Brasil
Tendência

“O Corinthians é a maior banda de rock de todos os tempos”: O amor branco e preto de Rita Lee

Entre tantos simbolismos ao redor de Rita Lee, a paixão pelo Corinthians também reverberou das mais diferentes maneiras - e muito além do futebol

Rita Lee simbolizou rupturas ao longo de seus 75 anos de vida. A música era o caminho no qual a paulistana concentrava seu talento para quebrar barreiras, em reflexos que iam muito além de seus sucessos. Rita Lee foi uma pioneira da liberdade – para o rock nacional, para o empoderamento feminino e para a própria sociedade que enfrentava anos de chumbo. E a Rainha do Rock, que transitava por onde bem entendesse, por tantas vezes se meteu também nos estádios de futebol. Poucas pessoas amaram e personificaram tanto a cidade de São Paulo quanto Rita Lee. O Corinthians era um laço forte da cantora com as suas origens, que ainda permitia a ela fortalecer a presença das mulheres nas arquibancadas e endossar um momento no qual o clube representava um espaço de discussões democráticas em meio à reabertura do país. Como disse a própria Rita, o Corinthians era “a maior banda de rock'n'roll de todos os tempos”.

O futebol, para Rita Lee, representava raízes. Seu pai, Charles, era americano e também corintiano. O Corinthians, além do passado ligado à comunidade inglesa, também servia como um meio para o dentista se aproximar mais fortemente do novo país. Dentro de casa, as três filhas viraram alvinegras – para desgosto da mãe palmeirense, de origem italiana. Charles via todos os jogos empunhando um cajado, enquanto Rita repetia sempre a mesma camisa e a mesma meia como parte de seu ritual. Para ela, nem era superstição, era “feitiçaria”, como contaria em 2002, numa entrevista concedida a Casagrande em sua coluna no Estado de S. Paulo: “Quando criança, torcia para o Corinthians ganhar, assim papai liberava tudo”.

E a liberdade dentro de casa, anos depois, renderia a inspiração para um dos maiores sucessos de Rita Lee: Lança Perfume. Como contou a cantora em entrevista ao canal GNT: “Meu pai distribuía lança perfume em casa para as mulheres, que só tinha mulher, quando o Corinthians ganhava. Então as mulheres ficavam ‘opa' ‘opa', de lança perfume. Soltava a mulherada com lança perfume, pra comemorar o Corinthians, o que você queria? Ficou uma cena muito forte: meu pai festejando, as mulheres todas dançando… Eu não ia a baile de carnaval, ele não deixava, então eu só conheci o lança perfume nessa situação de festejar a vitória do Corinthians”.

A primeira vez de Rita Lee nas arquibancadas aconteceu justo num Dérbi. Com vitória do Corinthians sobre o Palmeiras, relembrava. Já seu primeiro grande ídolo com a camisa alvinegra foi Rivellino, um contemporâneo da jovem, que deslumbrava com suas jogadas mágicas em tempos de seca. “Meus três ídolos no Corinthians são você [Casagrande], o Sócrates e o Rivellino. Você pelo estilo Al Pacino, mais rebelde, que encarava tudo e todos. O Magrão tinha mais o jeito do Clint Eastwood, cowboy sereno que só atirava quando preciso. E o Rivellino pelas jogadas geniais, que me enchiam os olhos”, relataria a paulistana.

Em sua autobiografia, Rita Lee conta que um dos momentos mais felizes de seu pai no nascimento de um dos netos teve relação com o clube. Juca, além de nascer no dia do aniversário do avô Charles, ainda veio ao mundo no exato minuto em que o Corinthians marcava um gol no Morumbi, nos arredores do hospital. O sentimento era transmitido de geração em geração. “Não sou corintiana desde criança, e sim desde sempre, viu!”, refletiu a cantora, também em 2002, na conversa com Casagrande. E o coração alvinegro era algo que Rita Lee não tinha problemas de exibir a todos, transformando até em canção.

Quando começava a alçar voos para sua carreira solo, Rita Lee gravou “Amor em Branco e Preto”. A música composta pela paulistana, ao lado de Arnaldo Baptista, falava do amor pelo Corinthians. Os alvinegros atravessavam seu doloroso jejum no início dos anos 1970. Foi o que a cantora entoou nas estrofes, sem abandonar sua paixão: “Por que será que eu gosto de sofrer? / Vai ver que agora eu dei para masoquista / Meu amor preto e branco às vezes me deixou na mão / Mas eu gosto de você / Já não me importa a sua ingratidão / Sofro, mas continuo a te adorar / Corinthians, meu amor”.

Também não eram raros os show em que Rita Lee aparecia com a camisa do Corinthians, ou então que fazia nas próprias estruturas do clube. “Eu me sinto fazendo um gol quando, ao entrar no palco, a galera explode. É uma alegria muito grande”, dizia. Nenhum desses espetáculos foi mais famoso que aquele em novembro de 1982, num momento em que o Corinthians decolava para a conquista do Campeonato Paulista. Sócrates, Casagrande e Wladimir apareceram no Ibirapuera e foram convidados ao palco por Rita Lee. Deram uma camisa do clube para a torcedora ilustre, conseguida com um anônimo no meio da plateia. Ficou uma imagem eterna, enquanto cantavam a música “Vote em Mim”.

Dias depois, Rita Lee retribuiu a visita. Esteve presente nas arquibancadas do Morumbi para a finalíssima contra o São Paulo. Casagrande anotou o gol que selou o título estadual e o batizou de “Gol Rita Lee” para homenageá-la. Meses depois, Sócrates recebeu das mãos da “madrinha” o prêmio de melhor jogador do futebol brasileiro em 1982. Ao lado de Wladimir, Casão e Doutor voltariam a se unir com Rita Lee nos palanques da campanha pelas Diretas Já em 1984. Ficou uma amizade além da bola, na luta pela redemocratização do país.

“O Corinthians é a maior banda de rock'n'roll de todos os tempos. Pense naquele time com você [Casagrande], o Magrão, o Wlá. Vocês eram revolucionários, estilo rock'n'roll, certo?”, afirmaria Rita Lee, em 2002. “Vocês mudaram o estereótipo do jogador de futebol: acomodado e alienado. Vocês tinham atitude e, para mim, o rock é isso”. O carinho com Casagrande rendeu inclusive um telegrama ao jogador quando ele foi detido pela polícia, em 1983, por porte de cocaína – uma acusação da qual foi absolvido tempos depois, por falta de provas. Segundo a cantora, ela quis ter a mesma atitude de apoio que ganhou de outra corintiana, Elis Regina, quando foi presa pela ditadura em 1976, por suposto porte de maconha. Rita estava grávida.

Rita Lee chegou até a participar de transmissão de jogo do Corinthians na rádio, ao lado do amigo Osmar Santos. Quando tinha oportunidade, falava sobre o clube em suas entrevistas e dava pitacos nos cadernos de esportes dos jornais paulistas. O coração alvinegro era parte inerente da cantora, numa paixão tão viva e que também reafirmava como as mulheres tinham seu lugar nas arquibancadas. Mais recentemente, Rita Lee até se envolveu em discussões sobre a construção da Arena Corinthians. Usou palavras chulas para se referir a Itaquera, algo que reconheceu como erro e pediu desculpas. Mas não negou sua preocupação com a “roubalheira sem tamanho” que o estádio poderia desencadear.

Em 1998, Rita Lee já havia feito uma música em que criticava a alienação ao redor do futebol. Em “M Te Vê”, a compositora comparava a empolgação com a possível conquista do penta e a falta de interesse com as eleições: “Quem M Te Vê / Quem M Te Viu / No final dos anos 90 / O Brasil tem um pé no penta / O outro em Chernobyl / A gente explode se for campeão / Depois se fode na eleição / A gente perde a Copa e aprende / A eleger quem é honesto e competente / Já dizia o General De Gaulle / Este país não é sério / Mais vale um craque de gol / Que dois de araque no Ministério / Mas que mistério / Quem quer trocar a Copa do Mundo / Por um Brasil sem vagabundos / Chove chuva na terra do sol / Chove cartola no futebol / Fica combinado então / Se a bola no pé deixar na mão / Que vantagem Gérson vai levar / É nas urnas que eu vou me vingar, porque eu vou me vingar”. Rita, por mais que fosse fanática pelo Corinthians, compreendia como o futebol poderia ser uma janela aberta a outras discussões – o que ela fez durante toda a vida.

Nesta terça-feira, diante da notícia da morte de Rita Lee aos 75 anos, diversos clubes brasileiros manifestaram suas condolências. Mesmo tão corintiana, a Rainha do Rock demonstrava apreço a outros clubes. Chegou a ser nomeada consulesa cultural do Internacional, com diversas cenas de carinho com os colorados, e também recebeu o “Galo de Prata”, a maior honraria do Atlético Mineiro, ao declarar sua simpatia pelo clube diante de ninguém menos que Dadá Maravilha. O Corinthians, no entanto, podia exaltar uma relação tão especial e profunda com a cantora. Dentre os tantos simbolismos ao redor da paulistana, também está o corintianismo. Como ela mesmo dizia, o branco e o preto fizeram parte de sua vida desde sempre – e ficará por todo o sempre.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
Botão Voltar ao topo