Sem Pelé, sobrenome do futebol e passaporte do brasileiro, seríamos todos uns clandestinos
Um gol que Pelé fez, e a gente não saberia fazer, foi manter a sanidade enquanto virava sobrenome de Brasil no Vietnã e sobrenome de futebol no Zaire
Para quem nasceu no começo dos anos 80, gostar do Pelé foi desafiador. Culpa dos adultos. Pelé comentava futebol com o Galvão Bueno e era criticado por isso, tratado como inconveniente e chato. Pelé namorou a Xuxa e sobrava deboche, inclusive racista, a respeito disso. Pelé foi ministro extraordinário do esporte, o que gerou outra linha contundente de críticas. Pelé teve uma desgastante polêmica envolvendo DNA e reconhecimento da filha, um dos temas preferidos dos anos 90. Edinho, filho do Pelé, virou goleiro do Santos, o que, para muitos, foi motivo de piada e rejeição: “só está lá pelo pai”. Quando Pelé cantava, mostrando um simpático hobby, era ridicularizado. Eu ouvi sobre tudo isso e um pouco mais, sendo este pouco mais a volumosa onda de imitações do Rei, sempre falando “entende?” e dando opiniões impossíveis de entender. Emburrecendo o gênio.
Porque o Brasil, país de um racismo endêmico e desgovernado, sempre travestiu de piada e deboche o que é, na verdade tensão social, e Pelé, Garrincha, o futebol, o futebol destes mestres, foi, antes de tudo, insolente. Às vezes o Brasil quis dar a conta das tensões sociais para o futebol pagar, e talvez tivesse conseguido se, em 1958, um menino de 17 anos, ao lado de outro menino de pernas tortas, um negro e um índio, não tivessem imposto o devido respeito em uma final de Copa. Gostar, gostar mesmo, do Pelé, só me foi permitido já quase adulto, desfrutando de certa autonomia no pensar e um novo senso crítico próprio da mínima maturidade – aliada a uma percepção dramática de que, ora, já sou quase maior de idade e só gosto e entendo mesmo de futebol, então, sendo assim, não tem como o Pelé ser meu adversário.
Maradona, o “Pelé da minha geração”, nome do meu primeiro cachorro, ídolo imediato no encanto infantil, também sofreu com os cassetas e os planetas. Enquanto certos ícones, como Ayrton Senna, viviam protegidos dos excessos e ensaios e poderiam se candidatar, para os brasileiros, até ao cargo de Papa se quisessem, as pistas de que alguma malícia ou exagero ou má vontade com Pelé eram até visíveis o suficiente (se eu não fosse uma criança). Não tenho maiores teorias para a aparente saturação carismática, mas desconfio de algum tipo de analfabetismo afetivo de nossa crônica e nossa opinião pública a respeito do Rei, tal qual o Rei se colocou. Tão fantástico, tão irrealista, tão fora do molde, tão infalível, que virou o fio. Ninguém nos ensinou a proteger um semideus com tanta carne, osso e simplicidade.
Pelé vendeu video-game, gibi, escova de dente, pasta também, loteca, piano, fogão, amendoim, carro, tudo. A vanguarda publicitária que representou deu contornos caóticos para uma silhueta estampada em cartaz de filme, logotipo de campeonato, perfil diplomático, outdoor de jaqueta, novela da Globo, de novo: tudo. Pelé foi o pão e a geleia, o garfo e o bife, e, em campo, a arte e a força, e essa coisa de ser tudo e estar em todos os lugares, olha os Beatles como exemplo, terminam, geralmente, em um lugar parecido com o hospício. Um gol que Pelé fez, e a gente não saberia fazer, foi manter a sanidade enquanto virava sobrenome de Brasil no Vietnã e sobrenome de futebol no Zaire. Quando parou (de jogar, não de vender), sua parada deve ter soado como um alívio para o jogo, que finalmente tinha o seu limite. Mais que Pelé não daria para ser – e não dá, a não ser que você invente de novo os anos 60 e suas novidades tecnológicas, artísticas e midiáticas que emanciparam radicalmente esta década da anterior.
Sabe quando você olha para uma festa que está gostando muito, e, de repente, percebe que pequenos vazios começam a aparecer no salão, denunciando o começo do fim do baile? Pelé me chamou para a percepção de que daqui a pouco esta festa estará ainda mais vazia, e que o melhor dela já passou. Porque quando a gente morre, vários pedaços do mundo que nos constituiu já morreu antes, aos pouquinhos, indo embora como amigos que deixam o baile discretamente durante aquela música mais nostálgica. Pelé é constituinte do nosso mundo, que amarela e fica menos engraçado, não por sê-lo, mas porque é a gente que deixou de ser protagonista da piada. Pelé era triste na cadeira de roda, minha mãe não entende mulheres jovens com unhas de acrílico e enchimento nas bocas, eu só gosto mesmo é de futebol: o mundo de nós todos vai morrendo de pouquinho.
Eu não aposentaria a camisa 10 do Santos. Abrir mão de vê-la em campo é como uma autopunição. Temos o direito a vê-la. Sem ele? Sem ele, mas pelo menos com ela. Talvez fizesse mais sentido o Santos aposentar todos os outros números. Entrar em campo daqui pra frente com todos os jogadores usando o número 10. E se a Fifa proibir, descumpra, e se multar, que o banco que colocou “Pelé” no seu logotipo de 4 letras pague. Estive na Vila Belmiro três meses atrás, numa segunda-feira chuvosa. No minuto 10 o telão mostrou o Rei, como de costume, e o Soteldo, camisa 10, deu uma arrancada pela ponta direita. Acho isso mais bonito hoje do que achei no dia. Jogou bem, o Soteldo, naquela noite.
Quer dizer, “jogou bem” para nossos padrões, que envolvem, claro, Pelé como referencial inatingível, e é curioso dizer isso dias após Lionel Messi, aquele que mais perto do dito cujo chegou desde que o futebol tem transmissão ao vivo de 100% dos jogos, fazer tudo que fez naquele palco onde Pelé se sentia tão em casa – tricampeão e duas vezes ejetado dela por uma violência inevitável para os competidores rivais. Possuem, Pelé e Messi, uma porção de diferenças, cravejadas pelos óbvios pontos de contato. A diferença que escolho, aqui, para encaminhar o meu tchau, é a geográfica – insisto nela, pois me recuso a esquecer que Messi não jogou em nossos clubes, em nosso continente.
Pelé teve a chance de escolher qualquer lugar do mundo. Se ele quisesse jogar um jogo por cada time da Europa, os europeus mudariam os regulamentos para permitir. Ganharia a posse dos estádios, se isso exigisse em troca de um contrato. Acabou ficando. Porque quis, e porque o futebol brasileiro, encorajado pela autoestima que o Rei injetou em nossas veias, fez um esforço inacreditável, por anos, para viabilizar, pagar, manter Pelé entre nós e vencer o braço-de-ferro contra a força brutal do poder econômico. Que vitória, a nossa. Pelé ficou aqui graças a inúmeros jogos em dezenas de países. Pelé foi nosso graças aos jogos que muitos ainda insistem em chamar de “não-oficiais”.
Sem Pelé, seríamos todos uns clandestinos.