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Como o Leicester foi do milagre do título ao rebaixamento em apenas sete anos

A autópsia da queda de um clube que conquistou o mundo do futebol com uma das caminhadas mais improváveis da história

O título inglês do Leicester foi muito bem documentado. O mais próximo de um daqueles filmes de esporte da Sessão da Tarde: um time que havia acabado de escapar por pouco do rebaixamento, treinado por um técnico derrotado pelas Ilhas Faroe, sem grandes estrelas e com artilheiro operário, quase literalmente, conseguiu quebrar a hegemonia financeira da liga que talvez seja a em que o dinheiro fala mais alto. Mágico, épico, milagroso. E uma vez no topo, o único caminho era para baixo. Sete anos depois daquela campanha, as Raposas estão rebaixadas para a segunda divisão.

A conquista da Premier League é um marco na história do Leicester, mas também um ponto tão fora da curva nos processos habituais do futebol que outra data ganha mais relevância para medir a velocidade dessa queda. Dois anos (e duas semanas) atrás, Wes Morgan e Kasper Schmeichel estavam levantando a Copa da Inglaterra em Wembley. Ali, novamente brigando de verdade por vaga na Champions League, o Leicester parecia estabelecido no segundo pelotão.

E de repente, tudo desmoronou, em uma mistura de uma conjuntura desfavorável, erros cometidos, o esgotamento natural de um ciclo e as dificuldades de tentar acompanhar clubes mais ricos.

O pós-título

Ranieri ao lado de Andrea Bocelli, na festa do Leicester (Foto: Getty Images)

Podemos começar no dia seguinte ao show de Andrea Bocelli que forneceu a trilha sonora à festa da entrega do troféu no King Power Stadium. Pouco tempo depois de quase ser rebaixado, era impossível que o Leicester tivesse um plano pronto para atender à nova demanda: montar um time para a Champions League e para defender o título inglês. A primeira missão foi tentar manter a sua espinha dorsal, relativamente bem sucedida: da Santíssima Trindade, foi impossível convencer N’Golo Kanté a recusar a proposta do Chelsea, mas Riyad Mahrez e Jamie Vardy permaneceram.

O Leicester levou um choque de realidade quase cruel. Apenas três vitórias nas 14 primeiras rodadas da Premier League seguinte. Ninguém esperava que fosse bicampeão e, com uma boa campanha na Champions em paralelo e uma compreensível ressaca, a sensação era que uma hora poderia emplacar uma sequência para somar os pontos necessários para pelo menos evitar o rebaixamento. No entanto, cinco derrotas consecutivas depois da virada do ano ligaram o sinal de alerta e, assustados, os diretores tiveram que tomar a decisão que não queriam tomar.

Claudio Ranieri foi demitido em 23 de fevereiro, menos de um ano depois de completar uma das histórias mais fantásticas do futebol. Meio frio, meio doloroso, mas deu certo. Craig Shakespeare assumiu interinamente e conseguiu dar a guinada quase imediatamente. Evitou o rebaixamento por dez pontos e conseguiu eliminar o Sevilla nas oitavas de final, fazendo jogo duro com o Atlético de Madrid na fase seguinte. O bastante para ser mantido.

Aquele primeiro mercado pós-título foi uma situação excepcional na história do clube, que de repente tinha as receitas de um campeão inglês e participante da Champions League. Era uma oportunidade de ampliar e intensificar uma política de recrutamento que descobriu Kanté, Mahrez e companhia e dá para debater se ela foi muito bem aproveitada. E podemos estender o recorte para a janela da temporada seguinte também, ainda com rescaldos da conquista.

Em dois anos, o Leicester gastou € 175 milhões em reforços. O saldo líquido foi menor por causa de duas grandes vendas – Kanté e Danny Drinkwater ao Chelsea – e outras pequenas. E houve apenas dois acertos inequívocos. Wilfred Ndidi, o sucessor espiritual de Kanté, um ponto de equilíbrio no meio-campo e entre os jogadores mais importantes do clube nos anos seguintes, chegou do Genk em janeiro de 2017. Alguns meses depois, Harry Maguire foi contratado do Hull City. Sim, sim, sim, dá para discutir o quanto Maguire é realmente um bom zagueiro, mas ele gerou um lucro de € 70 milhões em dois anos, um sucesso estrondoso dentro da estratégia das Raposas.

Nem todo o resto do dinheiro foi desperdiçado. Nampalys Mendy teve seus momentos como peça de rotação, e Iheanacho fez partidas importantes com Brendan Rodgers, decisivo ao título da FA Cup. Alguns dos erros não têm muita defesa, mas outros, como a dupla do Sporting, eram justificáveis. Islam Slimani vinha de uma temporada de 27 gols em 33 rodadas no Campeonato Português, e Adrien Silva era um jogador de seleção e capitão dos Leões. Não deu certo, acontece, e Silva ainda foi prejudicado por um erro de registro que o impediu tanto de voltar a Lisboa quanto de estrear na Premier League até seis meses depois do fechamento da janela.

O Leicester não aproveitou ao máximo o único momento em sua história que poderia prometer Champions League para os reforços ou surfar em todas as boas sensações que gerou durante aquela campanha com Claudio Ranieri. Esses dois mercados não foram desastrosos e nem quebraram a banca. Uma hora voltaria a brilhar com sua tática de identificar talento jovem e ambicioso e lhe oferecer uma excelente vitrine na liga mais rica do mundo. O salto que deu pós-título, porém, foi da briga contra o rebaixamento para o meio da tabela e talvez desse para almejar um pouco mais.

Em paralelo, faltou direção ao projeto esportivo. E se estamos fazendo a autópsia do Leicester, a permanência de Shakespeare talvez não tenha sido a melhor pedida. Depois da montanha-russa do título inglês ao risco de rebaixamento, com uma Champions League no meio do caminho e a saída de Ranieri, uma nova etapa estava no horizonte. Era o momento para começar do zero, com uma folha em branco e um nome forte desde a pré-temporada, ajudando com os reforços. Shakhespeare foi demitido ainda em outubro da campanha seguinte.

O seu substituto foi uma bola de segurança, um nome que nem empolgava e nem causava frio na espinha e que no fim entregou o que dele se esperava. Claude Puel era campeão francês com o Monaco, semifinalista da Champions League com o Lyon e havia conseguido um ótimo quarto lugar com o Nice antes de ser contratado para dar sequência ao trabalho iniciado por Mauricio Pochettino e Ronald Koeman no Southampton. O oitavo lugar não foi nem um pouco desprezível aos Saints, e no Leicester ele conseguiu ficar confortavelmente no meio da tabela em seu primeiro ano. O segundo começou com uma tragédia: a morte do dono Vichai Srivaddhanaprabha em um acidente de helicóptero no estádio do clube.

O estilo de jogo de Puel nunca conquistou os corações do St. Mary’s ou do King Power. Ele era um técnico competente, mas sem o potencial de desestabilizar a elite da Premier League e brigar por vagas em competições europeias, como em breve seria a grande ambição do Leicester. Após uma nova queda de rendimento na virada do ano, foi demitido em fevereiro, com até que saudáveis oito pontos para a zona de rebaixamento. Deu lugar a Brendan Rodgers.

A Era Rodgers

Brendan Rodgers cumprimenta Tielemans (Foto: TIM KEETON/POOL/AFP via Getty Images/One Football)

Rodgers era outra história. Algumas das melhores temporadas da era moderna do Celtic foram sob o seu comando. Chegou mais próximo do que qualquer um antes de Jürgen Klopp de quebrar o jejum de títulos ingleses do Liverpool, tinha experiência de clube grande e conseguiu fazer o Swansea parecer o Barcelona – pelo menos o bastante para aquele apelido bem-humorado. Se a sua personalidade às vezes gera atritos, é um técnico de qualidade superior que, de cara, recuperou os resultados do Leicester, com um futebol mais empolgante que o de Puel, e em seguida emendou duas temporadas muito bem sucedidas.

O Leicester acabou aproveitando o título inglês para se desenvolver. Menos a injeção repentina de dinheiro e mais a estabilidade que ela trouxe. Mahrez foi a venda da vez, depois de Drinkwater, e o clube voltou a acertar os reforços, com caras como Caglar Söyüncü, James Maddison, Youri Tielemans e depois Wesley Fofana. Uma nova espinha dorsal para se juntar à que restava da caminhada com Claudio Ranieri, em um papel mais secundário, e pratas da casa, principalmente Harvey Barnes e Ben Chilwell. Quando acertou também o técnico, o projeto decolou.

O ápice de desempenho do Leicester de Rodgers foi no começo de sua primeira temporada completa. Oito vitórias seguidas pela Premier League até o começo de dezembro de 2019, com direito àquela goleada por 9 a 0 sobre o Southampton, interrompidas por um empate com o Norwich e derrotas normais para Manchester City e Liverpool. No começo de janeiro, ainda era o segundo colocado. Não brigou pelo título porque aquele foi o Campeonato Inglês em que os Reds dispararam. Também foi o que parou em março por causa da pandemia.

O Leicester conseguiu apenas quatro vitórias nas últimas 17 rodadas, metade delas disputadas depois da pausa forçada de três meses. Os pontos acumulados ainda o mantiveram na briga pelo G4. Ele saiu dele pela primeira vez desde setembro apenas na penúltima rodada. E teve a chance de retornar com um confronto direto contra o Manchester United, em casa, o que era uma vantagem menor com portões fechados. Foi derrotado e ficou em quinto lugar.

O roteiro se repetiu no ano seguinte. O Leicester foi até mais regular. Ficou no G4 ou próximo o campeonato inteiro e não chegou a ter uma queda de rendimento tão acentuada. No entanto, ganhou apenas uma das últimas cinco rodadas e dessa vez dois gigantes deram uma arrancada na reta final: o Chelsea, energizado por Thomas Tuchel e futuro campeão europeu; e o Liverpool, que se reencontrou uma vez que a densidade populacional do seu departamento médico diminuiu.

O alento foi o título da Copa da Inglaterra. E não foi um mero prêmio de consolação. Foi o primeiro da história do Leicester e parecia coroar um período que, se por detalhes não entrou na Champions League, havia cumprido a ambição de furar o bem estabelecido grupo de elite da Premier League – o famoso Big Six. Mas times que jogam acima dos seus recursos por tanto tempo costumam pagar um preço. A exigência física e mental para compensar o excesso de qualidade no outro lado do gramado é custosa.

Especialmente pelo estilo de Rodgers, que sempre bate na tecla da intensidade e da força física para que seu time apresente seu melhor jogo. Ele tentou reestruturar o departamento médico do Leicester, em 2020, demitindo o principal fisioterapeuta, Dave Rennie, que estava no clube há 20 anos, e começando a busca por um chefe de medicina. Os desfalques tiveram um papel importante nas derrocadas daquelas temporadas. Era um ciclo vicioso: o ideal seria rodar o elenco para manter todo mundo com as pernas frescas, mas o elenco não permitia tantas rotações e, consequentemente, o índice de lesões foi grande.

Ser quinto lugar duas vezes seguidas foi um grande resultado, mas as circunstâncias também geraram uma boa dose de frustração. O terceiro ano completo de Rodgers foi bem mais complicado. Ele não conseguiu manter o ritmo para brigar novamente por Champions League. Chegou a visitar a parte de baixo da tabela antes de encontrar pontos o suficiente para terminar em um sólido oitavo lugar. A eliminação na fase de grupos da Liga Europa foi uma decepção, compensada pela campanha na Conference League que deu às Raposas sua primeira semifinal europeia.

Ao fim dessa temporada, Rodgers não escondia de ninguém que precisava começar uma reformulação. Havia sobrado poucos nomes do título inglês, após a saída de Christian Fuchs e a aposentadoria de Wes Morgan. Em breve, ele também perderia Kasper Schmeichel e Marc Albrighton, causando um vácuo de liderança. A questão era saber se aquela havia sido uma temporada natural de baixa após dois anos muito bons ou se era sinal de estagnação.

Acabou sendo o segundo. Uma vaga na Champions League naqueles dois anos talvez desse ao Leicester um pouco mais de espaço de manobra nas contas para os sérios problemas financeiros que começou a ter durante a pandemia.

Acabou o dinheiro

O estádio King Power (Foto: PA Images / Icon Sport)

Os donos do Leicester estão entre os mais queridos da Inglaterra. A repentina morte de Vichai Srivaddhanaprabha gerou comoção, como se ele fosse um jogador favorito da arquibancada. Naturalmente, parte importante desse sentimento emanou da mágica campanha do título, mas também de ações simpáticas, como cerveja de graça para a galera após escapar do rebaixamento na temporada anterior, e porque sempre foram donos generosos. A relação seguiu parecida quando o filho de Vichai, Aiyawatt, assumiu as rédeas do dia a dia.

O Leicester nunca fez investimentos malucos. O saldo de transferências, entre compras e vendas de jogadores, é de apenas € 130 milhões nos sete anos desde a conquista da Premier League, um dos mais baixos entre todos os clubes que participaram da elite do Campeonato Inglês nesse período. Isso tinha base em uma estratégia simples, mas, se bem executada, muito eficiente: vender um grande jogador por temporada e reinvestir o dinheiro em talento jovem. No entanto, para cooptar esse talento e, principalmente, para mantê-lo no clube até a hora certa, a diretoria passou a oferecer contratos longos com salários bem altos.

Em 2016/17, quando teve uma receita excepcionalmente alta pela disputa da Champions League, o Leicester tinha uma proporção entre folha salarial e arrecadação de 48%. Assim que o dinheiro da competição europeia desapareceu, essa porcentagem disparou para 75% e nunca baixou desse patamar – os parâmetros da Uefa consideram 70% como o limite de uma operação saudável.

Em 2019/20, ela chegou a ser 105% das receitas, uma situação circunstancial por causa dos adiantamentos de direitos de televisão por causa da pandemia. Ainda assim, teria sido de 80% em condições normais. Subiu para 85% em 2020/21, quando o Leicester bateu £ 226 milhões de arrecadação, na esteira do título da Copa da Inglaterra e de mais um quinto lugar na Premier League. Na temporada passada, continuou nesse nível, entre 84% e 85%.

Nesses últimos dois anos, o Leicester teve a sétima maior folha salarial da liga, atrás apenas do Big Six. Um outro parâmetro dos custos para tentar acompanhar os clubes mais ricos é que, em 2017, operava com lucro de £ 56 milhões e apenas três anos depois baixou para um prejuízo operacional de £ 122 milhões (excluindo venda de jogadores e juros), segundo o Swiss Ramble, um especialista em finanças dos clubes europeus.

Essa folha salarial enorme ainda é bem distante dos clubes do Big Six e deixa o Leicester vulnerável a erros ou questões de força maior. Os donos investiram em infraestrutura, com um novo centro de treinamento de £ 100 milhões, e planejam uma expansão do King Power Stadium. Recentemente, também transformaram £ 194 milhões de dívida em ações para dar um alívio contábil ao clube, mas há um limite no que podem fazer.

O limite ficou menor graças à pandemia. Todo mundo foi afetado, mas principalmente um clube cuja empresa-mãe é uma grande operadora de free shops. Vocês sabem o que aconteceu com a indústria dos free shops quando praticamente todo o tráfego aéreo foi paralisado? A Forbes estimava a fortuna de Srivaddhanaprabha em US$ 5,9 bilhões em 2019. O último cálculo, um ano atrás, parou em US$ 1,7 bilhão.

A pandemia também levou o Leicester ao que talvez tenha sido um erro de avaliação ao não fazer uma grande venda em 2021. A análise era que, em um mercado em baixa, ninguém chegaria ao preço ideal e era preferível esperar um ano a se desfazer de um jogador importante por um valor menor. Ao mesmo tempo, quase € 70 milhões foram investidos em três novos reforços – Patson Daka, Boubakary Soumaré e Jannik Vestergaard – para tentar manter o embalo.

Mas a terceira briga consecutiva pela Champions League nunca chegou. O Leicester teve que se contentar com o oitavo lugar e a semifinal da Conference League. Não foram resultados ruins, mas também não serviram para salvar as contas. E aí, na hora em que Rodgers cobrou uma reformulação, ouviu da diretoria as palavras que os técnicos mais temem: acabou o dinheiro.

Erros no mercado

Kasper Schmeichel festeja com o troféu da FA Cup (Foto: Imago / One Football)

O Leicester havia desviado da sua política de transferências em 2021/22, não apenas por não ter feito uma grande venda. Rodgers insistiu na contratação de dois jogadores mais veteranos e com experiência de Premier League porque não queria que houvesse uma queda brusca no elenco após as saídas de Wes Morgan e Christian Fuchs – que já eram peças bem marginais. As chegadas de Jannik Vestergaard e Ryan Bertrand, do Southampton, teriam incomodado muita gente no departamento de observação que consideraram que o norte-irlandês não acreditava tanto assim no método que havia sido bem sucedido, segundo o The Athletic.

Isso pode até não ser tão importante, mas em um clube que trabalhava com margens tão pequenas de erro, esses dois reforços foram um desastre. O perfil de Vestegaard nunca se encaixou com o do Leicester de Rodgers, que prefere zagueiros mais rápidos e com habilidade na saída de bola, e custou € 17 milhões. Bertrand chegou sem taxa de transferência, mas com salário alto. Soumaré e Daka, os investimentos mais altos, também não estouraram a boca do balão. O melhor reforço foi Ademola Lookman, emprestado pelo RB Leipzig. O Leicester acabou não tendo dinheiro para mantê-lo.

O último mercado de verão europeu foi um desastre completo. Primeiro, porque o Leicester teve que navegá-lo sem um chefe de recrutamento. Lee Congerton saiu para a Atalanta em março de 2022 e acabou sendo substituído por Martyn Glover, que estava no Southampton. Os Saints, porém, não gostaram da abordagem das Raposas e conseguiram fazer com que ele assumisse apenas depois do fim da janela. Isso se tornou particularmente um problema quando Rodgers descobriu que não teria orçamento de transferências para trabalhar.

Logo, se quisesse contratar, teria que vender jogadores. A primeira proposta que chegou foi do Newcastle por James Maddison, na casa das £ 30 milhões. Foi, com razão, considerada muito baixa. O clube não foi capaz de juntar £ 10 milhões aqui e £ 10 milhões ali com jogadores pouco utilizados. No máximo, emprestou Ayoze Pérez ao Betis e vendeu Kasper Schmeichel para o Nice, o que ainda é um pouco difícil de entender.

Schmeichel era o capitão e estava no clube há 11 anos. Pela idade, atraiu uma taxa de transferências quase insignificante, embora fosse um dos maiores salários. Quando a sua venda foi anunciada, a mensagem do Leicester era que queria uma nova experiência, o que, mesmo se fosse verdade, talvez não fosse o momento certo porque não havia recursos para substituí-lo. Em março, ele deu entrevista ao The Times dizendo que adoraria ter continuado no King Power Stadium, mas não recebeu resposta sobre a renovação do seu contrato que estava entrando nos meses finais.

Resultado: o Leicester teve que encarar a temporada com Danny Ward, que fez um jogo de Premier League pelas Raposas em quatro anos e acabou perdendo a posição para Daniel Iversen, que nunca havia pisado um gramado da elite da Inglaterra.

Durante a maior parte daquele mercado, o Leicester era o único clube das cinco grandes ligas que não havia feito uma contratação. Isso, sozinho, seria ruim. Era pior porque Rodgers estava desde o fim da temporada anterior falando que queria fazer uma grande reformulação. Ela simplesmente não foi possível e o técnico começou a externar a sua frustração, dizendo que seria uma temporada difícil e que o objetivo seria evitar o rebaixamento – quem diria, um profeta.

No fim, apareceu a grande venda. Wesley Fofana saiu para o Chelsea por € 80 milhões, a um dia do fechamento da janela. O Leicester (lembrando: sem um chefe de recrutamento) não tinha reforços engatilhados para contratar nas 24 horas seguintes. Conseguiu trazer apenas Wout Faes (até agora, bem abaixo da média) para ser o substituto direto de Fofana. Em janeiro, contratou o zagueiro Harry Souttar, o lateral Victor Kristiansen e o ponta Tetê, do Shakhtar Donetsk, por empréstimo. Notável que não buscou um goleiro de alto nível.

E agora?

Maddison, do Leicester, faz careta após mais um resultado ruim dos Foxes na temporada (Getty/One Football)

Existe uma linha de pensamento que defende que Rodgers deveria ter sido demitido antes do começo da temporada. A negatividade que adotou publicamente após as dificuldades da janela de transferências era um presságio ruim e poderia ser contagiosa. Não melhorou muito quando, ainda em setembro, ele disse que o Leicester não era mais “o clube que era dois anos atrás”. Mas a hierarquia ainda confiava em seu trabalho, com motivos. E não havia realmente ninguém que acreditava que o rebaixamento era um risco real – também com motivo.

Dois 15 jogadores que mais entraram em campo pelo Leicester nesta temporada, seis foram titulares em Wembley na final da Copa da Inglaterra contra o Chelsea (Castagne, Tielemans, Ndidi, Luke Thomas, Iheanacho e Vardy) e três (Ward, Amartey, Maddison) estavam no banco de reservas. Jonny Evans teria sido outro, se não tivesse se machucado tanto. De qualquer maneira, a espinha dorsal do grande time de Rodgers estava basicamente toda ali. Por isso, até o fim, era razoável esperar que algum tipo de recuperação era iminente.

No entanto, coletivamente, o Leicester parou de ser uma máquina tão bem azeitada e dá para colocar a culpa em várias coisas. Para começar, Rodgers passou meses dizendo que queria uma reformulação e acabou se vendo obrigado a tentar motivar muitos jogadores que, se dependesse apenas dele, teriam ido embora – e, no geral, eles sabem quais são. Se as suas declarações não tiveram um impacto negativo tão grande quanto parece internamente, também é possível que tenha naturalmente perdido influência, como costuma acontecer no fim de um ciclo.

Uma grande parte dos principais jogadores do Leicester estava no último ano de seus contratos, o que também foi determinante para as dificuldades de atrair propostas durante a janela. Claro que se importavam com o que aconteceria com o clube, mas pessoalmente, o rebaixamento não seria um desastre: eles estariam em outro lugar. Um deles era Söyüncü, que foi colocado na reserva por Rodgers, que explicou sua decisão dizendo que “tem muita coisa que acontece nos bastidores e as pessoas não sabem”. Outro é Youri Tielemans, que no passado era um bom candidato a ser uma daquelas grandes vendas e agora sairá de graça.

Nampalys Mendy, Daniel Amartey, Ryan Bertrand, Ayoze Pérez e Jonny Evans também estão prestes a ficar livre no mercado. Se ninguém permanecer, são quase £ 110 milhões de investimentos saindo pela janela. Além disso, Jamie Vardy, James Maddison, Wilfried Ndidi, Iheanacho, Luke Thomas, Dennis Praet, Jannik Vestergaard e Alex Smithies entraram no último ano do seus contratos. O Leicester não vê a hora de se livrar de alguns deles, mas outros, principalmente Maddison, estarão na mesma situação: seria bom fazer dinheiro com eles, mas as propostas provavelmente não serão tão grandes quanto o clube gostaria.

O Leicester teve alguns bolsões de bom rendimento em que tudo parecia que ficaria bem. O maior deles foi logo antes da Copa do Mundo, depois de perder seis das primeiras sete rodadas. Teve um outro mais curto em fevereiro, e muitas derrotas antes e depois dele. Rodgers acabou sendo demitido apenas no começo de abril e ainda não parecia que o risco de cair estava sendo levado a sério. Se fosse, talvez tivesse havido um esforço maior para contratar um substituto melhor do que o comitê formado por Dean Smith, Craig Shakspeare e John Terry.

Sendo justo, até tentou. Graham Potter não estava afim de embarcar em uma nova aventura, depois dos meses turbulentos com o Chelsea, e Jesse Marsch também não rolou. A aposta talvez tenha sido mais em Shakespeare, que havia executado uma operação de resgate bem sucedida depois da saída de Ranieri, do que no próprio Smith, mas os resultados foram no máximo médios: duas vitórias, três empates e três derrotas. O rebaixamento que ninguém esperava se concretizou.

E agora, o Leicester terá muitas decisões difíceis para tomar. Mais da metade do seu time está sem contrato ou prestes a ficar livre no mercado. Poucos, talvez nenhum, devem permanecer porque a sua enorme folha salarial precisa ser reduzida para disputar a segunda divisão, que trará uma queda estimada em £ 100 milhões nas suas receitas de direitos de televisão, além da parte comercial. A estratégia de contratação terá que ser bem calibrada para talento ainda mais bruto que topará passar uma temporada na Championship.

Os rebaixados da Premier League estão voltando rapidamente à Premier League nos últimos anos. Alguns com menos estrutura que o Leicester. Não deve demorar para vermos as Raposas novamente na elite, mas o plano ambicioso de se estabelecer como o melhor do resto levou um golpe forte, talvez fatal, especialmente porque agora há candidatos mais bem posicionados – além do óbvio, o Newcastle, o Aston Villa, que fez uma ótima temporada, ou o Brighton, com um projeto fantástico.

Depois do maravilhoso título da Premier League, uma história que nunca será maculada, independente do que aconteça daqui para a frente, o Leicester tensionou ao máximo as suas finanças para tentar subir de patamar. Fez aquela aposta, tão comum no futebol inglês, nas receitas de uma possível classificação à Champions League para ter alguma folga. Não conseguiu, por muito, muito pouco, e ficou sem margem de manobra para os erros pontuais que cometeu ao longo do caminho e para os efeitos de uma conjuntura global que acabou prejudicando-o mais que aos outros.

Não conseguiu se antecipar aos problemas que teria nesta temporada e, quando eles chegaram de vez, demorou para perceber a gravidade da situação. Acreditou que um grupo que obteve grande sucesso nos três anos anteriores conseguiria encontrar um caminho para sair do buraco. Demorou para tomar medidas mais enérgicas quando ficou claro que não o faria e, no fim, elas foram insuficientes.

Na vida real, os contos de fada continuam depois do final feliz, e o Leicester ainda teve seis anos de alegria e prosperidade, mas agora terá que começar de novo.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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