Europa

Como o novo uniforme da Bélgica virou uma discussão sobre racismo e colonialismo

Em tons azul, nova camisa da seleção da Bélgica homenageia Tintim, personagem criado pelo cartunista Hergé

Para o fã de futebol, o lançamento dos uniformes é sempre um capítulo a parte. Por vezes nem é de seu clube ou país, mas se torna alvo de desejo e, quando adquirido, vira “look” para todas as ocasiões. A seleção da Bélgica deu aula com a divulgação das duas camisas que irá utilizar na Eurocopa 2024, disputada no meio desse ano. A primeira em tons bordô e detalhes 3D, enquanto o manto “fora de casa” tem os mesmos detalhes, só que é predominante em azul-claro como homenagem ao personagem Tintim, do cartunista belga Georges Remi (1907-1983) ou Hergé, o pseudônimo utilizado para publicar as histórias. Mostrando que o esporte ultrapassa o limite das quatro linhas do gramado, essa homenagem se transformou em uma discussão sobre colonialismo e racismo, e a Trivela explica o porquê.

Autor de Tintim é acusado de racismo por edição no Congo

Nas redes sociais, internautas resgataram a segunda história publicada por Hergé sobre o repórter belga que viajava o mundo em busca de reportagens. Neste álbum, chamado “Tintim no Congo” e lançado em 1931 (republicado em 1946), o personagem visita a então colônia da Bélgica (atualmente República Democrática do Congo) e traz o colonialismo como algo positivo. Em certo momento, Tintim substitui um professor em uma escola dos congoleses e os ensina sobre sua pátria, no caso, a Bélgica – posteriormente, a obra foi refeita e o tema da aula foi matemática. Os locais, além de desenhados de forma caricata, também são retratados como ingênuos e inferiores a Tintim, que, quando deixa o Congo, ganha uma estátua, como se fosse uma entidade.

O autor nunca visitou o Congo. Para escrever os quadrinhos consultou relatos de missionários que estiveram por lá. Vale citar que à época Hergé escrevia para o jornal Le Petit Vingtième, comandado pelo padre Norbert Wallez, apoiador do movimento fascista que tomava a Europa naquele momento e depois condenado pela justiça belga por colaboração com o nazismo.

Em entrevista à Trivela, o advogado Augusto Chidozie, membro do podcast Ponta de Lança, especializado em política, esporte e cultura no continente africano, detalhou que a discussão sobre o lançamento da camisa da Bélgica como homenagem ao personagem e a questão racial pelo álbum no Congo desconsidera a importância de Tintim como obra, extremamente premiada e importante para países falantes da língua francesa. Para trazer ao contexto brasileiro, ele deu o exemplo de Monteiro Lobato (1882-1948), autor do aclamado Sítio do Pica Pau Amarelo, mas também um defensor da ideia do eugenismo.

– A primeira versão do segundo álbum do Tintim tem um caráter extremamente racista. Porém, estamos falando de uma obra [As Aventuras de Tintim] que é extremamente influente nos países de língua francesa, ou seja, Congo, França e outro países francófonos na África. De uma certa forma, nós podemos equiparar a situação do Monteiro Lobato aqui no Brasil, um defensor do eugenismo, da ideia de que negros deveriam ser extintos. Inclusive ele escreveu livros como “O Presidente Negro”, que foi rejeitado nos Estados Unidos na época da segregação racial por ser extremamente racista até para os padrões estadunidenses. E ele é o mesmo autor do Sítio do Pica Pau Amarelo, que é considerado umas principais obras infanto-juvenis do Brasil e faz parte da cultura popular brasileira. Então, desconsiderar isso e entender que a obra [de Tintim] não merece ser homenageada é, na minha visão, forçar um pouco a barra.

– Nós devemos entender que Hergé escrevia para o jornal católico de cunho conservador, tendo como seu chefe um cara [Wallez] que tinha apreço pelo fascismo. Importante citar ele escreveu entre 1929 e 1940, o auge do fascismo na Europa como um todo, e a obra deveria representar os interesses e valores da sociedade belga em relação ao Congo – explicou Augusto Chidozie.

Em 1975, oito anos antes de sua morte, Hergé justificou que a história foi escrita quando “estava alimentado de preconceitos do meio burguês no qual vivia”. “E desenhei os africanos de acordo com estes critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica”, afirmou.

O ativista congolês Bienvenu Mbutu Mondondo solicitou na justiça belga, em 2007, que o livro fosse proibido no país. O julgamento aconteceu cinco anos depois, e um tribunal da Bélgica rejeitou o pedido por entender que obra não infringiu a lei de racismo.

Tintim no Congo segue a venda em diversos países, inclusive no Brasil. No site da Amazon, é possível adquirir o livro em português, em sua versão editada, por R$ 46,32. Chidozie, que leu a história, acredita que a comercialização e discussão dessa obra serve para sociedade entender como a cultura pode ser usada por ideologias extremistas, como o fascismo da época.

– A obra com as devidas alterações [da versão original] não deve ser retirada de circulação, inclusive ela é utilizada como exemplo para mostrar como a arte pode ser cooptada para favorecer visões de mundo, em que se coloca o homem branco como centro do universo acima de todas as outras raças.

Em 2011, as Aventuras de Tintim ganharam ainda maior notabilidade com o filme animado dirigido por Steven Spielberg e com Daniel Craig (conhecido por 007) no elenco.

Bélgica, Congo e o legado no futebol

A história do Congo com a Bélgica se inicia ainda no século XIX, quando o rei Leopoldo ll tornou o território como sua propriedade privada e promoveu um dos maiores genocídios da história da humanidade com a morte de pelo menos 10 milhões de congoleses, além de várias atrocidades, tudo pela exploração de borracha. Em 1908, com uma pressão internacional, a nação se tornou uma colônia belga até sua independência (1960).

Como um país colonizador, a Bélgica recebeu vários imigrantes de suas ex-colônias e não foi diferente com o Congo. Obviamente, iria se refletir em uma representatividade de descendentes congoleses em todos os esportes, inclusive no futebol.

A elogiada “geração belga” na última década, terceira colocada na Copa do Mundo de 2018, contava, dentre seus maiores destaques, dois descendentes de congoleses: o centroavante Romelu Lukaku, maior artilheiro da Seleção Belga, e Vincent Kompany, ex-zagueiro e hoje treinador do Burnley.

Lukaku detalhou em diferentes entrevistas como sofreu com o preconceito e conviveu com a pobreza no país europeu. O atacante, hoje na Roma, também percebeu uma diferença de tratamento na imprensa, conforme contou ao The Players Tribune. Quando ia bem, era o atacante belga, mas, quando errava, era o descendente de congoleses.

– Isso infelizmente é comum em praticamente todos os jogadores negros de descendência de países africanos que atuam por seleções nacionais europeias. A tolerância ao erro para esses atletas é muito menor em relação aos seus companheiros brancos. Vide a própria seleção belga que está em crise há um bom tempo […] e as críticas em relação a jogadores negros são mais pesadas, justamente por isso, por conta de serem africanos. Se fossem pessoas brancas de descendência europeia, não sofreriam com críticas tão pesadas assim. É muito recorrente, e não só na Bélgica, mas na Itália, na Espanha, na França, na Europa como um todo – concluiu Augusto Chidozie.

Foto de Carlos Vinicius Amorim

Carlos Vinicius AmorimRedator

Nascido e criado em São Paulo, é jornalista pela Universidade Paulista (UNIP). Já passou por Yahoo!, Premier League Brasil e The Clutch, além de assessorias de imprensa. Escreve sobre futebol nacional e internacional na Trivela desde 2023.
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