Quando Fenerbahçe e Sevilla, recheados de brasileiros, fizeram duelos memoráveis pelas oitavas da Champions
Na temporada 2007/08, Fenerbahçe e Sevilla trocaram vitórias por 3 a 2 nas oitavas da Champions, mas os turcos mereceram a classificação nos pênaltis - com shows de Volkan Demirel, Deivid e Alex

Fenerbahçe e Sevilla fazem um dos melhores confrontos das oitavas de final desta Liga Europa – pelos personagens envolvidos, pelo equilíbrio entre os times, pela tradição dos clubes e, principalmente, pelo histórico entre eles. Afinal, há 15 anos os dois também se enfrentaram por oitavas continentais. No caso, da Champions, em 2007/08. Os andaluzes vinham de peito inflado pelo bicampeonato na Copa da Uefa e tentavam reproduzir o mesmo impacto na Champions League. No entanto, os turcos também voavam baixo e levaram a melhor. Conquistaram a classificação e registraram uma campanha memorável além das fronteiras. Foram dois jogaços, com uma vitória por 3 a 2 para cada lado, mas a merecida passagem do Fener nos pênaltis. Mais legal ainda, os dois times eram recheados de velhos conhecidos do futebol brasileiro – tal qual acontece atualmente.
O Sevilla carregava o favoritismo naquele momento. Os andaluzes atravessavam temporadas históricas. Depois do bicampeonato na Copa da Uefa em 2006 e 2007, a equipe voltava à Champions depois de 50 anos e estreava na fase de grupos. Logo com o pé na porta: os andaluzes lideraram o Grupo H, cheio de adversários tradicionais. A equipe somou 15 pontos na chave que contava também com Arsenal, Slavia Praga e Steaua Bucareste. O ponto alto ficou para o triunfo por 3 a 1 sobre os Gunners no Estádio Ramón Sánchez-Pizjuán, de virada. Foi o resultado que encaminhou a liderança, com a única derrota ocorrida em Londres.

O Fenerbahçe, por sua vez, estava mais acostumado com a Champions. Os Canários disputavam a fase de grupos pela quarta vez, a terceira em quatro temporadas consecutivas. Mais tarimbados, avançaram pela primeira vez aos mata-matas em 2007/08. O Grupo G era até mais difícil. O Fener acabou abaixo da Internazionale, mas conseguiu eliminar PSV e CSKA Moscou, também acostumados ao alto nível continental naqueles anos. O Estádio Sükrü Saraçoglu se provou como um caldeirão poderosíssimo aos auriazuis: venceram os três compromissos dentro de seus domínios, com direito a um gol de voleio de Deivid em jogadaça de Alex no 1 a 0 sobre os interistas. Não era o Sevilla a intimidar.
O Fenerbahçe era treinado por Zico. A lenda brasileira assumiu os Canários após a Copa do Mundo de 2006 e havia deixado sua marca na primeira temporada, com a conquista do Campeonato Turco. O elenco era recheado de destaques da seleção local, prontos para disputar a Euro 2008. O goleiro Volkan Demirel, o volante Selçuk Sahin, o meia Ugur Boral e o atacante Semih Sentürk eram figuras notáveis. Outros naturalizados também auxiliavam bastante, como Colin Kazim-Richards, Wederson e Mehmet Aurélio. Mas era a legião estrangeira, especialmente a brasileira, que demarcava o poderio daquele timaço do Fener.
Alex já era rei em Istambul àquela altura. O armador estava em sua quarta temporada pelo clube e vinha de números absurdos, sempre com dois dígitos em gols e assistências. A braçadeira de capitão era sua. O ataque ainda contava com Deivid, em uma de suas melhores fases da carreira, efetivo como homem de referência e até como ponta. Ninguém menos que Roberto Carlos ocupava a lateral esquerda, no ocaso de sua carreira, mas muitíssimo respeitado na Champions. No miolo de zaga, Edu Dracena tinha uma companhia uruguaia tão apreciada no Brasil, Diego Lugano. Por fim, a cereja no bolo ficava para Mateja Kezman como um camisa 9 de muita rodagem. E isso porque nomes como Claudio Maldonado e Stephen Appiah eram desfalques por lesão.

Não que o Sevilla ficasse atrás em termos de talento. O time era dirigido por Manolo Jiménez, promovido a treinador principal depois que Juande Ramos, o responsável pelo bicampeonato continental, rumou ao Tottenham. A lista de talentos espanhóis no elenco era relativamente limitada, mas tinha algumas lendas locais. Andrés Palop era venerado no Nervión. Já a armação contava com a juventude de promessas como Jesús Navas e Diego Capel. De qualquer forma, aquele grupo sevillista era globalizado e, sobretudo, brasileiro. Eram igualmente numerosos na espinha dorsal dos rojiblancos.
As laterais da equipe contavam com Adriano e com Daniel Alves, importantes no escape ofensivo. Renato era uma ótima opção para o meio-campo, geralmente vindo do banco. Já na frente, Luis Fabiano formava uma dupla formidável com Frédéric Kanouté, das mais marcantes do futebol espanhol no período pela presença física e pelo poder de fogo. Aquela equipe ainda trazia Seydou Keita e Christian Poulsen como dupla de volantes. Na zaga, se combinavam Julien Escudé e Ivica Dragutinovic. Isso sem contar as alternativas que poderiam vir do banco, como Arouna Koné e Enzo Maresca.
O desafio do Sevilla não residia apenas na pressão do Estádio Sükrü Saraçoglu durante a partida ida. Também um inverno intenso afetava Istambul naquele fevereiro de 2008. A capital turca registrava temperaturas negativas e, na véspera do jogo, o gramado amanheceu coberto por 20 centímetros de neve. Além disso, acostumado a encarar os rojiblancos em La Liga, Roberto Carlos servia de informante à preparação do Fener. Elementos para o inferno que se prometia aos andaluzes na Turquia.

O Fenerbahçe cumpriu a missão dentro de casa. Não foi a equipe mais organizada, mas se valeu de seu talento individual e derrotou o Sevilla por 3 a 2. O primeiro gol saiu logo cedo, aos 16 minutos, num cruzamento de Ugur Boral para a cabeçada de Kezman. O empate do Sevilla aconteceu aos 23, numa infelicidade de Edu Dracena, que desviou contra as próprias redes um cruzamento de Daniel Alves. Apesar do baque, o Fener seguiu melhor até o intervalo. Palop evitou o segundo gol com grandes defesas em cabeçadas de Mehmet Aurélio e Edu Dracena. O próprio Dracena também seria crucial na defesa, ao se redimir com um bloqueio no mano a mano contra Jesús Navas, que evitou a virada.
O segundo tempo voltou com Volkan Demirel também testado na meta do Fenerbahçe. Entretanto, os Canários retomaram a vantagem aos 12 minutos. Num escanteio cobrado com perfeição por Alex, Lugano meteu a cabeçada fatal. Só não deu para aproveitar tanto, com o novo empate dos sevillistas. A fórmula também funcionou do outro lado, aos 21. Num escanteio que Poulsen triscou, Escudé definiu na pequena área. A esta altura, a situação permanecia aberta e os gols fora de casa até favoreciam os andaluzes rumo à partida de volta. Para piorar, Roberto Carlos deixou o campo por causa de um corte no rosto.
O gol da vitória do Fenerbahçe só aconteceu aos 42 do segundo tempo. E contou com um substituto providencial, Semih Sentürk, que costumava vir bem do banco. O lance mais uma vez teria a assinatura de Alex, que avançou pela intermediária e ganhou a dividida, antes de abrir o passe com o centroavante. Semih encarou a marcação e bateu cruzado, mascado. Não era a bola mais difícil, mas Palop poderia fazer melhor e o tiro rasante também tomou o caminho certo das redes. O resultado se tornava valiosíssimo para o Fener, antes do reencontro duas semanas depois.
O Fenerbahçe viajou para a Espanha desfalcado de Roberto Carlos. Já o Sevilla poupou seus jogadores no Campeonato Espanhol para visar a Champions. Até o presidente José María del Nido pedia para que a torcida comparecesse ao Estádio Ramón Sánchez-Pizjuán, para que os rojiblancos criassem sua própria versão do “inferno” visitado na Turquia. Em campo, mesmo sem jogar tão bem, os sevillistas ganharam por 3 a 2. O que não seria suficiente nos pênaltis.
O Sevilla começou com tudo a partida. Volkan Demirel também começou muito mal. Os andaluzes anotaram seus dois primeiros gols com menos de dez minutos, ambos com colaboração do arqueiro. O primeiro surgiu numa falta cobrada por Daniel Alves, que Volkan aceitou, com a mão mole. Logo depois, Keita arriscou de muito longe e o goleiro pulou todo estranho, sem conseguir espalmar. O golpe no moral do Fenerbahçe era enorme e o time não podia derreter. E se mostrou mais forte na sequência. Depois de boas chegadas, os Canários voltavam à vida com 21 minutos, num escanteio que Alex cobrou pela esquerda, Mehmet Aurélio desviou com o calcanhar e Deivid aproveitou com um chute forte, no fundo das redes.
A sequência da partida era equilibrada. Os dois times chegavam com vontade no ataque, mas o Fenerbahçe era até mais contundente. Apesar disso, o Sevilla terminou o primeiro tempo com uma vantagem mais ampla. O terceiro gol ocorreu aos 41. Daniel Alves cruzou e Kanouté matou no peito, antes de virar o chute cercado pelos zagueiros. O Fener tinha uma montanha a escalar novamente, mas, de qualquer maneira, iria precisar de um gol se tomasse o terceiro ou não. E os Canários poderiam ter descontado antes mesmo do intervalo, com duas bolas salvas em cima da linha.

O segundo tempo guardou uma pressão tremenda do Fenerbahçe. Os turcos colocaram o Sevilla contra a parede, mesmo dentro do Ramón Sánchez-Pizjuán. Toda hora Alex aparecia na área e as batidas de longe também vinham. As respostas dos sevillistas eram bem mais pontuais. E o gol decisivo naturalmente sairia, aos 34. Alex cobrou falta da intermediária e conectou perfeitamente com Deivid, passando livre no segundo pau. O atacante parou na trave e em Palop no primeiro momento, mas o rebote ficou vivo dentro da área e ele mesmo aproveitou. Era o segundo tento dele na noite, o mais importante. Ainda deu para acreditar na virada, antes que a prorrogação começasse.
Deivid estava mesmo disposto a eternizar seu nome naquela Champions. Durante o primeiro tempo extra, o atacante teve a melhor chance do Fenerbahçe e acabou batendo para fora. O Sevilla sentia as dificuldades e criava pouquíssimo. Passaria longe de resolver o confronto, numa prorrogação cautelosa. Sem que ninguém marcasse, a definição do classificado se concentrou na disputa por pênaltis. O Fener chegava bem mais leve na marca da cal. E, mais importante, Zico conseguiu motivar Volkan para dar sua volta por cima depois das falhas do início do duelo. Foi quando o ídolo se agigantou na meta auriazul.
Kanouté converteu o primeiro chute do Sevilla, assim como Wederson pelo lado do Fenerbahçe. Volkan parou o arremate de Escudé, mas Palop também brecou Edu Dracena na sequência. Dragutinovic recolocou o Sevilla em vantagem e Mehmet Aurélio empatou. Até que Volkan deslanchasse. Defendeu também o chute de Maresca, para Kezman garantir a dianteira aos Canários. E, no último penal dos sevillistas, Daniel Alves foi barrado por Volkan. O Fener sequer precisou da última cobrança para confirmar a vitória por 3 a 2. As comemorações dos auriazuis na Andaluzia eram muito vibrantes. A história se cumpria naquele instante.
A aparição do Fenerbahçe nas quartas de final garantia a melhor campanha do clube na história da Champions e também o melhor desempenho além das fronteiras desde a Recopa Europeia de 1963/64, quando os Canários também caíram nas quartas. Era o melhor resultado de um clube turco na fase moderna da Champions, repetindo as quartas de final do Galatasaray em 2000/01 – os Leões tinham sido semifinalistas em 1988/89. O Fener ganhava o direito de desafiar um badalado Chelsea, embora numa temporada conturbada após a saída de José Mourinho e a chegada de Avram Grant.
O caldeirão do Sükrü Saraçoglu funcionou na ida e o Fenerbahçe derrotou o Chelsea por 2 a 1, de virada. O primeiro gol foi contra, de Deivid, num desvio infeliz do atacante contra o próprio patrimônio. O empate surgiu num grande lançamento de Mehmet Aurélio, para a definição de Kazim. Já o tento decisivo, aos 36 do segundo tempo, garantiu a redenção de Deivid. O atacante recebeu na intermediária e disparou uma sapatada, que entrou direto no ângulo de Carlo Cudicini. Um gol inesquecível para os mais de 55 mil presentes em Istambul. Todavia, em Stamford Bridge, Michael Ballack e Frank Lampard determinaram a passagem dos Blues com os 2 a 0 no placar. Seriam os vice-campeões naquela edição da Champions.
Quinze anos depois, o Fenerbahçe sonha com as quartas de final da Liga Europa, depois de avançar até esta fase do torneio em 2012/13. E o Sevilla reaparece pela frente com um histórico respeitabilíssimo no torneio, mas uma fase recente que gera desconfiança. A vitória por 2 a 0 no Nervión facilita demais aos andaluzes. É ver se aquele velho espírito de 2008 retoma o Sükrü Saraçoglu, para outra noite europeia marcante.