1995: os 20 anos do assombro mundial do Ajax
1992. Após quatro anos, o Ajax volta à final de um torneio europeu, enfrentando o Torino na final da Copa Uefa. Ganha o título, é verdade. Mas também não brilha muito nos dois empates (2 a em Turim, na ida, em 29 de abril; na volta, em 13 de maio, 0 a 0 no Olímpico de Amsterdã – a Amsterdam Arena só é inaugurada em 1996). Louis van Gaal é o técnico, e conta com um time em transição.
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Na equipe, jogadores com certa experiência (o goleiro Stanley Menzo, os zagueiros Sonny Silooy e Danny Blind, os volantes Wim Jonk e Aron Winter, o atacante Stefan Pettersson) somam-se a garotos abaixo dos 25 (os irmãos Ronald e Frank de Boer e Dennis Bergkamp). Mas algo está errado quando o grande destaque da final é um jogador do time derrotado – Casagrande, autor dos dois gols grenás em Turim e dínamo da equipe italiana. Fica a impressão de que os Ajacieden haviam ganho sem merecer.
24 de maio de 1995. Três anos e onze dias depois, o Ajax retorna a uma decisão continental. É contra um time italiano, também. Mas não é a Copa Uefa, e sim uma Liga dos Campeões cuja importância tem alcance cada vez mais planetário. E o time italiano é um dos dois mais tradicionais clubes da história do torneio: o Milan, que chega com um time ultraexperimentado à terceira final seguida da competição.
O jogo em Viena é duríssimo, renhido. Mas a equipe holandesa faz 1 a 0 e conquista o seu quarto título europeu. O que é importante. Mas não tanto quanto ver como Van Gaal completara com maestria a transição por que sua equipe passava, ainda, em 1992. E como não faltavam jogadores que, além de jovens, eram talentosos e se impunham nas horas decisivas: Van der Sar, Reiziger, Davids, Seedorf, Litmanen, Overmars, Finidi, os De Boer que remanesciam da decisão da Copa Uefa, Kluivert, Kanu…
Para completar, o time fizera um ano quase perfeito. Entre 8 de março de 1995 e 14 de janeiro de 1996, foram 43 partidas sem derrota, somando-se todas as competições (Copa da Holanda, Liga dos Campeões, Campeonato Holandês, Supercopa da Holanda e o Mundial Interclubes). Em 1994/95, o bicampeonato holandês foi conquistado de forma invicta (27 vitórias e sete empates). Tudo com um estilo de jogo que dava um passo à frente do Futebol Total: o Ajax pressionava a saída de bola do adversário quando precisasse, mas também era conservador e tocava a bola pacientemente, se necessário.
Num futebol europeu que ainda conhecia fronteiras, o 24 de maio de 1995 foi a última vez que a Holanda bateu no peito para dizer que mandava no Velho Continente e ditava tendências no esporte. Por isso, o 24 de maio atual merece as celebrações que vem tendo na Holanda, com livros a respeito do assunto, entrevistas com os destaques da conquista e até um documentário (“1995, we are the champions”, exibido na FOX Sports holandesa).
Mas, ora bolas, como o Ajax chegara a tal domínio? Primeiramente, pela qualidade da geração que surgia. Embora já procurasse isso desde os tempos do Futebol Total dos anos 1970, nunca a Holanda vira um goleiro tão seguro com as mãos e os pés quanto Van der Sar. Na zaga, Frank de Boer exibia calma e habilidade pouco vista em zagueiros holandeses, enquanto Reiziger jorrava velocidade na direita. O meio-campo? Davids e Seedorf eram completos na posição, dos melhores de sua geração, defendendo como cães de guarda e iniciando a jogada com maestria. Litmanen (pouco falado fora da Holanda, mas dos mais idolatrados daquele time pela torcida do Ajax) mostrava classe pura na armação das jogadas. No ataque, Overmars era o azougue pela esquerda; Finidi impunha respeito pelo porte físico na direita. Somente o meio da área era motivo para inconstâncias: poderia ser Ronald de Boer, Kluivert ou Kanu.
Só que é lícito dizer que a geração poderia não ter explodido como se esperava se não houvesse um tutor como Louis van Gaal. Diante de novatos (a equipe que iniciou a final em Viena tinha média de idade de 24,7 anos), o treinador que sentava no banco do Ajax desde 1991, após auxiliar Leo Beenhakker, pôde lembrar o professor de escola infantil que um dia fora, cobrando duramente os pupilos, guiando-os quase como meninos. Deu certo, pode-se dizer, já que a maioria dos jogadores daquela equipe teve carreiras de nível satisfatório.
Mas Van Gaal também mostrou na formação daquele time dois de seus lados mais polêmicos, até hoje: a fixação por uma ideia tática e a capacidade de escolher os melhores a dedo, sem ligar para o aspecto emocional, sem medo de críticas. Pode-se dizer, aliás, que o treinador simplesmente detesta quem não dê ajuda no aspecto tático ou o desarrume, mesmo que seja habilidoso e destrua qualquer esquema. Por isso talvez tenha brigado com Rivaldo e Giovanni, no Barcelona, e tenha descartado Lúcio, no Bayern Munique. Por isso talvez valorizasse o papel de Luiz Gustavo no mesmo Bayern, ou escalasse comumente o atacante Ari no AZ campeão holandês em 2008/09.
Sobre a falta de apego de Van Gaal a sentimentalismos, um grande exemplo veio durante a temporada 1992/93. Ainda reserva, Van der Sar chegou ao treinador (que o escolhera no Foreholte, time amador, em 1990), queixou-se da falta de chances nos titulares e pediu para ser emprestado. Já tinha até oferta, do ADO Den Haag. A resposta: “Você precisa ter paciência. Eu acho que você tem possibilidades no Ajax”. Trocando em miúdos: era questão de tempo para a mudança de goleiros.
O momento certo – ou errado – para a “crueldade” veio em 3 de março de 1993. No jogo de ida das quartas de final da Copa Uefa, o Ajax perdeu para o Auxerre (4 a 2), com duas falhas de Menzo. Bastou: no jogo de volta, Van der Sar já era o titular para não mais sair. E o defenestrado Stanley Menzo, cria da base do Ajax, havia nove anos dono da posição, deixou o clube rumo ao PSV pela porta dos fundos, ao fim da temporada seguinte – e, dizem, precisando de auxílio psicológico por alguns meses.
Mas se esse lado de Van Gaal era inegavelmente cruel, também ficava claro que ele sabia do que o elenco precisava. O elenco jovem precisava de veteranos para indicarem os atalhos? Pois bem: além de manter Danny Blind na defesa, aproveitou que Frank Rijkaard não tinha mais a mesma importância no Milan e o trouxe de volta a Amsterdã, em 1993. Já bastava para formar uma defesa sólida e segura.
Time pronto, era necessário mostrar serviço. E o cartão de visitas já foi dado na primeira partida da fase de grupos da Liga dos Campeões: o 2 a 0 aplicado no Milan em Amsterdã foi categórico, daqueles placares que ficam baratos. Superar já na estreia o time campeão europeu em 1993/94 deu um tremendo ânimo à equipe. Há alguns dias, Litmanen comentou ao site oficial do Ajax: “Quem ganhava daquele Milan, ganharia de qualquer outro time”.
Despachada a primeira fase, o mata-mata foi superado com todo o cuidado possível. Nas quartas de final e nas semifinais, o esquema foi o mesmo: empatar fora de casa, e definir em Amsterdã. Contra o Hajduk Split, nas quartas, empate sem gols na Croácia, 3 a 0 tranquilos no Estádio Olímpico. Já contra o Bayern, houve a chamada atuação de campeão: 0 a 0 no Olímpico de Munique, e indubitáveis 5 a 2 na volta. Na retrospectiva atual ao site do clube, a goleada merece mais importância na campanha até do que a decisão. Van der Sar definiu: “Algo como aquilo é para se levar por toda a vida”.
Depois, a final. O golpe de caratê de Van Gaal à beira do campo, para queixar-se ao árbitro Ion Cracunescu do pé alto de Marcel Desailly numa dividida, gesto que virou marca da conquista, lembrado até hoje. Assim como é lembrado o choro de Patrick Kluivert, ao marcar o gol que definiu o jogo. Rijkaard conquistando mais um título, numa de suas últimas partidas como jogador profissional. A recepção e a festa da vitória, na Museumplein, com a mãe de Kluivert recebendo-o na escada do avião, às lágrimas, e 80 mil pessoas na praça, gritando “Milan, Milan, who the f*** is Milan?”.
Quis o destino que a Lei Bosman virasse jurisprudência na Corte europeia meses após aquela final. E o time de garotos guiado por Van Gaal foi se desfazendo: já no meio de 1995, Seedorf transferiu-se para a Sampdoria. A perda não impactou tanto, e o time ainda se recompôs para uma nova final de Liga dos Campeões, na temporada seguinte. Mas já se sabia: mais cedo ou mais tarde, aquele grupo se desfaria. Davids e Kanu saíram em 1996; Van Gaal, Overmars e Kluivert se foram em 1997; no início de 1999, os irmãos De Boer foram acompanhar o treinador no Barcelona; no meio daquele ano, Blind parou de jogar, Van der Sar foi para a Juventus, e Litmanen, para o Liverpool.
Ficaram as lembranças. Que neste domingo completam 20 anos. Que são saborosas, pelo que o Ajax fez então. Mas também doem, pela sensação de que nunca mais serão repetidas.
EXTRAS: Convém lembrar que, em novembro de 1995, veio a decisão do Mundial Interclubes, contra o Grêmio. Assim como fizeram com o Milan, torcedores gritavam “Grêmio, Grêmio, who the f*** is Grêmio?”, antes do jogo em Tóquio. Mas Van Gaal não entrava na onda, levando a sério Jardel, Paulo Nunes, Arílson, Carlos Miguel, Arce e companhia. Em sua biografia, Van der Sar depôs: “Van Gaal dissera: ‘Jardel sempre cabeceia no primeiro pau. Sempre. Ele nunca se posiciona na segunda trave’. Foi isso mesmo, mas uma vez o cara fez que ia para o primeiro pau e foi para o segundo. E a bola foi para lá. Jardel perdeu por um fio de cabelo. Ali eu temi perder o título”.
Mais do que isso: o ex-goleiro afirma que aquela decisão ganha nos pênaltis foi uma das partidas mais importantes de sua carreira. “Inicialmente, ninguém estava curtindo ir a Tóquio. Mas quando você está em campo e o jogo começa, você se toca que é um título inigualável. E foi muito bom defender um dos pênaltis, o que se revelou decisivo para o jogo”, rememorou Van der Sar, em seu livro. A sensação é a mesma do Ajax. Não fosse assim, e o time não teria exposto, por muito tempo, em seu museu, a camisa 5 usada por Dinho naquela decisão, como um sinal de respeito à valorosa atuação do Grêmio na final.