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O Cádiz atravessou uma grande reconstrução e, 14 anos depois, retorna à elite de La Liga

O Cádiz representa uma memória afetiva aos torcedores que acompanhavam o futebol espanhol na virada dos anos 1980 para os 1990. O Submarino Amarelo original carregava consigo a tradição do Troféu Ramón de Carranza, a paixão de uma das torcidas mais fanáticas do país e o talento de alguns jogadores emblemáticos – como o hipnotizante Mágico González, o icônico Juan José ou o prodígio Kiko Narváez. Foram oito temporadas seguidas na elite, sem nunca passar do 12° lugar, até que o descenso ocorresse em 1993. Desde então, uma breve aparição na primeira divisão em 2005/06 serviu de alento aos andaluzes. Na maior parte do tempo, o calvário se vivia na terceira divisão. Mas, depois de 14 anos, os cadistas puderam recobrar o sentimento de grandeza neste domingo: estarão de volta a La Liga na próxima temporada.

Tradicional figurante da segunda divisão desde a década de 1930, o Cádiz surgiu na elite do Campeonato Espanhol pela primeira vez em 1977/78. Seria uma rápida aparição, com o rebaixamento logo em seguida. O mesmo aconteceu em 1981/82 e em 1983/84, quando o Submarino Amarelo emergiu e logo depois afundou. A manutenção na primeira prateleira se daria a partir de 1985/86, quando os andaluzes não faziam exatamente sucesso na Liga, mas se mantinham bravamente na elite. Tempos em que Mágico González, salvadorenho considerado por muitos como um dos jogadores mais habilidosos que já atuaram na Espanha, mantinha viva a chama no Estádio Ramón de Carranza.

A vida do Cádiz no Campeonato Espanhol era sempre no limite e por três vezes o clube conseguiu escapar do rebaixamento nos playoffs que existiam na época. Porém, não haveria como se salvar em 1992/93, com a queda direta à segundona. O Submarino Amarelo, então, demoraria um bocado a se reerguer. A transformação da agremiação em sociedade anônima naquele momento atrapalhou, com os novos donos dando de ombros para os problemas e logo a “empresa” passando por diferentes mãos.

Diante da bagunça interna, o Cádiz caiu também à terceirona logo em 1993/94 e ficaria nove temporadas consecutivas por lá. Ao mesmo tempo, o tradicionalíssimo Troféu Ramón de Carranza acabava relegado ao ostracismo. A competição, organizada pela prefeitura da cidade e que contou com boas participações do clube da casa nos anos 1980, já não causava o mesmo interesse nos gigantes europeus durante a virada do século e via os abismos aumentarem em relação aos clubes sul-americanos que a frequentavam. Não era um momento reluzente ao futebol local.

O renascimento do Cádiz seria meteórico. Após conquistar o acesso à segunda divisão em 2002/03, o time já estava de volta à elite do Campeonato Espanhol duas temporadas depois. Seria o brilhareco de um ano, em que a torcida pôde recobrar o gosto de figurar no primeiro nível e de enfrentar os grandes, mas que não evitou o descenso com a penúltima colocação em La Liga 2005/06. Para piorar, com mais duas temporadas, de novo o Submarino Amarelo precisaria se reconstruir na terceirona. Subiu de imediato em 2008/09, mas caiu outra vez em 2009/10. Seriam sete longos anos amargando o futebol semiprofissional.

Neste sobe e desce, a preocupação do Cádiz era com sua existência. Após mais uma mudança no controle do clube em 2007/08, descobriu-se que uma das gestões anteriores ocultou dívidas imensas e os sucessores gastaram mais do que tinham sem ter plena consciência. Assim, o objetivo seria evitar a falência e pagar todos os credores. A reconstrução do Submarino Amarelo seria a passos lentos. O time passou por novas mudanças na presidência, com a realização de uma parceria com o Granada neste primeiro momento.

Já dentro de campo, o retorno do Cádiz à segundona incluiria algumas provações. Foram mais seis anos consecutivos na terceira divisão. Em quatro oportunidades o Submarino Amarelo chegou ao jogo do acesso, mas perdeu. Duas delas aconteceram apenas em 2011/12, quando tomou uma traulitada diante do Real Madrid Castilla após conquistar seu grupo regional e, na repescagem, sucumbiu ao Lugo. A espera só acabaria em 2015/16, quando os andaluzes terminaram na quarta colocação de seu grupo regional, mas se impuseram nos playoffs. Eliminaram Racing de Ferrol e Racing de Santander, até subirem com duas vitórias sobre o Hércules. O veterano Dani Güiza assinalou o gol que selou a promoção.

A reaparição do Cádiz na segunda divisão ocorreu sob condições melhores em suas finanças, com o clube já sem ser sufocado pelas dívidas. Os direitos de TV mais gordos, então, permitiram investimentos e até mesmo o superávit nas contas. Isso se refletiu em boas campanhas logo na retomada, com uma aparição nos playoffs de acesso e outros dois desempenhos na parte superior da tabela. As disputas nos bastidores ainda se seguiram, com entraves na diretoria, mas nada que afetasse tão diretamente o futebol. O atual presidente, Manuel Vizcaíno, chegou ao posto em 2014 para consolidar a situação econômica. Antigo número dois do Sevilla, passou a conduzir a agremiação com cautela e apostas firmes. Como resultado, na atual campanha, o Submarino Amarelo sobrou na equilibrada segundona.

Das 40 rodadas disputadas até o momento, o Cádiz só não liderou em três. Ocupa a primeira colocação desde outubro e manteve uma distância relativamente segura no G-2. O excelente início de campanha deu o impulso necessário e sustentou as oscilações que vieram depois. A gordura de dez pontos na zona do acesso direto acumulada logo em novembro caiu para dois pontos no returno, mas os andaluzes se valeram do equilíbrio geral da disputa. Neste início de julho, as vitórias sobre Oviedo e Extremadura encaminharam a promoção. Pois nem mesmo a derrota para o Fuenlabrada no sábado atrapalhou a comemoração um dia depois, em retorno à elite assegurado com duas rodadas de antecipação, após o tropeço do Zaragoza.

O elenco do Cádiz possui diversos jogadores trazidos nesta temporada. São raros os nomes com mais de um ano no Estádio Ramón de Carranza. Entre eles aparecem algumas figuras importantes, como o goleiro Alberto Cifuentes, os volantes Jon Ander Garrido e José Mari e o ponta Salvi Sánchez. Já o destaque da campanha foi o meia Álex Fernández, cria da base do Real Madrid e que defendia o Castilla naqueles playoffs de 2011/12. Depois de muito rodar, passando inclusive pelo Espanyol em La Liga, viraria protagonista na Andaluzia. Entre os que chegaram na atual campanha, o centroavante Choco Lozano anotou tentos essenciais e os laterais Iza Carcelén e Pacha Espino foram muito influentes no rendimento do time, embora os nomes mais conhecidos sejam o de José Manuel Jurado e Augusto Fernández – ambos reservas.

Técnico do Cádiz rumo à primeira divisão, Álvaro Cervera está por lá desde a terceirona e já quebrou o recorde de partidas à frente do clube. Antigo comandante de Racing de Santander e Tenerife, assumiu o Submarino Amarelo às portas dos playoffs em 2015/16 e conquistou o acesso. As campanhas satisfatórias na segundona garantiram sua continuidade no cargo e, quatro anos depois, os andaluzes colhem os frutos de sua aposta. O treinador foi o grande personagem por trás da promoção. Soube criar um forte espírito de equipe, num elenco que possui apenas a nona maior folha salarial da segundona.

Há uma ideia de jogo muito bem definida no Cádiz. A equipe apresenta um estilo mais agressivo, unindo os ataques rápidos à forte marcação, sob o princípio de que a posse de bola “está sobrevalorizada”. Aos 56 anos, Cervera terá a chance de dirigir pela primeira vez um time na elite, com contrato renovado por quatro anos durante a atual campanha. E ganhará reforços, já com o anúncio de que Álvaro Negredo se juntará ao elenco. O Submarino Amarelo havia sofrido uma punição da Fifa e deveria ficar duas janelas de transferências sem contratar, mas a intervenção do Tribunal Arbitral do Esporte antes do acesso suspendeu cautelarmente a decisão.

Apesar das recomendações das autoridades e das naturais preocupações sanitárias, mesmo com poucos registros de casos de coronavírus em Cádiz, seria muito difícil esperar que os cadistas se contivessem na noite que almejaram por 14 anos. Assim, cerca de 700 pessoas saíram às ruas da cidade para celebrar o acesso neste domingo – gerando reações negativas pela falta de civismo. Quando o público for permitido em La Liga, o Estádio Ramón de Carranza (que tende a mudar de nome nos próximos meses por sua referência à ditadura franquista) deve receber uma massa apaixonada nas arquibancadas. A atual direção do Cádiz confirmou que os 10 mil donos de carnês de temporada que compareceram a todos os jogos em 2019/20 ganharão ingressos grátis para a próxima campanha. Uma decisão ousada em tempos de crise geral na economia.

O objetivo do Cádiz será se restabelecer aos poucos na primeira divisão. É um passo grande, considerando as possibilidades econômicas limitadas, mas a readequação do futebol ao momento talvez contribua ao Submarino Amarelo. Por tudo o que se viveu durante as últimas décadas, o clube já deveria estar consciente de que não pode cometer loucuras, para não colocar em risco sua própria existência e a atual reconstrução. Uma disputa entre o presidente Manuel Vizcaíno com um dos principais acionistas ainda causa tumultos na alta cúpula e será um desafio manter estes problemas longe do futebol. Mas, para seu recomeço, o Cádiz sabe que contará com uma história rica e com uma torcida efervescente. Vai ser bom ver o clube outra vez na elite de La Liga.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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