Doença da irmã, pressão do Estrela Vermelha e precocidade: os desafios que forjaram Luka Jovic
“No Estrela Vermelha, tudo se trata de vencer. Se você não vence, então é um fracasso. Tem uma história de uns anos atrás, quando o clube estava mal e com algumas dificuldades financeiras. Alguns dos jogadores escreveram uma carta aos torcedores no jornal que dizia algo como: ‘Olha, as coisas estão difíceis agora. O clube não consegue nem bancar frascos de xampu para os banhos'.
No dia seguinte, alguns torcedores invadiram os carros dos jogadores e colocaram frascos de xampu nos assentos.”
Se o meio em que crescemos e nossas experiências quando jovem moldam significativamente nossa personalidade, os percalços da vida fortaleceram e muito Luka Jovic. O novo atacante do Real Madrid, de apenas 21 anos, passou por capítulos difíceis em sua infância e nos anos de formação como atleta. A doença da irmã, a saída precoce da Sérvia e a relação com a torcida do Estrela Vermelha estão no centro dessa formação.
Em texto publicado pelo Players’ Tribune, Jovic, como é de praxe no site, falou sobre sua infância, a relação com o futebol e revelou as dificuldades que forjaram o jogador que deixou o Eintracht Frankfurt rumo ao maior campeão europeu por € 60 milhões.
[foo_related_posts]Jovic cresceu em Batar, perto de Bijeljina, cidade na Bósnia e Herzegovina. A pequena vila tinha, segundo ele, apenas 105 casas. Um lugar modesto, mas especial. “Lembro de um homem em Batar que um dia me disse: ‘Minha vila é mais bonita do que Paris’. E é assim que eu vejo também. Quase todas as pessoas lá trabalham na agricultura, e se você perguntar a elas no que acreditam, elas te dirão duas coisas: trabalhar duro e sonhar alto. Todo mundo em Batar dá seu máximo para economizar dinheiro para ajudar seus filhos a sair para a faculdade ou se mudar para uma cidade maior para trabalhar.”
“Meus pais trabalharam duro para me ajudar a encontrar meu caminho na vida. Na minha infância, meu pai era dono de um supermercado. Mas se ele tivesse um ano ruim, pegava empréstimo do banco para poder continuar me levando para o treino todos os dias. Meu tio trabalhava na Rússia, mas se soubesse que estávamos com problemas financeiros, comprava chuteiras e tênis e mandava dinheiro para o meu pai quando ele precisava. As famílias sérvias são especiais desse jeito, acho. Somos muito, muito próximos. Tínhamos que ser.”
A história contada por Jovic no trecho que abre este texto é uma boa anedota para entender a pressão que enfrentam aqueles que vestem as cores do Estrela Vermelha. O clube de Belgrado carrega consigo um tipo de atmosfera dificilmente igualado no futebol europeu.
“Para as pessoas de fora da Sérvia, talvez vocês não entendam. O Estrela Vermelha é diferente de uma maneira que não dá exatamente para descrever. Talvez você conheça o clube por causa do nosso túnel? Quando as pessoas vêm jogar contra o Estrela Vermelha, elas dizem que ele parece… assombrado? Tem uns grafites nas paredes e é muito escuro. Acho que alguns caras têm medo disso. Mas, para mim, era completamente normal. Eu costumava descer ao túnel quando tinha oito, nove anos de idade, quando eles deixavam os jogadores da base serem mascotes. Quando você ouve a atmosfera naquele estádio, é difícil de acreditar.”
O passado de pressão terá importância na adaptação ao novo clube. A torcida do Real Madrid sabe uma coisa ou outra sobre colocar cobrança pesada em seus jogadores, mas nada no nível Estrela Vermelha. “Crescer nesse ambiente te dá a confiança de nunca ter medo de nada”, pondera Jovic.
Confiança é outra palavra-chave para o futebol do sérvio. Stefan Mitrovic, seu companheiro de seleção, lhe disse um dia: “As coisas que eu conseguiria fazer se eu tivesse sua confiança”. Jovic não vê outro jeito de encarar o futebol para alguém de sua posição. “Como você pode ser um atacante sem confiança? Para essa posição, o mais importante não é o começo, e sim o fim.”
Para tanto, sua inspiração não poderia ser melhor: Ronaldo Fenômeno. “Eu era obcecado com como ele fazia aquele drible da pedalada contra os goleiros. Eu lembro que era tão rápido, como um truque de magia, e eu praticava isso em casa. O Ronaldo jogava futebol com tanta facilidade, quase como se estivesse dando 30% de si, e eu achava isso incrível. Seu estilo e confiança deixaram uma marca em mim”, revelou o sérvio.
Pressão dos torcedores, impacto de Ronaldo ou qualquer outra coisa que seja, nada teve, no entanto, maior repercussão na vida de Jovic do que um drama familiar durante a infância. Quando o jogador tinha por volta de dez anos, sua irmã mais velha foi diagnosticada com leucemia e passou um bom tempo indo frequentemente ao hospital. A mãe teve que parar de administrar o mercado da família para poder cuidar da mãe de Jovic, enquanto o jovem atleta da base do Estrela Vermelha ficou distante, focado na carreira.
“Durante um ano inteiro, nossa família esteve separada. Eu vivia com meu pai e meu avô, indo e voltando dos treinos do Estrela Vermelha, enquanto minha mãe ficou com minha irmã. Foi uma época muito difícil. O que eu mais me lembro é da sensação de quando eu voltei para casa, de Belgrado para Batar, depois de um jogo. Certo dia, enquanto me dava uma carona para casa depois do treino, meu pai parou e buscou meu tio e meu primo. Não sabia o que estava acontecendo inicialmente, mas então percebi que faríamos uma grande celebração. Fomos para casa, e lembro que minha irmã estava vestindo um chapéu de papel, como se fosse seu aniversário. Eles nos disseram que ela estava curada, e saber que ela ficaria bem foi uma sensação incrível, porque ficamos muito assustados por muito tempo.”
Aquilo, para ele, foi um ponto de virada, o empurrão final para o sucesso. “Quando minha irmã venceu sua doença, isso me deu combustível para ser bem-sucedido. Eu queria ser um vencedor como ela.”
O mais recente grande desafio da vida de Jovic veio então em 2016, quando se mudou para o Benfica. Por mais que em termos de carreira a mudança fosse boa, o atacante não queria deixar seu clube do coração. “Sempre quis jogar lá (no Estrela Vermelha) e, mesmo quando tive chances de ir para clubes maiores, não quis ir. Aliás, isso é verdade: quando o Benfica me quis em 2016, lembro de dizer à minha mãe que não iria sair. Lembro das palavras dela. Ela disse: ‘Querido, sabemos que você ama o Estrela Vermelha mais do que a nós, mas você precisa se colocar em primeiro lugar’. Acho que isso diz tudo sobre o Estrela Vermelha. Minha mãe se preocupa que eu prefira o clube a ela.”
Declarações de amor à parte, sua saída, no entanto, foi tumultuada. Embora tenha ido direto do Estrela Vermelha para o Benfica, o Football Leaks revelou que Jovic pertencia ao Apollon Limassol no momento de sua venda. O jogador havia sido negociado ao time cipriota por um total de € 2 milhões, cedido de volta ao Estrela Vermelha por empréstimo, onde ficou até se mudar para Lisboa. O valor noticiado de € 7 milhões pago pelo Benfica, portanto, foi para o Apollon, clube controlado pelo agente Pini Zahavi, envolvido em grandes transferências, como a ida de Neymar ao PSG.
Desde 2015, a Fifa proibiu que terceiros que não clubes de futebol tenham participação nos direitos de jogadores. Ainda assim, a trama da transferência de Jovic mostra que o Apollon Limassol, de Zahavi, lucrou significativamente com um jogador que sequer anunciou como contratado e que, é claro, sequer utilizou. O negócio, obviamente, atraiu muita suspeita, especialmente sobre dirigentes do Estrela Vermelha, mas ninguém foi responsabilizado por alguma infração.
No Benfica, Jovic não deu certo. A adaptação pesou, e mais tarde o jogador admitiu que não foi profissional – chegou a ser punido pelas saídas noturnas – e que não estava bem mentalmente. Sente que as coisas foram rápidas demais. Não estava pronto para deixar a família. “Ter 18 anos e se mudar a mais de três mil quilômetros para um lugar em que você não fala sequer o idioma já não se trata mais só sobre futebol. (…) Quando cheguei em Lisboa, pensava na Sérvia e chorava do nada. Foi um momento bem ruim na minha carreira, porque me senti muito sozinho. Mas, ainda bem, tudo mudou quando consegui ir para o Eintracht Frankfurt.”
E como mudou. Em apenas duas temporadas no clube alemão, maior parte delas jogando como atleta emprestado, Jovic acumulou gols e boas atuações. Em 2018/19, aquela que o catapultou aos holofotes no cenário europeu, mais especificamente, anotou 27 gols e deu sete assistências em 48 jogos, alcançando ainda a semifinal da Liga Europa.
Se, por um lado, a precocidade de sua partida trouxe problemas lá atrás, por outro, acelerou seu crescimento. “Uns anos atrás, estava apenas sonhando em jogar pelo Estrela Vermelha. Jogar uma semifinal de Liga Europa, jogar uma Copa do Mundo e agora ir para o Real Madrid, isso é incrível. Mas acho que a coisa mais importante para um atacante é confiança. Nunca duvidei do meu valor. Simplesmente sinto que tenho uma qualidade que nasceu comigo e nunca vou duvidar disso.”
Costumam dizer que o Real Madrid é um clube especial, em que a mentalidade é um aspecto essencial para que um atleta dê certo, independentemente de sua habilidade. Se Jovic puder reproduzir em campo, na Espanha, o espírito de suas palavras, pode estar dando início a uma longa e proveitosa história pelos blancos.