Brasil

O amor e o futebol longe de casa: A Copa dos Refugiados e Imigrantes

Desde 2014, a Copa dos Refugiados e Imigrantes é palco para confraternização e integração entre povos e culturas em diferentes estados do Brasil

* Por Gabriele Koga e Rafael Canetti, da Jornalismo Júnior ECA-USP

Tentar recomeçar a vida em outro lugar e deixar tudo para trás. Desafios. Incertezas. Novas culturas. Diferentes idiomas. Adaptar-se. Essas são apenas algumas das dificuldades enfrentadas por 82,4 milhões de pessoas, segundo o relatório Tendências Globais, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), divulgado em junho de 2021.

A migração forçada é uma pauta relevante na atualidade. No Brasil, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, 60 mil pessoas em situação de refúgio no território nacional.  Entre 2011 e 2020, o país com o maior número de refugiados reconhecidos no território brasileiro era a Venezuela (46.412), seguido da Síria (3.594) e do Congo (1.050).

Refugiados e imigrantes podem sofrer com a xenofobia, que se expressa pela aversão ao diferente e pelos temores dos nativos com a competição no mercado de trabalho, o que tende a resultar em uma visão social estereotipada e pejorativa. Assim, em muitos casos são desconsiderados a humanidade das populações estrangeiras e todo acréscimo sociocultural potencial delas. O futebol, praticado na Copa dos Refugiados e Imigrantes, assume uma demonstração de resistência a qualquer forma aversão. Aqui, o esporte combate as formas de preconceito com acolhimento e integração. São estabelecidos laços sociais entre nativos e estrangeiros, valorizando as memórias e a união entre os povos adventícios. 

Em entrevista à Jornalismo Júnior, , fala sobre os desafios para a organização do evento, a importância do esporte como mecanismo de integração social e suas ambições para as futuras competições.

Etapa da Copa dos Refugiados e Imigrantes no Estádio de Laranjeiras. [Imagem: Mailson Santana / FFC]

A IMPORTÂNCIA DA COPA

A Copa dos Refugiados e Imigrantes surgiu em 2014, em São Paulo, como iniciativa voluntária da ONG África do Coração. O , agência da Organização das Nações Unidas (ONU) especializada no reassentamento das pessoas em situação de refúgio, propondo soluções duradouras voltadas à regularização e normatização de suas vidas. 

O objetivo do campeonato é chamar atenção da mídia e da sociedade para a causa migratória por meio do futebol. “Não queremos que o brasileiro esteja jogando contra a gente. Nós queremos o brasileiro torcendo por nós, queremos que o brasileiro ofereça o campo, a bola. A gente sabe fazer gol, você pode deixar a gente fazer gol? Você pode escolher o time que quiser, só torça por nós”, afirma Jarour.

O evento envolve imigrantes e refugiados tanto em campo quanto na organização. A diferença entre os dois grupos está na forma com que a migração aconteceu: enquanto os imigrantes costumam buscar outro país por melhores condições de vida e trabalho, os refugiados são aqueles que migram por situações que impõem riscos às suas vidas. É uma forma de “fuga”, pois deixam seu país de origem por temor de perseguições pela raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, bem como violações dos direitos humanos.

No processo de mudança, a adaptação e a inclusão à nova comunidade se mostram delicados. A existência de outras culturas, idiomas, locais e pessoas representam obstáculos. A integração social é um processo adaptativo de transformação da identidade original ao contexto estrangeiro. Ocorre uma fusão cultural para a adequação ao novo país. “A nossa identidade é muito cara, como se fosse sangue, está dentro de você. O que fazemos é uma adaptação, abrir mão de princípios e criar uma identidade brasileira’’, afirma o ativista.

Entretanto, essa nova identidade não substitui a essência individual. A tem como enfoque a preservação da identidade de seus participantes. Ao longo do processo adaptativo, os organizadores priorizam o contato de pessoas de mesmas comunidades. “É uma ideia para unir, em primeiro lugar, as nacionalidades, conhecer outras pessoas que são do próprio país delas. Se eu cheguei da Síria ao Brasil, vou conhecer outros sírios. É a união entre as comunidades”.

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ESTRUTURA DA COPA

A primeira edição da Copa dos Refugiados e Imigrantes ocorreu em 2014. Jean Katumba, engenheiro que buscou refúgio em São Paulo após sofrer ameaças de morte e perseguição política em seu país, a República Democrática do Congo, fundou a ONG África do Coração,  a instituição que deu início à organização da competição e também se propõe a acolher refugiados na cidade, proporcionando um suporte adequado aos necessitados.

O evento faz com que a paixão pelo futebol, presente em diversas nacionalidades, funcione como mecanismo de integração para a comunidade migrante, que encontra a esperança de recomeçar. 

Em 2014, a competição contou com 200 participantes, de 16 países, e todas as equipes foram formadas por refugiados ou solicitantes de refúgio que vivem no Brasil. Os jogos aconteceram na capital paulista e a final ocorreu entre as seleções de Camarões e Nigéria. Com o placar empatado em 3 a 3, a decisão foi levada aos pênaltis e os nigerianos sagraram-se campeões.

Com o apoio da Cáritas e a orientação de setores das Nações Unidas, a organização e a divulgação do campeonato foram ampliadas. Em  2019, os atletas formaram as seleções de Benin, Colômbia, Coreia do Sul, Líbano, Mali, Gâmbia, Guiné-Bissau, Tanzânia, Venezuela, Camarões, República Democrática do Congo, Togo, Haiti, Nigéria, Angola e Níger.

Com o tema “Reserve um minuto para ouvir uma pessoa que deixou o seu país”, a sexta edição ocorreu em diferentes estados do Brasil: Paraná, Rio Grande do Sul, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Os jogos eliminatórios da etapa paulista iniciaram no sábado, 5 de outubro e a final foi realizada no estádio do Pacaembu, no dia 20 do mesmo mês. Depois da etapa de São Paulo, os campeões de cada região se enfrentaram em um torneio nacional no Rio de Janeiro.

Integração entre os participantes no Estádio de Laranjeiras. [Imagem: Mailson Santana / FFC]
Atualmente, o campeonato envolve cerca de 1500 pessoas. A divisão dos times segue a seguinte lógica: os atletas são separados por nacionalidades e os estados em que moram. Pode existir um país sendo representado por vários estados diferentes. Os nativos torcem para os imigrantes e refugiados que representam a sua própria comunidade regional.

Há um sentimento de aproximação entre os estrangeiros e a sociedade local, que é capaz de limitar o sentimento de rivalidade que toma conta dessa relação, por exemplo. Jarour exemplifica essa ideia: ”Na Argentina, tem um time brasileiro de imigrantes. Em Curitiba, tem o time da Argentina. Os brasileiros vão torcer para os argentinos”.

Além disso, a Copa dos Refugiados e Imigrantes pode evidenciar os talentos dos seus participantes ao resto da sociedade. Um dos objetivos é que os imigrantes consigam dar sequência à vida profissional no novo local. Essa inclusão integra até mesmo profissionais do futebol, com uma oportunidade para eles darem sequência na carreira esportiva.  “Nós realizamos inclusão social e trabalhista por meio da Copa. A gente não pagou nada, mídia espontânea nacional e internacional. Também temos profissionais, e nós queremos chamar atenção dos clubes para seguir a carreira deles”, relata Jarour.

A prática esportiva não está presente somente como um mecanismo de inclusão social. O futebol também proporciona um retorno de lembranças afetivas das suas comunidades aos participantes. Para o ativista, a prática esportiva é um refúgio e um renascimento. É um encontro que deixa lembrar que esse momento aconteceu lá de onde vieram.

O zagueiro Kinito durante treino da Angola, no Aterro do Flamengo. [Imagem: Marcos de Paula / Prefeitura do Rio]
O acolhimento e a profissionalização de refugiados e imigrantes utilizando o esporte já é algo comum em alguns países e organizações. Desde 2016, a equipe de refugiados disputa as Olimpíadas. Essa equipe surgiu como forma de conscientizar a pauta migratória em escala global, além de trazer esperança a todos refugiados. Frente a um cenário de seleções cada vez mais diversificadas, dentro das quatro linhas exemplos não faltam. Jogador do Bayern de Munique, Alphonso Davies nasceu em um campo de refugiados em Gana e seus pais são liberianos que fugiram da guerra civil. O Canadá acolheu toda a família e hoje tem Davies como o maior destaque da seleção masculina de futebol. Outro exemplo: ao se classificar para a Copa de 2014, os jogadores da seleção da  Bósnia e Herzegovina deram orgulho para sua população traumatizada por genocídios e guerras. Dos 23 jogadores convocados para o torneio, 14 jogadores eram migrantes ou filhos de refugiados. 

PANDEMIA E FUTURO

Durante a pandemia do coronavírus, as competições precisaram ser suspensas. Como o projeto da Copa dos Refugiados e Imigrantes é uma iniciativa voluntária, não houve uma arrecadação de recursos suficientes para a realização de todos os protocolos de biossegurança, a exemplo dos testes RT-PCR. “Não temos recursos para fazer teste de corona. Se a gente tivesse estrutura financeira, organizaria. A gente não tem arena disponível, cobertura, teste de corona a toda hora”, aponta Jarour.

Todavia, as expectativas para o futuro são melhores. “Nosso sonho é que esse evento seja internacional. A Copa do Mundo carrega título, dinheiro, fama e ouro. Nossa copa carrega o título humano. Quem tem amor pelo próximo, com certeza, vai fazer questão de ir.” 

Jarour conta que ambiciona levar o evento para outros países a fim de conscientizar mais pessoas a respeito da causa migratória e conseguir mais espaço na sociedade e na mídia para tal. Nesse contexto, ele relata que Argentina e Inglaterra são opções viáveis, pois já conseguiu contatar a Universidade de Bristol e outras entidades em Buenos Aires para a realização das competições.

A Copa dos Refugiados e Imigrantes  revela um projeto de integração de povos e culturas por meio do esporte. “Minha religião é o amor, minha raça é a humanidade, minha pátria é o mundo. Sou cidadão do mundo e somos todos filhos de uma mesma terra”, finaliza o vice-presidente da ONG África do Coração.

“Duas coisas levam o coração humano: o amor e o futebol”

Abdulbaset Jarour

Foto de Jornalismo Júnior ECA-USP

Jornalismo Júnior ECA-USP

A Jornalismo Júnior é uma empresa júnior formada por alunos de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) que produz conteúdo que vai desde a área de esportes até o cinema, entretenimento e a ciência.
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