A insanidade causada por 90 minutos alucinógenos permite que o Tottenham sonhe acordado na Champions
Alucinação. Um termo contundente, mas perfeito para definir uma noite incessantemente insana na Champions League. Na música de mesmo nome, Belchior canta que “meu delírio é a experiência com coisas reais”. E, de fato, se tornou impossível não delirar com o jogo de futebol que se concretizava diante dos olhos no Estádio Etihad. Porém, a sucessão de fatos era tão inverossímil que, por vezes, custou-se a acreditar que aquela experiência era real. O Tottenham certamente não quer acordar do sonho. O Manchester City aguarda a reversão do pesadelo. E a Champions ganhou um de seus confrontos mais épicos, para ser recontado por décadas, selando o último classificado às semifinais. Os Spurs passaram, derrotados por 4 a 3, mas se valendo do triunfo por 1 a 0 em casa e dos gols anotados em Manchester. Contudo, não seria surpresa se os desenganos da mente levassem alguém a acreditar que os Citizens sobreviveram. Depois de quatro gols em 11 minutos, duas viradas no placar, quatro reviravoltas na classificação, uma pressão incessante, uma defesa abnegada, craques inspirados, heróis improváveis e (cereja do bolo) o gol milagroso revertido pelo VAR, o cérebro tem sua permissão para entrar em pane. Serão necessários alguns dias para processar tudo o que aconteceu na Inglaterra, para se entender e se explicar o vivido. Para sair dos 90 minutos alucinantes e recobrar a consciência diante da epopeia. Os londrinos, todavia, em seu direito de continuarem alucinados.
[foo_related_posts]A promessa de um jogo aberto começou pelas escalações. Bastante criticado pelas escolhas que fez no jogo de ida, Pep Guardiola trouxe várias mudanças ao Manchester City. A zaga tinha Vincent Kompany acompanhando Aymeric Laporte, além de Benjamin Mendy de volta à lateral esquerda, após a desastrosa participação de Fabian Delph. Se Fernandinho não estava em suas melhores condições, a trinca de meio-campista possuía mais qualidade técnica com Ilkay Gündogan, Kevin de Bruyne e David Silva. Já na frente, o retorno de Bernardo Silva dava um alívio, ao lado de Raheem Sterling e Sergio Agüero. Do outro lado, Mauricio Pochettino também foi obrigado a modificar o Tottenham. Enquanto o sistema defensivo repetia a linha da última semana, Harry Winks não estava apto no meio. Victor Wanyama acompanhou Moussa Sissoko na cabeça de área. Já na linha de frente, o sentido desfalque de Harry Kane deixou Son Heung-min mais adiantado em campo. Dele Alli, Christian Eriksen e Lucas Moura completavam o quarteto ofensivo.
Como era de se esperar, o Manchester City iniciou o jogo pressionando bastante. E as mudanças no time se mostraram muito bem-vindas, com o gol instantâneo, aos quatro minutos. De Bruyne possui os seus méritos, ao receber no meio e puxar a marcação. De qualquer maneira, o grande responsável foi mesmo Sterling, sublinhando sua fase espetacular. A defesa do Tottenham se concentrou na faixa central e o ponta recebeu com enorme liberdade pela esquerda. Dominou, cortou para o centro e teve tempo para desferir um chute cruzado certeiro, no canto de Lloris, que não teve o que fazer. Até parecia que a intensidade dos Citizens poderia gerar uma goleada logo cedo. Impressão que veio por terra segundos depois, quando a visão começou a embaçar e a alucinação tomou forma.
O Tottenham respondeu logo na sequência. Em seu primeiro ataque, aos sete minutos, se deu o empate. A troca de passes pelo meio deixou a defesa do Manchester City mal posicionada e, embora o passe final não tenha sido bom, Laporte foi pior ainda na tentativa de fazer o corte. Ajeitou para Son, livre na entrada da área. O sul-coreano bateu de primeira, sem dar tempo de reação a Ederson. O gol incendiou os Spurs e Son não demoraria a bater no peito outra vez, para mostrar seu poder de decisão. A virada se consumou aos dez minutos. Erro de Laporte na saída de bola, permitindo que Lucas Moura batesse sua carteira. O brasileiro avançou e passou a Eriksen. Já no bico da grande área, Kyle Walker precisava marcar dois. Perdeu-se quando o camisa 7 pegou a bola e deu um lindo tapa em direção ao ângulo, tirando do alcance de Ederson. Os londrinos voltavam a se aproximar da classificação, ensandecidos.
Contudo, se o City sentiu a sequência de golpes dada por Son, o Tottenham também exagerou na euforia e se desligou. Aos 11 minutos, novo empate. A defesa ficou exposta e Agüero conectou com Bernardo Silva na direita. O chute do português nem foi dos melhores, mas a bola desviou em Danny Rose e enganou Lloris. Nunca um jogo de Liga dos Campeões teve quatro gols em tão pouco tempo. Por mais que as expectativas fossem de um grande embate, o duelo no Estádio Etihad as superava por toda a eficiência das equipes. Por toda a loucura imprimida em parcos minutos de bola rolando. Era mesmo real?
Apesar do empate, o Manchester City precisava de dois gols. Recobrou a realidade a partir disso. Voltou a dominar a iniciativa, até que o Tottenham respondesse com muita calma e paciência. Podendo gastar o tempo, os Spurs rodavam a bola e não tinham pressa para acelerar suas investidas. Não à toa, praticamente equilibraram a posse de bola. Os celestes, de qualquer maneira, não permitiam aos adversários nenhum instante de desatenção. E a nova virada já se consumou aos 21 minutos. Cobrança rápida de falta na intermediária, em que Bernardo Silva desequilibrou. O português encarou a marcação dupla e deu um soberbo passe de calcanhar. Deixou a avenida aberta para De Bruyne, cruzando no capricho para Sterling. Livre no segundo pau, o ponta apenas escorou para marcar mais um e deixar sua equipe ainda mais viva no confronto. O Estádio Etihad se via em chamas.
Só que o jogo esfriou um pouco na sequência do primeiro tempo. O Manchester City rodava a bola e tentava abrir a defesa do Tottenham, mas andava difícil. De Bruyne e Bernardo Silva comandavam as ações da equipe. E a situação ficou difícil ao Tottenham quando Moussa Sissoko, bem na partida, se lesionou sozinho. Sem opções ao setor no banco, Pochettino preferiu recuar os seus meias e deixar Fernando Llorente isolado no ataque. Em meio à provação, quase Son completou sua tripleta, em tiro cruzado que saiu com muito perigo, aos 42. De qualquer maneira, o City estava no controle. Pouco antes do intervalo, os celestes esboçaram uma última pressão, errando demais na conclusão das jogadas. Promessa de um segundo tempo igualmente elétrico no Etihad.
A necessidade impulsionou o Manchester City na etapa complementar. O time precisava amassar os oponentes para buscar o gol necessário. E não demorou a fazer o Tottenham de sparring. Esbarrou em Lloris. Aos cinco minutos, o goleiro fez uma grande defesa. Sterling chutou de primeira e o capitão rebateu do jeito que dava. Por sorte, a defesa apertou Bernardo Silva, que mandou para fora o rebote. Pois o milagre mais impressionante de Lloris aconteceu três minutos depois. Chute colocado de De Bruyne, para o francês saltar e dar uma linda ponte de mão trocada. O volume de jogo dos Citizens era sufocante, enquanto os Spurs mal conseguiam se mexer, sem encaixar os contra-ataques. Numa rara chegada, Llorente desviou de cabeça e Ederson conseguiu defender.
O quarto gol do Manchester City, todavia, era incontornável. Aconteceu aos 14 minutos, em mais uma jogada criada por De Bruyne. O belga avançou pela intermediária, limpou a marcação de Wanyama e achou Agüero com espaço pela esquerda. Em um chute característico, o argentino encheu o pé e finalmente venceu Lloris. A classificação era dos Citizens neste momento e ninguém poderia dizer que não existiam méritos. O Tottenham, por sua vez, tinha a sua fé. Precisava se agarrar em dois objetivos: defender-se da melhor maneira e encontrar o gol que revertesse o cenário outra vez. Missão dificílima, mas que dependia de concentração e uma pitada de ajuda do destino.
Sem sobressaltos, o Manchester City parecia muito mais próximo do quinto gol. Guardiola tirou o apagado David Silva e fechou o meio com Fernandinho, que não vinha em suas melhores condições físicas. Mesmo assim, as tentativas seguiam com os celestes, que não concluíam com eficácia. A defesa do Tottenham estava inteira para abafar e dificultar os adversários. Fazia o seu trabalho, enquanto esperava um lampejo no ataque. Ele havia de vir. Surgiu aos 26, em uma enfiada de Kieran Trippier para Son. A bola ia saindo pela linha de fundo, mas o sul-coreano conseguiu chutar e Ederson fechou o ângulo. Escanteio. Na cobrança, o goleiro falhou e cedeu outra cobrança para os Spurs. O lance fatal. O cruzamento de Trippier não foi das melhores, mas Kompany apenas resvalou. Llorente saltou e não achou nada. Ainda assim, viu a bola bater em seu braço e depois em seu quadril, antes de morrer nas redes. O árbitro Cüneyt Çakır se dirigiu ao vídeo para conferir a validade do tento e a confirmou, avaliando o toque involuntário do centroavante. A classificação voltava a ficar com os londrinos, em transe.
A princípio, o Manchester City sentiu o gol. O Tottenham voltou a martelar e buscou o quarto logo em seguida. No entanto, os celestes logo colocariam a cabeça no lugar e buscariam seu objetivo. Aos Spurs, restavam cerca de 20 minutos abnegados, em que precisavam defender com firmeza e gastar o tempo ao máximo. Um jogo tão intenso, nesta reta final, virou extremamente cardíaco. Os Citizens insistiam no jogo aéreo e, quando Agüero cabeceou livre, Lloris fez outra defesa belíssima. Com os londrinos se segurando de maneira bastante compacta, faltava espaço ao time de Guardiola. E os treinadores fizeram suas últimas trocas depois dos 35. Ben Davies e Davinson Sánchez terminaram de estacionar o ônibus visitante. Já a última cartada dos mancunianos veio com Leroy Sané, suplantando Mendy.
O tempo apressava o Manchester City. A torcida celeste voltava no tempo e reviver aquele 13 de maio de 2012, contra o Queens Park Rangers. Era um completo ataque versus defesa, em que os Citizens tentavam e aguardavam o raio cair do céu. Ele quase veio com Gündogan, em bola ajeitada de cabeça por Sané, mas o alemão exagerou na força e mandou por cima. O time de Pep Guardiola demonstrava uma dose de nervosismo. Viria outro milagre? Pois os mancunianos pareceram assinar um pacto quando, no terceiro minuto dos acréscimos, aconteceu o quinto gol. Três jogadores apertaram Eriksen, o recuo do dinamarquês foi desviado por Bernardo Silva e sobrou com Agüero. Desta vez o argentino não seria o herói principal, mas passou a Sterling arrematar sua tripleta. Bola nas redes, o milagre era concreto. Explosão no Estádio Etihad, desencadeando uma celebração completamente alucinada. A classificação viria. Mas segundos bastaram para os anfitriões irem do tudo ao nada. O VAR detectou o impedimento do centroavante e Çakır nem precisou ir ao vídeo para anular o gol. O destino voltava às mãos do Tottenham.
O City parecia não entender o que ocorreu. Um anticlímax tremendo quebrou as pernas dos celestes e impediu qualquer reação. O time da casa se tornou passivo e Son poderia ter anotado o quarto, contido por Ederson. Já nos minutos a mais dos acréscimos, os mancunianos se debatiam, negando-se à eliminação, negando-se a admitir que o êxtase se tornara irreal após meia dúzia de palavras no fone de ouvido. Não seria possível evitar a classificação heroica do Tottenham. Entre a loucura dos minutos finais e o temor dos finais, os Spurs sobreviveram para a sua primeira semifinal de Champions desde 1961/62.
É difícil apontar o dedo ao Manchester City e declarar qualquer culpa nesta quarta-feira. O time jogou melhor e venceu. Concedeu mais gols do que deveria, por erros pontuais – de Laporte e Ederson, principalmente. Contudo, teve uma postura ofensiva e buscou o ataque a todo momento. Faltou um gol, que não aconteceu por centímetros. Se foi mal na ida, desta vez Guardiola realizou as mudanças necessárias e as novas peças melhoraram o time. De Bruyne, Bernardo Silva e Agüero viveram uma noite espetacular. Mas não foi suficiente, algo do futebol, algo do imponderável que toma as quatro linhas. Que Fernandinho não fosse o melhor nome naquele momento ou Sané tenha entrado tarde demais, são escolhas, não necessariamente falhas. E em um duelo de eficiência, o Tottenham acabou um passo à frente. Insanamente à frente.
Pochettino, por outro lado, tira leite de pedra. O número de desfalques ao Tottenham é imenso, sobretudo ao se considerar o elenco enxuto dos londrinos. Fizeram o inesperado. Contaram com Son e Lloris, dois esperados protagonistas, assim como heróis improváveis, menções honrosas a Wanyama e Llorente. Não vem sendo uma temporada fácil aos Spurs, seja pelas oscilações ou pelos diferentes problemas que o clube encara. A situação na Premier League está aberta, mesmo com a terceira colocação. Apesar de tudo isso, a história está feita. Pela primeira vez em 57 anos, os londrinos estão em uma semifinal. E não necessariamente apenas pelo talento deste grupo, algo que sobra. Sim pelo coração e pelo espírito vitorioso, de um time que não se entregou, que não se abateu, que lutou até o sonhado apito final para selar sua epopeica classificação. Ainda sem alcançar o cobrado título, esta equipe se grava definitivamente na memória.