Brasil

O centenário de Biguá, símbolo de raça no Flamengo tricampeão dos anos 1940

Historicamente, a torcida do Flamengo sempre valorizou e teve carinho especial pelos jogadores valentes, aguerridos, que lutam e suam a camisa durante os 90 minutos como se fossem representantes dela em campo. Nos anos 1940, esse lugar na idolatria era ocupado por Biguá, lateral-direito do time tricampeão carioca em 1942/43/44. Numa equipe repleta de jogadores elegantes e de talento exuberante como Domingos da Guia, Jayme de Almeida, Zizinho e Vevé, o paranaense que completaria 100 anos nesta segunda simbolizava a raça, a fibra, a dedicação incondicional. Por isso ele seria amplamente considerado o maior da história do clube na posição até o surgimento de Leandro, quatro décadas depois.

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O índio que voava

As enciclopédias de aves registram uma espécie bastante comum encontrada na América Latina, vivendo às margens de grandes rios e encostas marítimas, de pele de tonalidade escura, bastante ligeira ao mergulhar nas águas em busca de peixes e que, quando da incubação, possui dois penachos na cabeça. A esses pássaros dão o nome de biguá. Baixinho (1,62 metro, segundo os registros), rápido, de pele bem morena como um índio e ostentando um ligeiro topete para o alto, o garoto Moacir Cordeiro logo recebeu o nome do pássaro como apelido quando se profissionalizou como jogador de futebol no Savóia, clube curitibano fundado por italianos e com elenco composto majoritariamente por atletas de pele muito clara.

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Nascido na cidade de Iraty, sul do Paraná, em 22 de março de 1921, Biguá começou a jogar nos juvenis do Athletico Paranaense, mas dentro de pouco tempo já estava no Savóia, clube que logo seria rebatizado Água Verde, depois Pinheiros e que, em 1989, uniria-se ao Colorado para fundar o Paraná Clube. Aos 20 anos, trazido para o futebol carioca por um militar da aeronáutica, Biguá bateu primeiro à porta do America e acabou rejeitado pelo porte e pela altura. Para a sorte do Flamengo, veio aportar na Gávea com sucesso quase instantâneo.

Depois de conquistar, com um time experiente, o título carioca de 1939 quebrando um jejum de 12 anos (seu maior no Campeonato Carioca), o Flamengo se reformulava para iniciar um histórico tricampeonato em 1942. Zizinho estreara nos profissionais nos últimos dias de 1939. E em 1941 debutariam Jayme de Almeida (abril), Pirillo (maio), Vevé (junho), Biguá (outubro) e Perácio (dezembro), com o goleiro Jurandyr chegando no ano seguinte. Entre os remanescentes de 1939, havia Domingos da Guia, Newton Canegal e os argentinos Volante e Valido.

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Foi também nesse ano de 1941 que o técnico Flávio Costa decidiu adotar um novo sistema tático, uma adaptação do WM europeu ainda praticamente inédito no Brasil, onde o velho 2-3-5 ainda era, dominante. A chamada “diagonal” mantinha os três zagueiros do WM, mas mexia na formação do meio-campo: no lugar do quadrado formado pelos dois médios defensivos e dois meias armadores do esquema original, havia um losango um pouco torto, o que conferia características bastante próprias às posições e aos jogadores que as ocupavam.

Inicialmente, para a função de zagueiro lateral direito (um dos três defensores), Flávio Costa tinha de recorrer ao improvisado Jocelyno, um veterano médio que, embora fizesse boas partidas, não era o nome ideal para a posição. Quando Biguá finalmente entrou no time, na partida contra o Madureira em Conselheiro Galvão, no dia 26 de outubro, reta final do Carioca, foi para não sair mais. A grande atuação mostrou que o “índio” (como o apelidou Ary Barroso) seria não só a solução do problema como uma das grandes revelações da temporada seguinte.

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A “sensação” de 1942

Não deu outra. Em março de 1942, o Flamengo foi a São Paulo disputar o torneio Quinela de Ouro com o Fluminense e o Trio de Ferro paulistano. Não levou o caneco, mas voltou invicto, com uma vitória e três empates. E Biguá assombrou a crônica esportiva local. Além da grande desenvoltura nos desarmes e bloqueios de cruzamentos dos pontas-esquerdas que enfrentava e da rapidez com que ganhava as jogadas e se mandava para o ataque (algo raro para jogadores da posição da época, essencialmente defensores), o jogador chamava a atenção pela raça.

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Não foram poucas as vezes em que se viu Biguá terminar um jogo com a camisa rubro-negra empapada de suor, de lama ou de sangue. Era de uma dedicação admirável. Para ele, era como se a partida da vez, diante de qualquer adversário, fosse sua última. Biguá era todo valentia, todo coração. Com esses predicados, rapidamente tornou-se ídolo absoluto da torcida do Flamengo. E respeitado pelas dos adversários. Como registrou, em abril de 1942, a revista Esporte Ilustrado na goleada do Flamengo por 6 a 0 sobre o Canto do Rio em Laranjeiras.

O Flamengo de 1942

“O quadro social do Fluminense torceu para o Canto do Rio, mas bateu palmas para Biguá. E si os tricolores bateram palmas ao ‘bugrezinho’, calculem agora, vocês, o contentamento da torcida rubro-negra ao vê-lo correr como uma flecha, ajudando o Domingos, marcando Vadinho e ainda shootando ao arco com uma força tremenda”, publicou a revista na grafia da época sobre aquela que era a partida de estreia do Flamengo no Campeonato Carioca. E o texto ainda prosseguia, saboroso, registrando os comentários entreouvidos nas arquibancadas.

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“E as expressões choviam de todos os lados: ‘O índio é infernal!’, ‘Que garoto atrevido!’, ‘E ainda falam em Jocelyno!’, ‘Sim, senhor, os cronistas de São Paulo disseram uma verdade!’… Antes que a pelota chegasse ao flanco direito do campo do Flamengo, já se gritava em côro: ‘Biguá! Biguá! Biguá!'”. Seis meses mais tarde, naquele mesmo estádio, o garoto paranaense entrava de vez para a história do Flamengo ao ajudar o time a conquistar o título carioca – e dar a partida para o tricampeonato – com um empate em 1 a 1 diante do Fluminense.

Foi um título obtido em grande parte graças a uma sequência memorável de 15 vitórias que atravessou o segundo e o terceiro turnos do campeonato, interrompida apenas no jogo do título. Ao todo, foram 20 triunfos, cinco empates e apenas duas derrotas. De faixa no peito, o Flamengo voltaria ao Pacaembu para Biguá impressionar um pouco mais a crítica bandeirante: no duelo dos campeões de 1942, o Flamengo bateu o Palmeiras por 2 a 1. Depois fez 4 a 2 no Corinthians e encerrou o giro com um empate em 3 a 3 diante do São Paulo.

Em 1943, o bicampeonato

No ano seguinte veio o bi carioca, com a campanha rubro-negra ainda mais hegemônica: 11 vitórias, seis empates e apenas uma derrota, para o America, curiosamente na única partida em que Biguá não esteve em campo. Outro dado digno de nota daquele torneio foi a chegada do centromédio (ou volante, nos termos de hoje) paraguaio Modesto Bria, a cinco rodadas do fim da competição. Estava enfim formada a fabulosa linha média Biguá-Bria-Jayme, histórica, das maiores do futebol brasileiro em todos os tempos.

Biguá, Bria e Jayme

O título de 1943 também foi marcado por algumas goleadas. Nos dois jogos contra o Botafogo, vitórias por 4 a 1 em General Severiano e 4 a 2 na Gávea. Na penúltima rodada, vieram os 6 a 2 diante de um fortíssimo Vasco de Rafanelli, Djalma, Isaías, Ademir, Lelé e Chico, embrião do time que logo viria a ser conhecido como “Expresso da Vitória”. Por fim, para sacramentar a conquista, o Flamengo aplicou um 5 a 0 no Bangu na Gávea, para não deixar dúvidas de seu domínio no futebol carioca. Biguá jogou em todas essas partidas.

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Contra o vascaíno Chico, aliás, Biguá fez duelos históricos no futebol carioca, que eram acompanhados com entusiasmo até mesmo por torcedores de outros clubes. E eram sempre destaque nos jornais. “Hoje tem Chico versus Biguá”, dizia a manchete recorrente em dia de Flamengo x Vasco. O ponteiro vascaíno rememorou: “Eu tinha um drible certo e muita arrancada. Era fácil meu marcador ficar caído no chão. Mas a recuperação de Biguá era tão fantástica que, quando via, ele estava de novo na minha frente. Parecia de elástico”.

O Flamengo que fez 6×2 no Vasco em 1943

Um outro episódio na longa lista de confrontos entre a dupla revela a imagem de Biguá como um torcedor rubro-negro em campo: o dia em que um gol contra seu decidiu um clássico em favor do Vasco. Em São Januário, o chute de Chico explodiu no travessão e, no rebote, acertou a cabeça do lateral, que vinha na corrida, e tomou o rumo das redes. Diz a lenda que, de tão furioso com a falta de sorte e estirado no gramado, o “índio” arrancava tufos de grama e comia. O desfecho da história, porém, também diz muito sobre seu cartaz com a torcida.

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“No final, eu não sabia como deixar o campo. No vestiário, os companheiros procurando me consolar. Eu só pensava na hora de sair e encarar nossa torcida. Queria que o mundo acabasse. Disse que não ia sair. Aí veio [o escritor e torcedor rubro-negro] José Lins do Rego e disse: ‘Você vai sair comigo, Biguá’. Saímos juntos e, quando vi, estava no meio da torcida do Flamengo, e todos gritando ‘Biguá, Biguá, Biguá’. Fui carregado para fora do estádio e confesso que chorava como um menino”, relembrou em depoimento de 1988.

O Flamengo de 1944

O rico futebol paulista bem que tentou pôr fim ao duelo. No começo de 1944, Domingos da Guia, que tinha acabado de sair bicampeão da Gávea rumo ao Corinthians, recomendou a contratação de Biguá. Alfredo Trindade, presidente corintiano, veio ao Rio e fez proposta fabulosa ao jogador: pagava o dobro do que ele ganhava no Flamengo, mais um apartamento em São Paulo. Biguá escutou, ponderou e lançou a pergunta que valeu por uma resposta definitiva: “Mas, e quando o Corinthians jogar contra o Flamengo? Como é que eu fico?”. Fim de papo.

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Biguá ficou e foi tricampeão carioca, marcando inclusive seu primeiro gol em jogos de competição pelo clube, abrindo a goleada de 4 a 1 sobre o Botafogo no primeiro turno. Mas aquele foi o campeonato mais difícil dos três. Os rivais – o Vasco, em especial – estavam mais fortes. E o Fla enfrentou uma série de provações, dentro e fora de campo. Perdeu jogadores antes e ao longo do torneio, suportou humilhações, quase foi impedido de jogar em seu estádio e ainda precisou escalar, na partida decisiva contra os cruzmaltinos na Gávea, jogadores sem a menor condição física, adoentados. Mas foi campeão na raça, bem ao estilo Biguá.

Na Seleção

Em reconhecimento às três grandes temporadas que fez com o Flamengo, Biguá chegou à seleção brasileira no início de 1945, disputando o Campeonato Sul-Americano no Chile juntamente com uma constelação de craques do nosso futebol – inclusive muitos rubro-negros. A “linha média”, como se escalava na época, contava, por exemplo, com Biguá e Jayme de Almeida. E na impossibilidade de convocação do paraguaio Bria, entravam Ruy, do São Paulo, ou Danilo Alvim, do America (e futuro Vasco). Era um escrete fortíssimo.

Biguá, Danilo e Jayme na Seleção

O Brasil venceu cinco de suas seis partidas: fez 3 a 0 na Colômbia, 2 a 0 na Bolívia, impôs um categórico 3 a 0 ao Uruguai e um estrondoso 9 a 2 ao Equador, batendo ainda o anfitrião Chile por 1 a 0. Mas uma derrota por 3 a 1 para a Argentina na quarta partida tirou o título. Biguá, no entanto, teve atuação irrepreensível, anulando o ponta-esquerda Félix Loustau, do River Plate, verdadeira lenda do futebol portenho, que afirmaria em entrevista de 1946: “Biguá foi meu melhor marcador. Jogava duro sim, mas comigo sempre foi muito leal”.

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A declaração foi feita quando o ponteiro estranhou a ausência de Biguá da seleção brasileira que disputaria o Sul-Americano daquele ano. O motivo foi um grave problema ósseo em um dos calcanhares que, segundo os médicos, poderia encerrar sua carreira. Mas seis meses depois, lá estava o miúdo gigante da lateral de volta aos gramados, com a eficiência e a valentia de sempre. Nada de mais para quem anos antes já havia superado um resultado de exame cardíaco que diagnosticara um certo “sopro sistológico”, o qual poderia impedi-lo de jogar.

A Seleção de 1945

Pelos anos seguintes não voltaria a levantar títulos pelo clube, mas estaria presente em algumas grandes partidas do Flamengo no período, como a vitória categórica sobre o Arsenal na vinda dos ingleses ao Rio em 1949, a primeira excursão rubro-negra à Europa (Suécia, Dinamarca, França e Portugal) em 1951 e o triunfo que pôs fim aos seis anos de jejum de vitórias sobre o Vasco, no mesmo ano. Na reta final da carreira demonstraria ainda grande versatilidade, atuando por um tempo na ponta-direita e depois como zagueiro por aquele lado.

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O que nunca mudou foi a garra, a vontade com que defendia as cores rubro-negras e o que o tornava totalmente identificado com a torcida. “Ídolo foi o Biguá”, disse seu velho companheiro Bria em entrevista de 1988, “era quem sacudia a galera”. Em quase 12 anos vestindo a camisa do Flamengo, foram 388 partidas e sete gols pelo clube. Até o surgimento de outro lateral-direito de alma incontestavelmente rubro-negra – Leandro, no fim dos anos 70 -, o “índio” era considerado por unanimidade, e com inteira justiça, o maior da posição da história do clube.

A despedida

Em 20 de janeiro de 1954 (dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro), o Flamengo adentrou o gramado do Maracanã para enfrentar o Botafogo, em partida pela última rodada do terceiro turno do Campeonato Carioca de 1953. O título já estava garantido, assim como as faixas já haviam sido entregues antes da partida. Mas mesmo assim o Rubro-Negro venceu por 1 a 0, gol do meia Rubens, o “Doutor Rúbis”. Além daquela cerimônia, uma outra, mais sentida, emocionou o maior palco do futebol brasileiro.

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Biguá, 32 anos, subiu as escadas que levavam ao gramado com o time, chutou uma bola para a geral, deu a volta olímpica sob aplausos, descalçou as chuteiras e as entregou a um garoto dos juvenis, um volante promissor chamado Carlinhos (que repetiria o gesto em 1970 com outro jovem chamado Zico). Ao descer para os vestiários encontrou o dirigente alvinegro Carlito Rocha, que o abraçou e comentou: “Pena que no futebol haja poucos iguais a você”. De fato. Biguá – que morreu em 9 de janeiro de 1989, aos 67 anos – era de um tempo que não volta mais.

Além de colaborações periódicas, quinzenalmente o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas. Para visualizar o arquivo, clique aqui. Confira o trabalho de Emmanuel do Valle também no Flamengo Alternativo e no It’s A Goal.

Foto de Emmanuel do Valle

Emmanuel do Valle

Além de colaborações periódicas, quinzenalmente o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas.
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