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Sálvio Spínola: “A comissão de arbitragem não conhece o árbitro, não tem um diálogo olho no olho”

O árbitro é um elemento fundamental em qualquer jogo de futebol que tem um nível de seriedade acima da pelada entre amigos em que quem diz “é minha” fica com a cobrança de lateral. Ainda assim, todo o universo que envolve esse profissional é misterioso. Torcedores, dirigentes, jornalistas e até jogadores entendem pouco do que envolve o dia a dia desses profissionais, como ele treina, como ele se prepara, como é seu dia a dia. Uma rotina complicada e bem mal gerida, que ajuda a explicar vários dos problemas que ocorrem durante as partidas.

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Para contar um pouco dessa história, entrevistamos Sálvio Spínola, ex-árbitro Fifa e atual comentarista dos canais ESPN. Ele conta como a comissão de arbitragem da CBF conhece pouco sobre os problemas que envolvem os árbitros, criando situações que os deixam vulneráveis e mais propensos a cometer erros. Além disso, contesta a postura da confederação de isolar os profissionais do apito e mostra como conduzir uma partida é uma tarefa muito mais técnica do que pode parecer para quem vê um jogo da TV.

O árbitro, quando está trabalhando, ele se sente muito vulnerável por falta de proteção, excesso de pressão?

Não tenho dúvidas que sim. Há dois modelos que temos que pensar. O árbitro em formação e o maduro, já formado. Essa transição é muito interessante. As regras de futebol são as mesmas. Pode-se apitar um jogo de quarta divisão ou de primeira divisão, os erros e acertos são os mesmos. Mas tem muitos árbitros que se saem bem na segunda e terceira divisão e não na primeira. Tem mais pressão, mídia, torcida. Árbitro tem que subir degrau a degrau. Por isso que Copa São Paulo, Copa do Brasil Sub-20, Brasileiro Sub-20, são fundamentais. O árbitro apita um jogo como esse, sabe que está na televisão, e vai se acostumando com isso. Depois que ele formou sua identidade como árbitro, isso não pode mais interferir.

Acha que o público entende pouco de arbitragem? Não sobre as regras, mas todas as questões que a envolvem, a técnica, o ambiente.

O mundo da arbitragem, o bastidor, é muito desconhecido. Infelizmente é uma caixa-preta, um mundo fechado. Pouca divulgação das circulares para os árbitros, das reuniões. Os jogadores de futebol e os dirigentes não conhecem. Às vezes converso com eles e ficam abismados com o quanto os árbitros precisam se deslocar para fazer um curso, com as lesões do árbitro. Árbitro também tem contratura, tem lesão no joelho. Onde o árbitro vai se condicionar e se recuperar de uma lesão? Esse ambiente é pouco divulgado e pouco conhecido.

Como o árbitro faz quando ele se lesiona?

A recuperação é por conta dele. Muitas vezes, trabalha em uma empresa e usa o convênio médico da empresa, que não tem nada a ver com futebol. Não tem assistência de nenhuma entidade para dar segurança o árbitro.

O árbitro ganha por jogo que faz. Lesionado, ele apita menos e ganha menos. Acontece de árbitro esconder lesão ou menosprezar a gravidade dela para continuar trabalhando?

Árbitro esconde, sim, que está lesionado. Às vezes está com dor, não se recuperou completamente e não informa porque é uma oportunidade para trabalhar. Arbitro que não apita não ganha nada. Para ganhar a taxa, ele acaba não informando que ele está lesionado.

Quantos árbitros tem a arbitragem como principal fonte de renda?

Estima-se haver 10 ou 11 mil árbitros de futebol no Brasil. Por federação, cada federação tem sua quantidade de árbitros. A federação paulista tem uns 750 árbitros, que atuam apenas em jogos organizados por ela, é a que tem mais árbitros. A CBF tem 550 árbitros, entre eles, cada federação tem uma cota. De São Paulo e Rio de Janeiro, são 40, 45 árbitros. Eu te digo com segurança que desses 550 árbitros, pelo menos 80, 85% tem mais remuneração apitando jogo de futebol do que na sua atividade profissional secundária ou primária. É um grande problema do futebol brasileiro. Aqui, ele tem uma atividade profissional e depois vai se dedicar à arbitragem. Precisa inverter isso. Ele precisa se dedicar à arbitragem, ao futebol, e no tempo livre ter uma outra atividade.

Então essa história de que a arbitragem não é profissional é falácia. Ela não é profissional como vínculo, mas a importância econômica que tem na vida do árbitro é a de uma profissão.

Não dá para discutir que o árbitro não é profissional. Eu era profissional de arbitragem, sim. Eu acordava de madrugada, treinava antes do meu trabalho, tinha que assistir aos meus jogos, catalogava tudo, analisava os lances, ganhava para apitar, saía para apitar. Isso é um trabalho profissional. São coisas distintas. O árbitro tem vínculo de emprego? Não. É profissional? Sim. O que ocorre: não ter dedicação exclusiva e as condições de trabalho são desumanas para o árbitro de futebol, a forma como ele tem que se preparar. Não tem tempo de analisar os vídeos, se capacitar, repousar. Isso que tem que ser discutido. Ele tem que ter dedicação exclusiva ao futebol porque profissional ele é. É apenas um jogo de palavras. Não pode, por exemplo, como aconteceu já comigo. Fiquei o dia inteiro em uma reunião em uma empresa, tomando decisões intensas de demitir funcionários, sem almoçar, sem alimentação adequada, tomando café o tempo todo, e no final do dia pedi para sair da reunião para apitar um jogo de futebol e decidir o investimento de um time, a carreira de um jogador de futebol. Até eu poderia ser demitido naquele dia.

Antes de uma partida, o árbitro estuda o comportamento dos jogadores, a característica de jogo dos times que ele vai apitar?

Ele estuda, e a Fifa recomenda fazer isso. Em competições da Fifa, como Copa do Mundo, você vê o jogo que vai apitar, recebe um DVD com situações das duas seleções que você vai apitar: como a equipe se porta taticamente, como o jogador se posiciona no impedimento. Isso é importante, até para o árbitro saber no seu deslocamento no campo. O Cafu, por exemplo. Ele era um lateral que chegava na linha de fundo e sempre cruzava a bola. Por que o árbitro vai correr em direção ao Cafu? Tem que correr em direção à grande área, lá pode ter um pênalti. De cada dez lances do Cafu na linha de fundo, dez ele cruzava. Se é um lateral driblador, como o Daniel Alves, que chega na linha de fundo e dribla, se ele dribla próximo da grande área, tem que correr para ver se vai ser falta ou pênalti, dentro ou fora da área. Isso faz parte do posicionamento, deslocamento. Estudando a gente já sabe quem costuma ficar em posição de impedimento, se a equipe faz a linha de impedimento, se o jogador é violento. Não que o árbitro tenha que ir premeditado, mas ajuda a acertar nas decisões.

Se ele pega um time bom de contra-ataque, faz diferença para antecipar o posicionamento em uma bola esticada? Se toca a bola devagar, uma saída de bola mais lenta?

No meio da arbitragem, chama-se jogada futura. Nem sempre a decisão a ser tomada aparecerá na primeira jogada. A equipe vem no ataque, perde a bola, e haverá uma segunda jogada. E se o árbitro se posiciona errado na primeira jogada, aproximando-se muito da grande área, e o goleiro que fica com a bola costuma fazer lançamento rasante ao invés de dar chutão para o alto? Nessa hora, o árbitro ficou está perto do goleiro, mas a bola vai rápido para o campo de ataque, e pode ter uma falta lá na frente. O árbitro tem que se preocupar com a jogada futura. Se eu sei que uma equipe tem costume de sair rápido, não posso me aproximar muito do gol, pois posso ter que voltar para a outra jogada. Agora, se eu tiver que tomar uma decisão na primeira jogada, tenho que estar bem posicionado. Tudo isso ajuda o árbitro.

O quanto você acha que o trabalho da comissão de arbitragem ajuda a deixar o árbitro mais vulnerável?

Bastante. Existe um distanciamento muito grande. A comissão de arbitragem e os árbitros tem um hiato, não tem um diálogo olho no olho, não conhece o árbitro. A maioria dos árbitros não gosta de apitar jogos de equipes da sua federação, e a CBF quis tomar essa decisão levando o árbitro a uma situação desnecessária, de desgaste. Ele vai constrangido a esse jogo. A escala do árbitro nunca é pactuada com o próprio árbitro. Ele não tem que escolher o jogo, mas saber essas situações de stress. Quando eu apitava, me deparava com assistentes que diziam: detesto ser bandeira 1, quero ser bandeira 2. Tem isso. O bandeira 1, que não tá acostumado a trabalhar com imprensa e com banco de reservas ali atrás, se perde na hora de tomar decisão. A CBF não busca essa informação. Tem bandeira que trabalha tranquilo no outro lado, sem repórter, sem câmera, e acerta bastante. E como bandeira 1, comete muitos erros. Isso tem que identificar. Quem dirige tem que olhar e perguntar para o árbitro: o que traz dificuldade? Não é preferência, é habilidade do árbitro, daquele árbitro assistente ou central.

Como se ele estivesse jogando fora de posição?

É como se ele estivesse jogando fora de posição, e o técnico falando: quero você lá. Inclusive ambiente. Já me deparei com árbitro que disse que não se dá bem em um determinado estádio. Se não gosta disso, a comissão de arbitragem tem que procurar o árbitro, todos do quadro, e ver onde você tem dificuldade, qual é essa dificuldade, qual ambiente traz uma certa hostilidade, e trabalhar isso psicologicamente. Não é atender os favores e necessidades de todos, mas saber no que isso pode interferir na decisão dos árbitros. E isso acontece. Tem muita situação em que ele é exposto por causa da escala.

Esse ano, tivemos o caso do Bruno Boschilia bandeirando um jogo em que estava o Boschilia do São Paulo, com quem ele tinha uma relação familiar. O Jaílson Macedo Freitas foi quarto árbitro do Palmeiras x Grêmio sábado à noite no Pacaembu e apitou Avaí x São Paulo no domingo à tarde em Florianópolis. Teve o paulista Luis Flávio de Oliveira que apitou Corinthians x Sport, jogo com pênalti polêmico no final. Teve árbitro que apitou Gre-Nal e Atlético Mineiro x Grêmio na mesma semana. Quanto esse tipo de coisa deixa o árbitro vulnerável e é realmente muito difícil evitar essas situações claramente conflituosas?

Para evitar isso, tem que ter um bom sistema de gerenciamento dos árbitros, um software que faça o controle, fracionar, cada um cuidar de uma parte. Tem vários outros erros que poderia citar. Na Copa do Brasil, tem um árbitro mineiro, Igor Benevenuto, que apitou um jogo em Florianópolis na quarta-feira e na quinta tava em São José dos Campos apitando jogo do Santos. Tem um árbitro baiano que você citou, no sábado à noite em São Paulo de quarto árbitro e domingo em Florianópolis apitando jogo do Brasileiro. Essas situações causam desgaste também com o árbitro que fica em casa. Ele se sente desprestigiado, porque olha que outros árbitros estão sendo privilegiados, porque estão recebendo duas vezes, e ele está em casa. Isso é falta de gestão do quadro de arbitragem. Não significa que todos os árbitros têm que ter o mesmo número de jogos. Sou a favor da meritocracia nesse caso: quem está muito bem, tem que apitar. Mas o descanso é necessário, o tempo entre um jogo e outro. O árbitro gosta que repete a escala e esconde. Se ele pega o telefone e fala ‘eu tô em um jogo aqui e tô em outro ali’, a comissão faz uma correria e troca o árbitro. Aconteceu isso: um árbitro do Paraná que estava na Série B na terça e na quarta tava na Série A. Ele comunicou e substituíram. Disseram que por problemas logísticos ele não poderia cumprir a escala, porque realmente não tinha voo para o árbitro pegar. Ele mora no interior do Paraná, não teria como ir aos dois jogos. Se ele comunica, ele sai, mas o que está na escala faz um sacrifício, se sujeita a esse risco só por uma coisa: remuneração. E tem um pouco da vaidade, também.

O quanto o fato de o árbitro se sentir frágil com seu emprego, com a possibilidade de, um dia para o outro, ficar na geladeira por um erro, favorece isso?

Enquanto não mudar a estrutura do futebol, essa fragilidade existe. Cheguei à arbitragem em 1990, estamos em 2015, e não mudou nada. A estrutura é a mesma. Nenhuma mudança a favor desse cenário. Ninguém vai para campo para errar e cometer um erro. O que acaba acontecendo: ele se sente nessa pressão e fica com medo de cometer um erro e ficar sem escala. Vai chegando novembro, e a tensão para o árbitro é muito pior, porque os campeonatos vão acabar. Dezembro e janeiro não há jogos. Imagina um árbitro na geladeira em novembro? Fica sem jogo em novembro e sem remuneração em dezembro e janeiro. Um erro acaba sendo crucial. Traz muito mais tensão.

Ele muda o jeito de arbitrar?

O árbitro corre menos riscos. Apita com mais segurança. O que é isso? Na hora de dar vantagem, tempo de bola rolando, não quer correr tantos riscos nas suas decisões. De forma bem honesta, como funciona a cabeça do árbitro: se eu vir que o zagueiro sofreu um pequeno encostão, vou marcar uma falta a favor da equipe defensora, mas, se o zagueiro comete o mesmo encostão contra o atacante, dificilmente ele vai marcar. Retranca mais o jogo.

Ele sabe quando cometeu um erro?

Sabe. Instantâneo. Na hora. Pelo comportamento da torcida, dos jogadores, da imprensa, da comissão técnica. Quando o árbitro acerta, o ambiente fica menos hostil, porque todo mundo se acalma. Quando erra, o ambiente fica mais hostil, porque todo mundo vem falar. Ele sabe dessa reação, desse comportamento. Não precisa do intervalo. A torcida recebe a informação no celular. O torcedor para quando acertou, não fica hostilizando tanto a arbitragem. Mas quando continua, o árbitro sabe que errou, principalmente em gol anulado, impedimento, pênalti, lances capitais. A primeira coisa que a comissão de um time faz quando acontece um lance polêmico é gritar para trás e perguntar para o repórter. Se o repórter falar que o árbitro acertou, o técnico para de reclamar, não vai se desgastar à toa. Se o repórter fala que a imagem mostrou que o árbitro errou, a reclamação persiste. O árbitro sabe disso porque, quando vai dar uma advertência verbal à comissão técnica, já falam que a televisão disse que ele errou.

Você lembra de algum lance assim com você?

Posso trazer vários lances. Lembro-me de um lance no Pacaembu, Corinthians x São Paulo, em que fiquei na dúvida de um pisão do Ronaldo no André Dias. Eu estava no meio-campo e foi na lateral. Mostrei amarelo para o Ronaldo, mas, pela forma como a comissão técnica e os jogadores do São Paulo continuaram reclamando, tinha a convicção de que a imprensa falou que o Ronaldo tinha pisado no André Dias. E depois olhando a imagem, era claro que era falta para vermelho. Lembro-me da final Santos x Santo André no Pacaembu. Apesar de a torcida do Santo André ser menor, quando anulamos um gol do Santo André, a reação da comissão técnica era a reação de que tínhamos cometido um erro. Depois, vendo a imagem, o gol do Santo André foi legal. Isso dá para perceber dentro do campo de jogo. O árbitro tem que se controlar, manter o equilíbrio, para não querer compensar e aí vai cometer o segundo erro.

Tem muito árbitro que compensa, mesmo involuntariamente?

Não vou usar o termo involuntariamente, vou usar outro: tem que separar o nível do árbitro. Eu talvez tenha cometido isso no início da carreira, quando você está verde, instintivamente, pode cometer esse segundo erro, mas um árbitro que chega a um nível de maturidade e personalidade já formada tem que falar ‘errei, bola para frente’.

Quando começa a aparecer uma sequência de erros em jogos importantes, e começa o burburinho de esquema de arbitragem, campeonato comprado, o quanto afeta o árbitro que vai trabalhar com as equipes que supostamente estão ligadas aos erros, beneficiadas ou prejudicadas?

Tensão. O árbitro entra muito mais tenso para esse tipo de jogo. No diálogo da equipe de arbitragem, no hotel, na viagem, a conversa é: tem que passar zerado, tem que se concentrar ao máximo para evitar qualquer tipo de erro. Mas tem árbitro que se sente seguro. Ele pensa: com toda essa conversa, se a comissão de arbitragem me colocou nesse jogo, é porque eu estou aqui para resolver o problema.

Ele sente que é um cara que tá num bom momento, e a comissão o escala para abaixar a poeira?

Tanto com as equipes quanto com a comissão de arbitragem. Ele vai abaixar a poeira, sem correr riscos, e resolver o problema. O árbitro de nome que apita grandes jogos, normalmente vai preocupado quando apita um jogo da Série B ou da Série C. Se ele levar o jogo sem problema, nunca vou ser elogiado porque não fez mais que a obrigação. Se tiver um problema, é vergonhoso.

Como naquele jogo da série A2 que você fez em um sábado e seu erro foi tão grave que apareceu até no Jornal Nacional?

Sim. Foi um jogo de zona de conforto. A ESPN até transmitiu. Eu tinha feito um bom Paulista da primeira divisão, e apitei aquele Corinthians x Santos do gol do Ricardinho no final e o Corinthians foi pra final contra o Botafogo. No primeiro jogo da final eu não fui escalado, mas tinha a expectativa de apitar a grande final, no Morumbi. O árbitro quer estar nos grandes jogos, é uma coisa interessante, ele vai em busca disso. Eu fui avisado que tinha a oportunidade de apitar a finalíssima, no outro final de semana, e fui apitar um jogo da Série A2 não muito aguerrido na tabela, Paulista de Jundiaí e América de Rio Preto. Teve um lance que um jogador do América deu uma cortada na bola, à Marcelo Negrão, e todo mundo no estádio viu o lance, menos eu. Na época, até criei um certo conflito de posicionamento, achei que tinha que me posicionar de outro lado, mas aquilo foi puramente falta de concentração. Talvez tenha dado pouca importância para o jogo. Isso a gente aprende. Sempre tem que dar importância aos jogos. No mínimo, 30 famílias estão envolvidas no jogo. Para eles, é importante, para o árbitro também tem que ser importante, sempre.

Existe o conceito de o árbitro estar em má fase, com ou sem ritmo de jogo?

Existe. A carreira não pode ser nunca julgada por um jogo. A carreira do árbitro tem que ser uma sequência de bons campeonatos. Isso é um problema. Em um jogo tira nota 10, no outro nota 0. Tem que ter uma regularidade de nota 7, 8. O árbitro tem que estar em um momento constante. Depende de muitos fatores. Se é equipe do seu estado, se você fica fora da escala. Às vezes o Campeonato Brasileiro se destaca por árbitros de outros estados por conta disso. Como equipes de São Paulo estão sempre disputando com equipes gaúchas, mineiras, cariocas, os árbitros acabam impedidos de atuar nesses jogos, e outros árbitros acabam atuando.

Qual você acha que o desconhecimento das pessoas sobre a arbitragem se deve a uma falha dos árbitros e da comissão da arbitragem de mostrar isso? Nunca dão entrevista, ninguém fala.

Falta um mecanismo de humanizar o árbitro de futebol, torná-lo mais sociável, integrado aos eventos, à sociedade. A CBF tem eventos entre os dirigentes, entre comissões técnicas, e não convida os árbitros. Essa integração tem que ser feita. Em competição Fifa, em toda festa de dirigente, os árbitros estão presentes. Aí todos sabem quem são, o jogador conhece, sabe quem é. Dá para falar olho no olho, dialogar, saber o que ele pensa. Isso não acontece no Brasil. Todo mundo só conhece o árbitro naquelas quatro linhas. Essa sociabilização é necessária.

Comissão de arbitragem liga para árbitro com recomendação especial quando vai apitar time que tem reclamado?

Antigamente, eu diria que era mais comum um telefonema, pressão para recomendar boa arbitragem. No meu tempo de arbitragem, nunca teve nada direcionado. Hoje o modelo é um pouco diferente. Todo jogo tem um assessor de arbitragem, e é geralmente esse que tem o contato com o árbitro, analisa do jogo, as consequências e os cuidados que têm que ser tomados. Importante ressaltar que a escala da CBF é composta por uma equipe de arbitragem com quatro integrantes, eventualmente tem o quinto árbitro e o delegado do jogo, geralmente um integrante da comissão de arbitragem. Ele exerce esse papel, às vezes no hotel, no vestiário antes do jogo.

Acredita na possibilidade de se montar esquema de arbitragem para beneficiar determinado time?

Não acredito. A pressão para o árbitro não é no intuito de beneficiar determinada equipe, esquema de arbitragem. É um risco muito grande querer envolver árbitro nisso. O árbitro é cíclico, ele vai passar um tempo no futebol e sai. Como se comprometer com esse árbitro? Tem quem diz: você sabe em quem chegar, em quem pode pedir determinados favores. Mas esse tipo de esquema de arbitragem… Podemos falar dos dez anos da Máfia do Apito, jornalisticamente falando “Máfia do Apito” é um grande nome. Na época, eu apitava, fui investigado pela Polícia Federal, verificaram minhas movimentações bancárias. Fizeram isso com vários árbitros, mas só dois foram envolvidos. Foi denominada “Máfia do Apito” com dois árbitros envolvidos. Foi muito mais “máfia dos apostadores” do que “do apito”. Mas jornalisticamente, não daria a repercussão que deu. Árbitro tem prazo de validade, e depois desse prazo, como você troca favores? Depois vai que o cara escreve um livro e denuncia tudo. Como correr esse risco?

Ao que você credita certas incoerências da arbitragem brasileira em relação à arbitragem mundial, como a padronização de falta, de toque na mão, bola na mão x mão na bola?

Tem dois fatores fundamentais. Primeiro, a soberania. A CBF fica querendo ser muito escrava da Fifa e lavar as mãos. “Tudo a Fifa quem faz.” Anualmente, traz um instrutor da Fifa e fala que foi orientação da Fifa. As outras federações nacionais têm mais soberania, dão instrução. Não é não cumprir a regra da Fifa, é ter instrução própria. Outro ponto problemático é não ter o grupo na mão. Não se define quais são os árbitros que apitam o Campeonato Brasileiro. Tem árbitro estreando na Série A na 20ª rodada. Antes de começar o campeonato, a CBF deveria definir os árbitros da Série A, 25 árbitros e 40 bandeiras, e fazer um trabalho uniformização de critérios, analisar os lances e mostrar o que o sujeito interpretou certo ou errado. Isso tem que ser feito com regularidade. O Brasileiro é de abril a dezembro e nunca é feito isso. É importante que os demais árbitros entendam porque ele tomou essa decisão. Hoje tem de ser feito por conta própria. Assim que o árbitro trabalha: assistindo ao jogo, vendo o lance, analisando qual decisão eu tomaria naquele lance. Se a minha decisão era diferente da adotada pelo árbitro em campo e ele era um mais qualificado que eu, eu iria rever meus conceitos, discutir com um instrutor. Mesmo que não fosse um grande árbitro, eu questionaria por que ele tomou uma decisão diferente da que eu tomaria. Isso é necessário para uniformizar esse critério e não ter tanta discrepância nas interpretações.

O quanto o árbitro, às vezes, tem a carreira ou a atuação dele prejudicada pelos bandeiras ou pela falta de entrosamento entre eles?

Tem muito isso, realmente. As regras são universais, todos os árbitros conhecem, mas essa proximidade, saber como o bandeira atua, e vice-versa, em uma simples trocada de olhar já facilita, melhora o trabalho em equipe. É lógico que você tem que usar o árbitro experiente para formar um bandeira que está crescendo. E vice-versa. Se você quer lançar um arbitro novo, que tem potencial, é importante colocá-lo com um bandeira maduro, experiente, que vai dar sustentação a esse árbitro, mas depende do perfil de cada um. É comum no vestiário ter árbitro que não conversa com o bandeira, que não tem diálogo, não se encontram, não tem um diálogo sociável. Se é um árbitro didático, que sabe explicar, tem que usar esse rodízio.

Em certos países, como Inglaterra e Alemanha, as pessoas não são tão minuciosas em cima de erros de arbitragem. Aqui no Brasil, na Espanha, na Itália, trata-se cada lance como se fosse perícia criminal. Isso aumenta a pressão em cima do árbitro?

O papel do árbitro é legitimar o resultado, o papel do atacante não é fazer o gol. É lógico que às vezes usam esse argumento de que todos erram, principalmente na gestão atual da arbitragem brasileira, mas não concordo que o árbitro comete o mesmo erro do jogador. Acho que o ser humano árbitro chegou ao limite. Tem lances que é impossível o árbitro acertar. Quando acerta, acerta na sorte. Não dá para comparar o erro do árbitro com o erro de uma substituição do técnico, jogador que perde um gol, um pênalti. São situações completamente distintas.

Se você virasse presidente da comissão de arbitragem da CBF ou da Fifa, o que faria para melhorar a situação da arbitragem no mundo, e particularmente no Brasil?

Em nível mundial, são 209 países que praticam futebol com as mesmas regras. A International Board tem que usar o exemplo do spray e o exemplo da tecnologia na linha de gol. O spray é opcional. A tecnologia também tem que ser opcional. Sou contra colocar a tecnologia amanhã, mas é preciso começar a fazer experiência com as tecnologias. Tirar das costas do arbitro 100% das decisões e usar o que tem de mais moderno no mundo. Qual o modelo? Não sei, mas pode-se abrir as portas para os engenheiros apresentarem seus projetos. Sou contra parar o jogo a todo momento, mas temos que avaliar que uma, duas vezes no futebol, vai trazer bastante segurança e mais credibilidade. O maior problema não é a questão técnica, mas a legitimidade. É o que você me perguntou: tem esquema, favorecimento? Isso vai ser derrubado pela tecnologia, isso vai diminuir isso. Em solo brasileiro, tem que mudar a forma de direcionar os árbitros. Não vai zerar os erros da arbitragem. Eles existem em qualquer lugar do mundo, com dedicação exclusiva, em Copa do Mundo, que eles ficam concentrados. Temos que minimizar, ter critérios técnicos, e não políticos. Quem está no futebol tem que olhar e falar: “errou porque o lance é difícil”. Mata a questão da credibilidade, fica só na questão técnica. Futebol brasileiro precisa mudar pela questão da legitimidade.

Naquela matéria que a ESPN fez com o Edilson Pereira de Carvalho, que você até ajudou, ele apita um jogo amador e até fala: “que delícia isso”. No Corinthians x Criciúma da última rodada do Brasileiro do ano passado, o árbitro chama um auxiliar fazia o último jogo da carreira, e ele fica completamente emocionado ao pegar o apito e encerrar o jogo. Na boa, quem não arbitra acha que é o maior mico do mundo, mas qual a sensação de arbitrar?

Tem que ter aptidão, gostar, ter o prazer de estar no campo, decidir, ser o líder dentro de campo, tomar decisão. Tem que gostar desse tipo de coisa. Quem está há muito tempo e faz carreira sente realmente esse prazer. É um vírus. Quem é beliscado pela arbitragem não quer sair da arbitragem. Gosta demais de estudar, conhecer as regras, legitimar um resultado. Modéstia à parte, eu que fiz isso essa coisa de dar o apito ao assistente que encerra a carreira. Foi com o Nilson Monção, em um jogo na Bahia. Era o último jogo dele e eu quis fazer essa homenagem para ele. Ao invés de apitar o final do jogo, pedi que ele entrasse em campo, ele entrou em campo, e o último ato da carreira dele foi apitar. Acabou virando uma rotina. Ano passado, vários árbitros se despediram assim. Ali é muito mais uma imagem de um árbitro apitando o fim da carreira, com dedicação ao futebol, feliz por aquele ato. Quem entra na arbitragem não quer sair, gosta muito disso. Não é fácil o começo da carreira, é preciso superar as dificuldades. Mas estar no campo, ser elogiado, gostar de futebol. Isso é um prazer muito grande.

Chegar no hotel depois de um jogo e ouvir que a atuação do árbitro, ou não ouvir ninguém reclamar, dá uma sensação que nem a de um jogador que fez três gols e decidiu o jogo?

A realização do árbitro é sair do jogo e falar: ninguém falou nada de arbitragem. Passei em branco, passei limpo. Isso é bom, é a sensação que pode desfrutar e comemorar a boa arbitragem.

Foto de Ubiratan Leal

Ubiratan Leal

Ubiratan Leal formou-se em jornalismo na PUC-SP. Está na Trivela desde 2005, passando por reportagem e edição em site e revista, pelas colunas de América Latina, Espanha, Brasil e Inglaterra. Atualmente, comenta futebol e beisebol na ESPN e é comandante-em-chefe do site Balipodo.com.br. Cria teorias complexas para tudo (até como ajeitar a feijoada no prato) é mais que lazer, é quase obsessão. Azar dos outros, que precisam aguentar e, agora, dos leitores da Trivela, que terão de lê-las.
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