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O Flamengo demarcou sua força para, enfim, oferecer a gerações um horizonte há tempos intocado

A espera durou 35 anos. O Flamengo, que já não era mais de Zico naquela época, seria de outros tantos ídolos neste longo intervalo, mas não conseguiria alcançar a semifinal da Libertadores novamente. Passaram-se décadas, a competição continental se transformou, muito aconteceu na Gávea. No entanto, a ambição internacional dos rubro-negros permaneceu limitada aos torneios secundários da América do Sul. A Libertadores era uma terra arrasada onde apenas a frustração parecia florescer. Até que o atual time pusesse fim a este hiato, com uma campanha faz jus à grandeza do clube.

E o Flamengo, de fato, jogou como gente grande diante do Internacional, um adversário bem mais acostumado às empreitadas além das fronteiras nos últimos anos. A qualidade superior dos rubro-negros, que havia garantido a vitória por 2 a 0 quando os céus se abriram no travado embate do Maracanã, preponderou no Beira-Rio. A adrenalina dos flamenguistas se manteve incrivelmente baixa durante boa parte da noite, também pelo desencontro dos colorados. A vantagem não veio durante o primeiro tempo pelas falhas de Gabigol e pelas defesas de Marcelo Lomba. Já na etapa final, quando a palpitação começou após o gol de Lindoso, a fúria de Bruno Henrique desbravou os limites que este talentoso time do Flamengo pode atingir. O empate por 1 a 1 valeu a semifinal. O Grêmio será um desafio mais duro, pela tarimba recente e pelo bom trato com a bola. A promessa é de dois jogaços. Os flamenguistas, como muitos nunca haviam sequer sentido, terão o gosto de estar lá e buscar mais um passo no continente.

Odair Hellmann não trouxe mudanças em relação à partida no Maracanã. Apostava na mesma formação, mas adiantava D'Alessandro e Rafael Sóbis pelas pontas. Apesar dos pedidos por Wellington Silva, o jovem ficaria só como alternativa no banco de reservas. Já o Flamengo tinha novidades. A começar, pela manutenção de Gustavo Cuéllar na cabeça de área, após seu afastamento recente. Willian Arão, um dos melhores em campo no Rio de Janeiro, desfalcava os rubro-negros pelo acúmulo de amarelos. Dava lugar a Gérson, que saíra muito bem do banco de reservas no outro confronto. No mais, Jorge Jesus permanecia com suas armas.

E a vantagem de dois gols construída na ida não se refletiu em forma de cautela ao Flamengo. Pelo contrário, os rubro-negros trataram de se impor durante os primeiros minutos dentro do Beira-Rio. Encaixaram o seu jogo e marcavam com intensidade, o que permitia os avanços rápidos ao ataque. O Internacional sentia a tensão e errava demais. Os colorados sofriam especialmente no meio-campo, onde o dinamismo do trio central era abafado pelos cariocas. A balança pendia só para um lado.

O Flamengo criou um punhado de ocasiões para ampliar a vantagem logo de cara. Não tinha receio de arriscar e contava com a boa movimentação de seus jogadores mais ofensivos. Além do mais, as roubadas de bola encurtavam o caminho dos rubro-negros à área oposta e pegavam a defesa colorada aberta. Arrascaeta deu o primeiro aviso logo no primeiro minuto, em chute de longe que Marcelo Lomba espalmou. O goleiro seria ainda mais exigido na sequência. O Fla recuperou a posse no meio e Gabigol foi lançado em profundidade. De frente para o crime, chutaria em cima do camisa 1. Antes dos cinco, ainda houve a reclamação de um pênalti por toque de mão de Cuesta no limite da grande área. Era lance passível à revisão no vídeo, mas o VAR optou por não chamar o árbitro, gerando a insatisfação entre os flamenguistas.

Na bola e na mente, o Flamengo era dono do primeiro tempo. Nervoso, o Inter não encontrava caminho pelo chão. Tinha pressa para iniciar a sua reação, mas exibia muitas deficiências para criar as jogadas, especialmente pelas laterais do campo. O jeito aos colorados foi levantar a bola na área, buscando o isolado Guerrero. A defesa rubro-negra cumpria a sua missão, sem permitir que os anfitriões tivessem espaço para finalizar. Rodrigo Caio e Pablo Marí, mais uma vez, iam bem no miolo da zaga.

O esboço de abafa do Internacional durou pouco. Ao longo da primeira etapa, o Flamengo conteve os adversários. A partida teve certos atritos, com jogadores se estranhando e cartões amarelos distribuídos. Porém, durante a maior parte do tempo, seguia administrada pela marcação bem postada dos flamenguistas e pela precisa saída de jogo. Filipe Luís e Rafinha tinham influência neste controle, ao iniciarem as construções. Além disso, o Fla sabia o momento de acelerar. As aproximações de Arrascaeta e Everton Ribeiro contribuíam ofensivamente, enquanto Bruno Henrique e Gabigol aceleravam diante dos defensores. Os cariocas eram bem mais perigosos.

Por volta dos 20 minutos, aconteceram mais alguns lances claros do Flamengo. Bruno Henrique teve duas chances e, quando pegou de fora, Lomba de novo desviou para salvar seu time. O Inter não possuía qualquer conexão entre meio e ataque. Limitava-se a cruzamentos na intermediária, que a zaga adversária conseguia cortar. Pouquíssimo a quem precisava tanto do resultado. E se os rubro-negros viviam uma jornada estranhamente tranquila ao peso da ocasião, pecavam apenas por seus defeitos nas finalizações. Filipe Luís tentou forçar um chute de média distância e Lomba defendeu com firmeza. Já aos 43, outro desperdício gigantesco. Bruno Henrique deu a enfiada e deixou para Gabigol fazer. O atacante explorou o buraco na defesa e, de frente com Lomba, tirou do goleiro, mas exagerou ao mandar para fora.

Apesar dos claros problemas, o Internacional voltou ao segundo tempo sem modificações. Nada parecia também ter mudado no andamento da partida e, por isso, Odair Hellmann queimou duas substituições em sequência antes dos dez minutos. Rafael Sóbis deu lugar a Nico López, enquanto Wellington Silva suplantou Uendel. O Flamengo era senhor de seu destino e tratava de gastar o tempo com a bola nos pés, sem transparecer muita preocupação para esperar o fim dos 45 minutos complementares. Isso até que os colorados resolvessem incendiar o Beira-Rio aos 16 no relógio.

Uma chegada isolada: assim nasceu o gol que inaugurou a contagem no duelo. D'Alessandro cobrou falta na lateral e dois jogadores do Internacional conseguiram se antecipar no primeiro pau. Quem desviou a bola às redes foi Rodrigo Lindoso, com uma cabeçada firme, mas havia dúvidas sobre o posicionamento de Patrick. Após minutos (até exagerados) de indecisão e da participação do bandeira na revisão diante do monitor, o lance acabou validado pela arbitragem. Tudo ficava por um triz em Porto Alegre.

O Internacional se agigantou com o gol, a torcida cantava mais alto e jogava junto. Por pouco mais de 20 minutos, a partida se transformou em um drama vivido à flor da pele. O Flamengo sentiu a pressão e, enfim, o receio do desconhecido tomou suas veias. Acelerava o ataque sem muito caminho e, pior, rifava demais as bolas na defesa. O Inter não possui tanta qualidade individual, mas empurrava os rubro-negros para trás, na base da raça e da urgência. A virada se tornava palpável no Beira-Rio, caso outra bola vadia pintasse.

A sequência de cruzamentos permanecia como o principal caminho ao Inter, que agora ocupava muito melhor os lados do campo e via Nico López ajudando a afrouxar a marcação dos oponentes na faixa central. Não foram poucos os momentos em que os zagueiros do Flamengo acabaram no limite. Além disso, a entrada de Piris da Motta no lugar do amarelado Cuéllar não ajudou tanto na proteção. O problema dos colorados foi transformar seu ímpeto no segundo gol. A emoção se dava mais pela possibilidade do que por um futebol concreto dos gaúchos. Em meio ao abafa que se formou na área do Fla, as oportunidades se limitaram a um chute bem defendido por Diego Alves e por uma bola que Marí quase meteu contra.

Quando o duelo se aproximava do momento decisivo, os dois treinadores confiaram na velocidade. Berrío veio ao Fla, o Inter ganhou Sarrafiore numa ousada troca por Cuesta. A estratégia de Odair Hellmann, contudo, não teve nem tempo para ser testada. Ela abriu o caminho à derrocada. Aos 39, um contragolpe perfeito matou o jogo aos rubro-negros. O lance começou na lateral esquerda, a partir de um desarme de Arrascaeta em cima de Sarrafiore. Bruno Henrique recebeu no meio e disparou. Ninguém conseguiu acompanhá-lo e, dentro da área, apenas Edenílson tentava contê-lo. O atacante só rolou para Gabigol e, enfim, o artilheiro honrou o sufixo de seu apelido. A superioridade geral do Flamengo no confronto era premiada.

A comemoração contou com um princípio de confusão. E a verdade é que o gol representou um anticlímax tremendo ao Internacional. Quando mais os colorados acreditavam que era possível reagir, as esperanças terminavam esmigalhadas do outro lado. Fazer três gols a esta altura parecia uma missão impossível. Assim, a partida apenas se arrastou em sua reta final. Os torcedores começaram a deixar as arquibancadas e a festa dos visitantes se tornava bem mais audível. O Inter até ia ao ataque, mas apenas para constar. Os oito minutos de acréscimos foram uma cruel espera dos gaúchos à eliminação, contrastante à contagem regressiva dos cariocas para a festa que tomará a madrugada.

O Internacional tem um time inferior ao Flamengo no papel, não há questionamentos quanto a isso. Apesar da presença de jogadores renomados, os colorados não conseguem impor a mesma intensidade. A confiança na classificação residia no bom momento do clube, como visto nas oitavas de final, contra um Fla que ainda se acerta com as novas peças. O tempo, entretanto, fez muito bem aos flamenguistas. O time de Jorge Jesus segue em ascensão, enquanto o de Odair Hellmann não imprimiu a mesma eficiência. Foi um embate decepcionante aos gaúchos, que não conseguiram competir durante a maior parte das partidas e só criaram expectativas por brevíssimos instantes. Pouco, e o treinador tem uma parcela de culpa pelas escolhas contestáveis ao longo dos 180 minutos. Teve dificuldades para achar soluções a alguns problemas expressos em campo, assim como foi ao Maracanã para tentar o empate.

Mas se há deméritos do Inter, sobram também méritos ao Flamengo. Aquele frio na barriga que regeu as campanhas do clube na Libertadores ao longo das últimas décadas se repetiu, mas por apenas 20 minutos, um lucro imenso. O Fla jogou com a força de sua torcida no Maracanã e com a qualidade do seu time no Beira-Rio. E se o coletivo deixou de funcionar durante o período de temor, as individualidades encontraram o caminho à classificação.

Os acertos permanecem necessários e os lances perdidos por Gabigol, algo recorrente, certamente incomodam os torcedores. Mas a beleza de uma semifinal de Libertadores é indescritível aos cariocas. Gerações de torcedores nunca viveram isso. Esse é o tamanho do milagre que se experimenta nesta temporada, com um time que deixa impressão de que pode mais. Com qualidade, com inteligência e com autocontrole, o Flamengo finalmente faz valer seu peso no torneio.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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