Champions League

A volta do Dynamo Kiev ao Camp Nou resgata as memórias de um jovem fenômeno chamado Shevchenko

Duas décadas depois, o sucesso do Dynamo Kiev na Champions League durante a virada do século pode ser visto como uma surpresa. Os ucranianos, no entanto, faziam por merecer sua reputação. A equipe era treinada por Valeriy Lobanovskyi, considerado por muitos como um dos maiores técnicos da história. Já em campo, o elenco contava com uma fornada de jovens talentos, estrelada por Andriy Shevchenko e Serhiy Rebrov. Pois o encontro com o Barcelona no Camp Nou traz excelentes lembranças ao Dynamo e a Sheva. Em 5 de novembro de 1997, os alviazuis golearam por inapeláveis 4 a 0 na Catalunha. O atacante de 21 anos anotou uma tripleta e destruiu a zaga adversária.

Barcelona e Dynamo Kiev compunham um grupo parelho na Champions 1997/98. PSV e Newcastle eram os outros concorrentes, numa época em que apenas o líder da chave tinha sua classificação garantida de antemão. Os ucranianos pareciam correr por fora, voltando à fase de grupos após três temporadas de ausência e ocupando apenas o Pote 4 no sorteio. Apesar das desconfianças, logo conquistaram quatro pontos nas duas primeiras rodadas, enquanto os espanhóis estavam já ameaçados com um ponto. E o confronto no Estádio Olímpico de Kiev, diante de 100 mil pessoas, marcaria o estrago que os alviazuis eram capazes de causar. Ganharam por 3 a 0 do Barça, em diferença construída desde os primeiros minutos.

Treinado por Louis van Gaal, o Barcelona atravessava um momento de reconstrução. Ainda assim, tinha uma equipe renomada, estrelada por Rivaldo, Luis Figo e Luis Enrique. Já do lado do Dynamo, a juventude de Lobanovskyi estava em alta. Rebrov precisou de seis minutos para abrir o placar, escapando da marcação e batendo no alto, por cima do goleiro Ruud Hesp. Os ucranianos seguiam levando mais perigo e Sheva carimbou a trave, antes que Yuriy Maximov ampliasse aos 32, numa sobra dentro da área. Já no segundo tempo, como se não estivesse difícil o suficiente, Hesp terminou expulso por matar um contragolpe de Shevchenko fora da área. Carles Busquets entrou na meta e tomou uma bola na trave logo de cara, antes que Yuriy Kalitvintsev fechasse a conta.

Shevchenko passou em branco em Kiev, mas tinha saído como um dos melhores em campo. De qualquer forma, a demolição viria mesmo na Catalunha, duas semanas depois. Vítor Baía entrou no gol do Barcelona, enquanto Giovanni era outra novidade na equipe titular. Enquanto isso, o Dynamo Kiev mantinha suas principais figuras, sobretudo a dupla de ataque centrada em Sheva e Rebrov. De novo, os alviazuis não demorariam a impor sua vitória, num resultado ainda mais contundente.

Nove minutos bastaram para o primeiro gol do Dynamo, e de Shevchenko. Vítor Baía saiu mal do gol e, aproveitando uma cobrança de falta, o craque cabeceou à meta aberta. O Barcelona tentava pressionar, mas o Dynamo era mais perigoso e chegou a ter um gol anulado. Sheva infernizava os marcadores, arrancando pelas duas pontas e driblando em velocidade, até assinalar o segundo aos 32. De novo Vítor Baía saiu caçando borboletas e, numa disputa pelo alto, o centroavante ganhou do goleiro para estufar às redes. Já no final do primeiro tempo, o Barça teria uma bola na trave, mas Shevchenko completou sua tripleta. Sofreu um pênalti, que ele mesmo converteu.

No início do segundo tempo, o Barcelona se complicou um pouco mais por outra expulsão. Sergi Barjuán recebeu o segundo amarelo e foi para o chuveiro mais cedo. Qualquer tentativa de reação acabaria esfriada pelo Dynamo, que ainda contou com boas defesas do goleiro Oleksandr Shovkovskiy. Foi só a dez minutos do fim que Rebrov fechou o caixão. Depois de uma grande jogada individual de Shevchenko, os blaugranas saíram jogando errado e, com Vítor Baía fora da meta, Rebrov bateu da intermediária ao gol vazio. Fim de um massacre histórico, que não permitiu nem o gol de honra aos espanhóis.

“A primeira coisa que deveria ser perguntada é se o nome de Shevchenko figurava nos expedientes do amplo organograma técnico do Barça, quando se buscava um substituto para Ronaldo. […] Shevchenko deu um curso de mobilidade, sentido de verticalidade, rapidez e faro de gol. Justo o que necessita o Barcelona, já que seus craques rendem em La Liga, mas não dão conta quando chegam no exterior”, escrevia o Mundo Deportivo, no dia seguinte. O periódico chamava Sheva de ‘pesadelo blaugrana', com uma atuação que mereceu quatro estrelas na avaliação do jornal.

“A visita do Dynamo foi muito cruel. Não só pelo histórico 4 a 0 final, chocolate europeu sem precedentes no Camp Nou, mas também porque a equipe ucraniana recordou justamente o Ajax de Van Gaal: uma máquina de futebol perfeita. Jogou maravilhosamente compacta, teve uns conceitos de transição defesa-ataque pouco menos que perfeitos e exibiu uma técnica individual muito estimável. Onde acabava o trabalho coletivo, aparecia a figura de seu homem mais avançado, um jovem atacante de 21 anos pelo qual em breve pagarão muitos milhões”, concluía o jornal catalão.

O Barcelona sequer deixou a lanterna naquela Champions. Apesar de ganhar do Newcastle e de empatar com o PSV nos dois últimos compromissos, os blaugranas amargaram a última colocação do grupo. Já o Dynamo cumpriu sua parte ao se classificar. Os ucranianos asseguraram a primeira colocação com uma rodada de antecedência, após o empate com o PSV. Assim, não foi problema perder na visita ao Newcastle em St. James Park. Os alviazuis acabariam eliminados pela Juventus nas quartas de final daquela Champions. Na edição seguinte, com a mesma base treinada por Lobanovskyi, foram até as semifinais – quando despacharam o Real Madrid nas quartas, até a queda diante do Bayern de Munique.

Shevchenko deixou o Dynamo em 1999, quando se transferiu ao Milan – que já tinha feito uma oferta de US$17 milhões dias antes dos 4 a 0 no Camp Nou, recusada tanto pelo clube quanto pelo jogador. Na Itália, o centroavante confirmou-se como uma lenda, especialmente na Champions – sendo um dos protagonistas na conquista de 2002/03. Aquelas partidas contra o Barcelona, ainda assim, ocupam um lugar especial em sua história. Marcam a eclosão de um craque, no maior dos torneios da Europa.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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