Um ano depois, tudo ainda é profundo: o luto, o vazio, a indignação e o desrespeito

Futebol é feito de gente. E o Flamengo, mais do que qualquer outro clube brasileiro em números absolutos, é feito de muita gente. Sem a sua gente, o Flamengo não construiria uma história que supera fronteiras. Gente que multiplica a paixão nas arquibancadas. Gente que faz o Rubro-Negro ser o que é também em campo. E gente que compartilha o sonho de carregar o escudo no peito, saindo da arquibancada para o campo. Os dez meninos da Gávea, mortos há exatamente um ano no terrível incêndio do Ninho do Urubu, eram gente do Flamengo em sua mais pura essência: os sonhadores. Mas, um ano depois, permanecem negligenciados por aqueles que respondem pelo CNPJ do clube. Parecem só ver planilhas, não gente.
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É impossível conter um sentimento de tristeza profunda e também de revolta ao tomar conhecimento sobre o que ocorreu nos últimos 12 meses em relação aos meninos da Gávea. As investigações sobre os responsáveis pelo incêndio se arrastam e não trouxeram respostas. Quem deve pagar na justiça permanece distante de qualquer punição. Seis famílias, mais a mãe de um dos garotos, ainda não possuem acordos quanto à indenização pelas mortes. Enquanto isso, muitos dos dirigentes que respondem e respondiam pelo Flamengo tratam suas posições com uma frieza cruel. Tudo parece resumido a cifras, a termos jurídicos, a “proteção do patrimônio”. Nunca parece haver gente. Ignoram sentimentos, fecham os portões do próprio clube para que pais acendam uma vela ao filho falecido.
Os homens que ocupam os cargos diretivos no Flamengo não percebem, ou fingem não perceber, que o maior patrimônio do clube é a sua gente. E que a gente do Flamengo deseja necessariamente a situação resolvida com dignidade. Não só pela dignidade das famílias e dos mortos, mas por uma postura digna do clube.
Alguns apontam que parte dos familiares desejam “se aproveitar da situação” – o que, na verdade, soa muito mais como mesquinharia de quem acusa, querendo proteger o indefensável. Em contrapartida, as entrevistas relatam e indicam uma atitude tacanha de administradores e advogados do Flamengo, que desejam avaliar as mortes pela probabilidade do garoto se tornar um jogador profissional. Não pelas vidas que se perderam, pelas histórias que deixarão de se contar e pelo vazio que dinheiro nenhum no mundo pagará. Os R$10 mil mensais ordenados pela Justiça do Rio às famílias sem acordo podem bancar as contas, mas não apagam a dor. Não preenchem tudo aquilo que não se viverá – das possíveis conquistas na carreira às mais simples declarações de “eu te amo”. Aquilo que ninguém, além das famílias e dos amigos, sabe o quanto pesa.
Porque, desde o início, o compromisso do Flamengo como instituição não deveria ser apenas a indenização. Deveria ter oferecido acolhida e ter assumido suas responsabilidades, também com seus próprios mecanismos internos de investigação. Os depoimentos de alguns familiares dão conta que isso não aconteceu – e não é necessário analisar o episódio de maneira tão densa para se notar que os dirigentes estão mais interessados em jogar o problema no colo dos outros, como se tudo fosse basicamente algo restrito à mudança de gestão. Não é. É o nome do Flamengo que está em jogo e quem sofre faz parte de sua gente.
Como se não bastasse a situação das famílias, que lidam com o luto e precisam pensar em outras consequências de uma depressão profunda (mesmo as já indenizadas, mas não necessariamente assistidas), há ainda o caso dos outros cinco garotos que sobreviveram e terminaram dispensados pelo Flamengo. “Avaliação técnica”, dizem, como se fosse possível levar uma vida normal após vivenciar um filme de terror e perder muitos amigos de uma forma que é difícil de imaginar. É como se tudo se resumisse à assinatura de um papel numa sala branca. O Flamengo tem que ser feito do vermelho do sangue e do preto do luto.
Ninguém deveria estar mais interessado e lutar mais pelo apoio às famílias do que a gente que realmente faz o Flamengo. E, sim, é parte da torcida quem mais pressiona e cobra os homens do CNPJ, num movimento que poderia contar com o apoio dos jogadores mais influentes e de antigos ídolos. Independentemente das pessoas que precisam responder pelo descaso, os dez garotos estavam sob os cuidados do Flamengo e o mínimo que deve ser feito é o reconhecimento, a lembrança, a admissão da responsabilidade.
Pagar as indenizações e dar assistência não é mais que a obrigação, mas seria menos doloroso a muitos familiares se o clube realmente os abraçasse logo no princípio. A maioria deles, inclusive, também compartilhava o sonho e a paixão pelo Flamengo junto com os meninos. O Flamengo do insensível presidente Rodolfo Landim (. A gente do Flamengo, ao contrário dos cartolas, precisa gritar os nomes e mantê-los em evidência.
Porque não adianta conquistar a Libertadores com apoteose e quebrar o recorde de pontos no Brasileirão. Não adianta gastar milhões em reforços para manter a hegemonia. Por mais que 2019 tenha se encerrado como um ano glorioso aos rubro-negros, também representará a maior dor de sua gente. E os dirigentes podem se sentar nas taças, nas manchetes, nos balancetes. A gente do Flamengo deverá sempre aumentar o coro para que os entraves envolvendo as famílias sejam resolvidos e a memória dos garotos, mais do que uma inescapável dor, deixem de representar também uma vergonha ao clube.
Provavelmente a maioria da gente do Flamengo se sente envergonhada, para dizer o mínimo, com as repetidas negligências. E o posicionamento institucional do clube neste sábado, ainda que atenda os anseios de sua gente, soa como hipocrisia diante do descaso dos engravatados. No local dos antigos contêineres, nenhum memorial. Apenas um estacionamento. Concreto frio. Omissão que se repete.
Mandatos terminam, dirigentes nem são lembrados, craques se aposentam, jejuns de títulos acontecem. O que nunca tem fim é o peito vazio das famílias que perderam seus filhos e a lacuna dos sonhos abreviados. Todos os títulos do mundo não ofuscam a tragédia que o 8 de fevereiro de 2019 representa ao Flamengo, pela qual o Rubro-Negro sempre responderá. O direito e o respeito às famílias são urgências que o Flamengo precisa resolver, e é por isso que a sua gente deve lutar, acima de tudo.
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A busca pela dignidade às famílias e aos sobreviventes também se faz com jornalismo. Nesta semana, diversas reportagens trouxeram detalhes dos desdobramentos da tragédia e ajudam na cobrança aos dirigentes do Flamengo, bem como ao poder público. Abaixo, um compilado de bons conteúdos de diferentes veículos, publicados nos últimos dias:
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