Em 1962, primeiro Merseyside do Campeonato Inglês em 11 anos fez justiça à espera

Vizinhos, rivais e irmãos – daqueles que discutem bastante, mas se abraçam em tempos difíceis -, os destinos de Liverpool e Everton cruzaram-se com frequência. Por isso, é curioso lembrar quando eles se desencontraram. O Everton foi rebaixado pela última vez na sua história, em 1951, como lanterna. Retornou três anos depois, justamente na temporada em que o Liverpool foi rebaixado pela última vez na sua história, também como lanterna. Os Reds demoraram mais para voltar. Ficaram oito anos na segunda divisão. Isso significa que o Campeonato Inglês passou mais de uma década sem um dos seus principais confrontos. Sem um dérbi de Merseyside para deixar a cidade ansiosa e agitada.
LEIA MAIS: Neste fim de semana, o que não falta é jogaço no futebol europeu
Houve clássicos durante esses 11 anos, a maioria amistosos, mas nenhum pela liga inglesa. O único jogo competitivo foi a quarta rodada da Copa da Inglaterra, em 29 de janeiro 1955, quando, mesmo na segunda divisão, mesmo em Goodison Park, o Liverpool venceu por 4 a 0. Um amistoso em especial aconteceu na preparação para 1961/62, a temporada que daria o acesso para os Reds. O Everton venceu por 4 a 3, mas Ian St. John, recém-chegado do Motherwell, estreou nessa partida marcando todos os gols do Liverpool. Os primeiros dos 118 que ele marcaria em mais de 400 partidas com a camisa vermelha.
No entanto, o último dérbi válido pela liga inglesa havia acontecido em janeiro de 1951, em Anfield, com vitória do Everton, por 2 a 0. Como o Liverpool foi campeão da segunda divisão, em 1962, os jornais da cidade finalmente puderam imprimir a tabela do Campeonato Inglês com as datas do clássico. O primeiro encontro estava marcado para o Goodison Park, em 22 de setembro, daquele ano, mas começou de fato alguns meses antes.
Johnny Morrissey era um meia-esquerda. Tinha 22 anos naquela época e jogava pouco pelo Liverpool. Na realidade, não havia entrado em campo sequer uma vez na temporada anterior e somava pouco mais de 30 jogos desde 1957. O titular da posição era Alan A'Court, o jogador mais jovem da história dos Reds a chegar a 200 partidas pela liga inglesa. O técnico Bill Shankly, porém, via talento em Morrissey e contava com ele para a composição do elenco e para o futuro. Harry Catterick, técnico do Everton, tinha uma opinião parecida e comprou o jovem por £ 10 mil, valor muito baixo. Naquela época, o jogador mais caro da Inglaterra era Denis Law, vendido pelo Torino para o Manchester United por £ 110 mil.
Foi um momento decisivo para o Liverpool. A transferência foi negociada pelas costas de Bill Shankly, que já tinha uma histórico de discussões com a diretoria e ameaças de que pediria demissão. Desta vez, no entanto, ele ficou absolutamente possesso e parecia falar sério. O treinador escocês estava nas primeiras fases da transformação que implementava no clube e ainda não havia conquistado nenhum título relevante. Caso o projeto fosse encerrado prematuramente naquele momento, difícil saber se os Reds seriam tão bem sucedidos como foram nos trinta anos seguintes. Shankly deu um ultimato à direção: passaria a ter total controle das transferências para que algo parecido nunca mais acontecesse ou pediria o boné. A direção aceitou, e Shankly ficou. Demoraria 20 anos para que o Liverpool vendesse outro jogador para o Everton. E 38 anos para que o Everton vendesse um jogador para o Liverpool.
Os Reds haviam acabado de retornar para a primeira divisão e tinham ambições moderadas para o Campeonato Inglês. O Everton, muito mais consolidado, buscava voos mais altos. Havia sido quinto e quarto colocado nas últimas duas edições do torneio, e uma vitória sobre o maior rival significaria a liderança da tabela. O Liverpool estava bem longe do topo. Havia começado a temporada com três vitórias, dois empates e quatro derrotas. Somava apenas oito empates e estava na segunda metade da classificação.
O Goodison Park estava empacotado com mais de 72 mil pessoas, e o Everton soube aproveitar muito bem o aparente nervosismo do Liverpool. Logo no começo, teve dois gols anulados. O goleiro dos visitantes, Jim Furnell, enrolou na reposição, pingou a bola no chão e foi desarmado por Roy Vernon. O árbitro apitou falta do atacante. “Eu conseguia ver a cor retornar às bochechas de Jim quando o gol foi anulado”, disse o zagueiro vermelho Ron Yeats, segundo o Liverpool Echo. Dennis Stevens marcou, pouco depois, mas foi flagrado em impedimento.
A torcida do Everton já começava a esboçar sua insatisfação com o apitador quando Gerry Byrne colocou a mão na bola dentro da área. Pênalti. Vernon cobrou e fez 1 a 0 para os donos da casa. O Liverpool havia recebido uma má notícia antes do jogo: Ian St. John, machucado, não poderia jogar o dérbi. Sem problemas. Kevin Lewis, 22 anos, entrou no seu lugar e, seis minutos depois de o Everton abrir o placar, empatou a partida.
Agora é um bom momento para imaginarmos o quanto Bill Shankly xingou seus diretores quando, no começo do segundo tempo, Johnny Morrissey restaurou a vantagem do Everton no placar. Principalmente porque foi um gol bem controverso. O chute do meia-esquerda foi cortado em cima da linha e, sem as milhares de câmeras dos dias de hoje, fica difícil saber se a bola realmente entrou. De qualquer forma, o Everton tinha 2 a 1 no placar até os minutos finais da partida. Para ser mais preciso, até os 45 minutos do segundo tempo, quando A'Court cruzou na área, Lewis ajeitou e Roger Hunt empatou.
O primeiro clássico válido pelo Campeonato Inglês em 11 anos teve várias controvérsias e foi decidido no último suspiro, dando um pontinho para cada lado. O jogo do returno também terminou empatado, sem gols, em Anfield, e não dá para o Everton reclamar. Terminou aquela temporada campeão inglês pela sexta vez em sua história e a primeira desde antes da Segunda Guerra Mundial. O Liverpool terminou em oitavo, mas, no ano seguinte, voltaria a conquistar a Inglaterra, com o primeiro dos três títulos da liga nacional sob o comando de Bill Shankly.