O espetáculo inútil da CBF, Tite e dos clubes em Brasil x El Salvador, que só serve a dirigentes

Há menos de dois meses, a França levantava o caneco da Copa do Mundo, o maior evento de futebol que existe. Foi no dia 15 de julho, em Moscou. O dia 11 de setembro marcou o segundo amistoso do Brasil na primeira data Fifa pós-Copa. Depois de uma vitória sem lá muito brilho contra os Estados Unidos, o Brasil voltou a campo contra El Salvador. O jogo, em Maryland, no estádio do Washington Redskins, da NFL, foi inútil, como quase todo mundo esperava. Uma goleada por 5 a 0, que teve apenas um destaque, Richarlison, e que mesmo assim deve ser minimizado. O que vimos foi um espetáculo patético de um jogo pouco atrativo que prejudicou jogadores, clubes e até o próprio técnico, que sai com a imagem arranhada e com quase nada a acrescentar em relação ao seu trabalho.
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Um espetáculo de inutilidade que tem como protagonistas a CBF, os clubes e o técnico, Tite. Afinal, foi contra esse adversário maravilhoso que é 72º do mundo no ranking da Fifa (o ranking pode não ser grande coisa, mas ao menos dá algum indício sobre qual é o nível do adversário), que jogadores que atuam no Brasil tiveram mais uma chance de atuar pela seleção. Um orgulho, sem dúvida, e muito importante para eles. Mas é só o que fica de um jogo desse e, convenhamos, é muito pouco para justificar a sua participação.
O custo, porém, também fica com eles: Dedé e Lucas Paquetá farão uma maratona para estarem em campo nesta quarta-feira por Cruzeiro e Flamengo, pela Copa do Brasil, às 21h45 (horário de Brasília). Jogarão 24h depois de estarem em campo contra El Salvador, na região metropolitana de Washington, nos Estados Unidos. Jogarão dois dias seguidos, arriscando a sua própria saúde – há regulamentos que exigem ao menos 66 horas de descanso aos atletas e recomenda-se pelo menos 72 horas.
Seria o caso do sindicato dos atletas entrar rasgando na questão, impedir que isso aconteça, parar os jogadores profissionais em protesto contra um risco que cai em cima do jogador, que além de fisicamente se arriscarem, ainda correm o risco de serem cobrados pela torcida em uma eventual atuação abaixo do que podem – ou mesmo caso comecem no banco. Só que não há sindicato, ou qualquer organização na verdade, que represente os jogadores e, mais do que isso, seja capaz de articular os jogadores assim. O último resquício que vimos disso foi o Bom Senso FC, que foi forte enquanto foi liderado por jogadores veteranos, consagrados, que não tinham quase nada a perder. Com a aposentadoria deles dos gramados, a força se esvaiu.
Clubes não são inocentes, embora sejam vítimas
Os clubes, claro, acabam prejudicados. Certamente há de se lembrar que os clubes são também responsáveis por vermos um calendário ruim. Claro que é a CBF quem impõe isso, diante de uma manobra de poder que dá muito mais peso aos votos de federações estaduais em relação aos clubes. A responsabilidade dos clubes é de não se organizarem para protestarem contra isso, se recusarem a jogar ou algo assim. Fazerem algo para mudar além de reclamar. Isso é evidente, mas não pode interditar o debate. Se os clubes são também responsáveis, azar o deles e acabou a questão? É claro que não.
Sabemos também que o calendário ruim tem a ver com o tamanho atual dos estaduais, com suas 18 datas nos principais torneios, além de um dinheiro de TV que ainda pinga e alegra dirigentes, ao menos nos quatro principais centros do país (RJ, SP, MG, RS). No momento que a grana for pouca, como já é, por exemplo, no Paraná, o caldo começa a engrossar e clubes como o Atlético Paranaense se recusam a jogar com o time principal, escalam o seu time B (ou sub-23) e se recusam a negociar direitos de TV por um valor que consideram irrisório (com razão, diga-se). O Bahia já disse, quando era presidido por Marcelo Sant'Anna, que o estadual dava prejuízo ao clube e, por isso, queria uma participação menor ou que o torneio fosse uma divisão de acesso à Copa do Nordeste. No fim, é uma questão muito mais financeira do que de tradição.
Os clubes são responsáveis e também prejudicados em situações como essa, da data Fifa. Flamengo e Cruzeiro, nesse caso, são afetados diretamente por um jogo realmente inútil em termos de preparação, em teste tático ou técnico. É um amistoso obrigatório porque a CBF tem contrato com uma empresa que gerencia seus amistosos, colocando para jogar onde ela quiser por cotas altas. E a CBF tem obrigação de ter sempre suas estrelas, ou ao menos a maior parte delas.
O papel do técnico
Diante disso tudo, tem pouco que o técnico possa fazer, certo? É verdade. Ele não pode mudar os amistosos para o Brasil (mas pode pedir por isso), não pode mudar o calendário (mas pode fazer pressão por isso) e não pode deixar de convocar a maior parte das suas estrelas. Mas pode, sim, não convocar jogadores dos clubes brasileiros para jogos que pouco serviram para avaliar qualquer coisa. Tite gosta de observar os jogadores nos treinos e, provavelmente, tirou mais dos treinos do que dos jogos. Será que as observações eram absolutamente necessárias e essenciais nesses jogos?
Alguém vai dizer que não é culpa de Tite que esse conflito de datas aconteça e terá razão. Tite, então, pode assumir essa postura: infelizmente isso acontece, mas eu tenho que me preocupar só com a seleção. Seria total direito dele. O que Tite faz, porém, incomoda também por causa do discurso. Ele repetiu várias vezes desde a convocação que sabe como é estar do outro lado, ser técnico de clube. Que irá ajudar os clubes. Primeiro, convocando só um jogador de cada clube. Depois, antes do jogo contra El Salvador, disse que ajudaria não colocando Dedé e Paquetá durante o jogo todo, só parte dele. Grande ajuda, hein?
Um discurso que incomoda porque é da boca para fora. Não ajuda nada. Nem os clubes, nem os jogadores e nem ele mesmo, porque com um jogo desse, há pouco o que se tirar. Tite comprou um desgaste pelo que? Porque se os jogos são de Eliminatórias, é plenamente justificável convocar os jogadores, mesmo às custas dos clubes. Em um jogo como esse, o prejuízo é de todos os lados. Em tempos de pesquisa eleitoral, o que acontece é que Tite aumentou a sua rejeição. E pelo que? Por um jogo contra Estados Unidos cheio de jovens inexperientes e contra El Salvador? E mesmo que fosse em um jogo pegado, contra um adversário forte, ele estaria tolhido de convocar mais de um jogador por clube para não atrapalhar mais ainda os times brasileiros? Isso também prejudica o seu trabalho, causa desgaste e ele deveria, por isso, ser um dos que quer essa mudança e luta por ela.
Tite precisa tomar cuidado porque ninguém é obrigado a lutar por melhorias, o que implica, quase sempre, em ir contra gente de cima – os chefes, por exemplo. Ninguém é obrigado a lutar por condições melhores do futebol. Mas se espera que quem tem poder possa exercer esse poder e visibilidade para isso. Por exemplo, não convocar Lucas Paquetá e Dedé, mas dizer que ele queria fazer isso e não vai fazer porque sabe que atrapalhará os clubes. Que é preciso mudar isso e que já pediu ao pessoal da CBF para tentar montar algo que melhore isso.
Eu sei, vai ter alguém que vai dizer: “Ah, é fácil falar para ir contra o chefe”. É bom lembrar que estamos falando de uma situação muito particular. O técnico da seleção brasileira é alguém em uma posição de destaque e poder. Os dirigentes que contratam Tite e são, por assim dizer, seus chefes, estão muito abaixo deles em termos de força com o público. Tite tem força para fazer esse tipo de coisa. Será apoiado largamente pelos torcedores. É muito diferente de comparar a uma situação de empregado e chefe onde o chefe é muito mais forte, em todos os sentidos. Tite é empregado em uma situação que é muito mais forte que os chefes.
Isso sem nem falar que um ex-presidente vive exilado no Brasil (sim, exilado no próprio país, um conceito que só a justiça brasileira proporciona), Ricardo Teixeira, banido do futebol, mas vivendo do luxo que conquistou por ele; Marco Pólo Del Nero, alguém que não pode sair do Brasil com o temor de ser preso pelo FBI e ser processado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos por crimes cometidos usando bancos americanos, assim como José Maria Marin, condenado à prisão e que cumpre pena em Nova York. Por fim, o atual presidente da CBF, Antonio Nunes, o Coronel Nunes, alguém que passou vergonha ao votar no Marrocos quando a Conmebol combinou votar na candidatura tripla Estados Unidos, México e Canadá para sede da Copa 2026. Por fim, Rogério Caboclo, o homem compliance, que nem é conhecido da maioria dos clubes, muito menos do público.
Também sei que alguém vai dizer: “Quer dizer que os clubes não fazem nada, mas o Tite tem que fazer?”. De novo, ele não tem que fazer nada, tanto que não faz. Só que ele pode escolher não passar o ridículo de, por exemplo, dizer que a data Fifa “coincidiu” com a semifinal da Copa do Brasil. COINCIDIU. A CBF é quem faz o calendário (com anuência dos clubes e da TV), a CBF é quem marca os amistosos, respeitando a data Fifa. Não é uma coincidência.
Quando o Tite diz que vai ajudar convocando apenas um por time ou que só colocará os jogadores por apenas um tempo para ajudar os clubes, ele faz um papel ridículo, porque não ajuda ninguém e quer mostrar empatia, quando não tem. Ele pode não ter. Pode dizer que queria que fosse diferente, mas que ele precisa trabalhar em função dele, porque é ali que ele será cobrado.
O problema do discurso de Tite é que ele é conveniente não a ele, que se desgasta, tem a sua rejeição aumentada junto aos clubes e torcedores, mas aos dirigentes, os responsáveis pelo caos. No fim, é ele quem absorve as críticas, é ele que se torna a cara da CBF que tira os jogadores dos clubes, é ele quem se torna alguém que os torcedores ficam com raiva, é ele que é acusado de clubismo ao convocar um jogador de um e não de outro, ou mesmo no caso de Fagner, alguém que ele nem precisava convocar, liberou e a recuperação do lateral acaba criando um ambiente constrangedor sem nem o técnico ter culpa. E tudo isso pra convocar jogadores do Brasil para amistosos inúteis, que não acrescentam nada, e causam problemas em tantos aspectos. Sendo a couraça que protege os dirigentes.
Tite ainda passou a vergonha de bater boca com Donald Trump via imprensa (que é o motivo da foto que você vê neste texto). Trump recebeu o presidente da Fifa, Gianni Infantino, na Casa Branca para um evento sobre a Copa do Mundo de 2026, a ser sediada no país em conjunto com México e Canadá. A repórter Raquel Krahenbuhl, da Globonews, queria fazer uma pergunta ao presidente americano. Ao ouvir o sotaque da repórter, perguntou de onde ela é. ”Do Brasil, nós temos a melhor seleção do mundo”. Trump, então, foi espirituoso e fez uma brincadeira: ”Vocês tiveram alguns probleminhas recentemente”. Nada de mais. Algo até muito bem humorado, divertido.
Perguntado na coletiva antes do jogo contra El Salvador, Tite responder de forma séria, como vemos na foto, fazendo o número cinco com a mão esquerda. “Minha resposta para o Trump é que temos cinco títulos mundiais. Talvez historicamente ele possa se informar melhor”. Sério, sisudo, dando uma patriotada boba, rivalizando com os Estados Unidos, que sequer são rivais, e com uma declaração que não foi nada ofensiva, nem mesmo agressiva. Mas que serve muito bem aos dirigentes: Tite faz o papel de defensor da CBF muito melhor do que qualquer dirigente faria.
Parabéns a todos os envolvidos.