Guardiola se reencontrou com a Champions ao montar o Manchester City mais confortável em situações desconfortáveis
Doze anos depois, o melhor técnico do mundo volta a conquistar o título mais importante do futebol europeu de clubes e entra no seleto grupo de tricampeões

O princípio da filosofia de Pep Guardiola é o controle. Deixar o mínimo possível ao acaso. Embora tenha conquistado a Champions League duas vezes em suas primeiras três temporadas como treinador, não combina muito bem com mata-mata, em que coisas extraordinárias acontecem com frequência. O que ficou conhecido como uma mania de inventar em jogos decisivos pode ser um reflexo para tentar minimizar as improbabilidades. Ele foi aprendendo essa lição durante as frustrações da última década pelo Bayern de Munique, eliminado amassando o Atlético de Madrid por exemplo, e pelo Manchester City. O seu terceiro título europeu poderia ter sido conquistado antes, mas também não é coincidência que tenha chegado no momento em que ele armou um time que sabe se adaptar a diferentes fases de uma partida.
O guardiolismo não é e nem nunca foi alérgico ao mata-mata. Se demorou 12 anos para voltar a conquistar a Champions League, agora pela primeira vez sem Lionel Messi, é porque é muito difícil ganhar a Champions League: apenas Carlo Ancelotti conseguiu fazê-lo mais de três vezes. Guardiola agora está ao lado do italiano, de Bob Paisley e Zinedine Zidane como os únicos tricampeões. E chegou perto. Foram três semifinais com o Bayern de Munique e três com o City, com uma outra decisão. Mas é fato que seu estilo funciona melhor em pontos corridos, nos quais a sistematização, os padrões, a criação que depende mais do coletivo do que do indivíduo, ao longo de 38 rodadas, quase inevitavelmente o colocam na primeira posição.
Foi fascinante acompanhar a evolução da carreira de Guardiola, porque por maior que seja a sua fama de dogmático, o estilo que o marca passou por várias mutações. Foram necessárias porque cada liga tem uma característica e porque os jogadores, claro, são diferentes. O Bayern de Munique era mais físico e usava mais passes longos do que o Barcelona. Uma das primeiras surpresas que teve na Premier League foi a quantidade de tempo que a bola fica viva e longe do chão. Precisou aprender a lidar com peculiaridades, sem nunca abrir mão da sua essência. O atual Manchester City teve a temporada perfeita porque talvez seja o time de Guardiola mais confortável em situações desconfortáveis.
O popular “saber sofrer”. Na prática, é não perder a cabeça quando as coisas não estão dando certo, não se desesperar quando o outro time está pressionando. Quando o outro time parece melhor. É praticamente impossível passar por um mata-mata inteiro sem se ver nessa situação. O papo do peso da camisa é que existem alguns clubes que carregam esse conhecimento na medula – alô Real Madrid. Na parte mental, o City teve que aprender a fazê-lo, mas mais importante do que isso foi a construção tática de um time com mais de uma faceta, que também sabe se defender quando precisa, sabe contra-atacar, sabe usar a presença física do melhor centroavante do mundo, ao mesmo tempo que não necessariamente precisa recorrer a isso.
O Manchester City teve que sair da sua zona de conforto contra o Bayern de Munique e contra o Real Madrid. E também em Istambul. É possível defender que a Internazionale executou melhor a sua proposta. Uma partida travada, com poucos espaços, chances raras, disputada mais nas divididas e no físico, não era o cenário ideal para os ingleses. Mas, enquanto era isso que eles tiveram, também não cederam muita coisa para os adversários na defesa, mantiveram-se concentrados e esperaram a hora do bote. Quando ela chegou, o gol foi construído pela jogada mais clássica do guardiolismo: o passe que quebra a linha nas proximidades do bico da grande área, o cruzamento rasteiro (por que você acha que Gabriel Jesus fazia tanto gol na pequena área?) ou o toque para trás e a finalização de primeira.
O City havia demonstrado essa flexibilidade na última temporada, e a contratação de Erling Haaland serviu de catalizador para que o patamar fosse elevado. É a hora que temos que pelo menos mencionar o dinheiro porque ele determina o teto: a competência está ao alcance de todos, mas o que eles podem se tornar depende dos recursos disponíveis. O City nunca teve um teto. Onze anos atrás, Ferran Sorriano chegou ao Etihad Stadium para começar a preparar o terreno para ter Pep Guardiola. Após trazê-lo, lhe deu todas as condições para montar o time que quisesse e da maneira que quisesse – violando regras da Uefa e da Premier League ao longo do caminho. Isso posto, uma vez que obteve as peças, virou uma questão de entender as melhores maneiras de utilizá-las.
A temporada começou com uma pergunta: como Guardiola conseguirá integrar Haaland ao seu jogo coletivo? Existia uma questão de equilíbrio entre o que o seu time perderia em criação com a saída de um meia e ganharia com a capacidade de finalização do norueguês. É claro que Guardiola soube responder porque é o melhor técnico do mundo e encontrar soluções é o ele que faz. A sacada foi dar a John Stones uma função híbrida, defendendo como zagueiro ou lateral direito, e atacando como um segundo volante (em Istambul, quase um meia-direita) ao lado de Rodri. Com a bola, o City continuou com quatro meias e compensou a parte defensiva abrindo mão de laterais construtores, com uma retaguarda às vezes composta apenas por zagueiros, com Jack Grealish e Bernardo Silva mais alas do que pontas puros – para uma análise mais profunda dessa mudança, recomendo este ótimo texto do Carlos Eduardo Mansur no ge.globo.
No começo da temporada, Haaland e o time do Manchester City muitas vezes pareceram entidades separadas que temporariamente formavam uma parceria durante 90 minutos. A coesão foi melhorando com o tempo, e o que a final da Champions League mostrou é que, se Haaland fizer três gols e arrebentar, ótimo, o City provavelmente ganhará. Mas se não estiver em seu melhor dia, se o jogo entrar em uma dinâmica em que está difícil levar a bola até a ele, como a Internazionale acabou impondo, o City também sabe ganhar de outras maneiras. Ele deu uma finalização, e existe um cenário em que aquela batida de perna esquerda aos 27 minutos entra, abre o jogo para os ingleses, e ele termina como o grande destaque. Não foi o que aconteceu. Não foi necessário que acontecesse, e isso torna o City muito, muito, muito perigoso.
O alívio de ter finalmente conseguido ganhar a Champions League também. O problema nunca foi futebol. Esta não é a primeira temporada de melhor time do mundo que Guardiola conseguiu construir em Manchester. As barreiras que adiaram este momento eram de outra natureza, principalmente psicológicas. Agora que elas foram retiradas, é assustador pensar o que um Manchester City leve poderá fazer no cenário europeu. E aí, talvez uma hora pareça até ridículo que tenha havido um momento em que contestamos quantos títulos europeus Guardiola tinha. Porque, sinceramente, pela importância que ele tem, pela qualidade que demonstrou, pela longevidade sendo competitivo no mais alto nível, três ainda é pouco.