helvética também jogaria pelas Eliminatórias) para reforçar a equipe que o revelara neste amistoso.
Ambos brilhariam no ano seguinte na histórica campanha dos Leões do Atlas na Copa do Mundo, a ponto de terminarem em primeiro e segundo lugar, respectivamente, na eleição de Jogador Africano do Ano de 1986. Mas havia outros nomes dignos de nota: os meias Mohammed Sahil e Fadel Jilal, que também integrariam a seleção marroquina no Mundial e o atacante Hassan Nader, que jogaria a Copa de 1994. No comando, o francês Jean Vincent, ex-atacante do Stade de Reims e dos Bleus no Mundial de 1958 e técnico de Camarões no de 1982.
O Flamengo teria uma alteração no meio-campo em relação ao time do jogo anterior, entrando o ponta-de-lança Gilmar “Popoca”, destaque da seleção olímpica nos Jogos de Los Angeles em 1984 (que na primeira fase enfrentou e venceu os próprios marroquinos), no lugar de Júlio César Barbosa. E voltaria, quase 17 anos depois, ao mesmo Stade d’Honneur – agora reformado, ampliado e renomeado Estádio Mohamed V – em que havia conquistado o prestigioso troféu internacional ao derrotar o Racing em setembro de 1968.
Agora com gramado bom, os rubro-negros abriram vantagem no primeiro tempo. O placar foi inaugurado aos sete minutos pelo centroavante Chiquinho, revelação do Botafogo de Ribeirão Preto que havia se sagrado artilheiro do Paulistão de 1984, mas não chegaria a se firmar na Gávea, sendo vendido ao Benfica em meados do ano seguinte. Pouco antes do intervalo, aos 42, Gilmar “Popoca” aproveitou rebatida de Zaki e, com o gol vazio, ampliou. Na etapa final, porém, o Wydad empataria em 2 a 2, com dois tentos de Hassan Nader.
Desta vez, os protestos rubro-negros ficaram por conta da má atuação do árbitro e da violência do adversário. Em todo caso, a delegação chegou ao Rio de Janeiro em 3 de maio (dois dias após o jogo com o Wydad) com os bolsos cheios, tendo faturado cerca de US$ 70 mil (o equivalente a Cr$ 350 milhões na época) pela participação nos três amistosos. No ano seguinte, o time juvenil rubro-negro (que incluía o lateral-esquerdo Leonardo) venceria um torneio mundial da categoria no país. Mas a equipe principal só retornaria quase 40 anos depois.