Brasil

É preciso relembrar o jogador revolucionário que Zagallo foi

Zagallo teve um papel essencial no bicampeonato mundial em 1958 e 1962, preenchendo o campo e desempenhando uma função à frente de seu tempo

  • Texto originalmente publicado no aniversário de 90 anos de Zagallo, em 9 de agosto de 2021, e adaptado

A longeva carreira de treinador, pela qual várias gerações de torcedores o conhecem, aliada ao fato de ter jogado numa era de lendas do futebol brasileiro, de certa forma eclipsou a carreira de Zagallo dentro das quatro linhas. Porém, o ex-ponta-esquerda foi um jogador singular em seu tempo. Além de integrar com eficiência, dinamismo e talento dois esquadrões históricos do futebol carioca e brasileiro (o Flamengo tri estadual em 1953/54/55 e o Botafogo bi em 1961/62), teve papel tático fundamental nas seleções campeãs mundiais em 1958 e 1962.

Nascido em Maceió em 9 de agosto de 1931, Mário Jorge Lobo Zagallo era um bebê de oito meses quando veio morar no Rio de Janeiro após a transferência profissional de seu pai para a então capital federal. Criado na Tijuca, na rua Professor Gabizo, a poucos metros de onde mais tarde seria erguido o Maracanã, o garoto Zagallo era perfeitamente integrado no bairro de classe média típico da Zona Norte carioca. E praticava vários esportes, entre eles o tênis de mesa, modalidade na qual chegou a vice-campeão da cidade.

Seu pai, Aroldo, tornou-se sócio proprietário e conselheiro do America e levava com frequência o filho aos jogos no antigo estádio da rua Campos Sales, mas não gostava da ideia de Mário Jorge se tornar jogador de futebol. Mesmo assim, o garoto participava de peladas no bairro e chegou a jogar com o time de sua rua no Maracanã antes da construção do estádio, quando só havia o terreno limpo após a extinção do Derby Club. E após passar por alguns clubes menores, juntou-se enfim à equipe de base do America em 1947.

Zagallo na ponta-esquerda do time juvenil do America

Destaque dos juvenis rubros, Zagallo teria certamente e tão logo se tornado jogador da equipe profissional do America não fosse um desentendimento com os dirigentes, que lhe negaram uma ajuda de custo como atleta amador. Foi quando apareceu o Flamengo, disposto a leva-lo para seus juvenis. Corria o ano de 1950, o da inauguração do Maracanã e da derrota do Brasil para o Uruguai na decisão da Copa do Mundo – a qual Zagallo, aos 18 anos, assistiu de dentro do estádio como soldado da Polícia do Exército.

Transferido para o Flamengo, Zagallo seria comandado por Jayme de Almeida, antigo craque do clube e da Seleção Brasileira que havia acabado de pendurar as chuteiras e iniciar a carreira de treinador na base. Com facilidade para atuar tanto na meia-esquerda quanto na ponta-esquerda, Zagallo optou pela última, ciente de que teria mais chances de vingar. E logo foi chamado para a seleção carioca da categoria, onde atuaria com dois outros futuros campeões mundiais: o ponta Joel, colega do Fla, e o zagueiro Zózimo, do Bangu.

Com o escrete da capital federal, foi campeão brasileiro marcando de cabeça o gol do título sobre os paulistas. E logo começou a aparecer no time de aspirantes do Flamengo, disputando torneios como o Municipal, o Extra e o Início – nos dois últimos, comandado pelo técnico do time principal, Flávio Costa – entre 1951 e 1952. Mas a grande chance de ter sequência na equipe de cima veio só após a saída do treinador, que acertou com o Vasco na virada de 1952 para 1953. Em seu lugar ficou, de interino, Jayme de Almeida.

No Flamengo, a reinvenção como jogador

O Campeonato Carioca de 1952 só terminou no fim de janeiro do ano seguinte, mas nas últimas rodadas o Flamengo tinha apenas chances remotas de título. Sem Flávio Costa, o time ficou ainda desfalcado temporariamente do ponteiro Esquerdinha, que se casara no fim do ano anterior e ganhara licença do clube. Mas Jayme de Almeida, conhecedor de Zagallo desde a base, apostou no garoto para as últimas partidas e também para os amistosos seguintes. Até a chegada à Gávea do homem que o transformaria como jogador.

Até aquele momento, o ponta-esquerda Zagallo era um jogador típico da posição. Ágil, driblador, buscando a linha de fundo para os cruzamentos. Com o paraguaio Fleitas Solich, treinador que acabara de conduzir a seleção guarani ao título sul-americano no início daquele ano, ele mudaria radicalmente de perfil. Nas palavras do historiador e pesquisador Ivan Soter, que em seu livro “Quando a Bola Era Redonda” escreveu uma crônica sobre o jogador, “Solich transformou Zagallo de jogador de bola em jogador de futebol”.

Nos treinos, o treinador paraguaio tinha o hábito de apitar interrompendo a atividade a cada vez que um jogador (como Zagallo) se excedia em firulas. Defensor de um futebol coletivo acima de individualidades, Solich percebeu, no entanto, algumas qualidades no jogo do ponta-esquerda, como sua operosidade e sua inteligência. E foi burilando seu estilo para transformá-lo em peça fundamental no histórico esquadrão rubro-negro que conquistaria um árduo, mas prestigioso tricampeonato carioca entre 1953 e 1955.

Inicialmente, porém, Zagallo ficou de fora do time: uma lesão sofrida num torneio em Salvador pouco antes da estreia de Solich o afastou por alguns meses, e o paraguaio preferiu manter o veterano Esquerdinha na posição. Na campanha vitoriosa no Carioca de 1953 o alagoano só jogou duas vezes. Mas foi só acabar aquela edição do torneio para ele ser alçado a titular na excursão europeia de abril e maio de 1954 e em seguida no Torneio Rio-São Paulo, apronto para o estadual, principal competição da temporada.

Ao todo, nas duas últimas campanhas do tri, em 1954 e 1955, Zagallo foi titular em 43 das 57 partidas e marcou sete gols. Mas sua contribuição não se resumia a isso. Como lembra Ivan Soter, o camisa 11 rubro-negro “era o armador pela esquerda, o desafogo da defesa, o idealizador dos contra-ataques, o ajudante do lateral Jordan na marcação a Garrincha. Trabalhava muito – e muito bem – nos noventa minutos de que dispunha”. Um jogador muito à frente de seu tempo, como era, aliás, aquele time de Solich.

O ataque do Flamengo com Zagallo

Mesmo com toda essa importância, Zagallo não era então um jogador badalado. Sua cota de sacrifício era desempenhada discretamente, sem alarde. Por isso causou tanto estranhamento – inclusive entre os próprios rubro-negros – quando, ao se despedir do futebol carioca, o árbitro italiano Diego di Leo (um dos vários juízes europeus contratados pela federação para apitar no campeonato no início daquela década) apontou o jogador do Flamengo como o melhor ponta-esquerda que vira atuar na cidade.

Outro episódio emblemático desse tratamento, também lembrado por Ivan Soter em sua crônica, aconteceu em 23 de março de 1958, antes da partida entre Flamengo e Palmeiras pelo Torneio Rio-São Paulo no Maracanã, que terminou em goleada rubro-negra por 6 a 2. Era a semana da convocação da Seleção para os amistosos preparatórios com vistas à Copa do Mundo da Suécia, e os fotógrafos reuniram os prováveis chamados para uma foto: os flamenguistas Joel, Moacir, Henrique e Dida e o palmeirense Mazzola.

Nessa hora, Zagallo estava em um canto do campo, fazendo embaixadas, concentrado no jogo. Até porque, para a ponta-esquerda já havia dois nomes tidos como certos: o santista Pepe e o são-paulino Canhoteiro. Mas Vicente Feola, que assumira o posto de técnico da Seleção no início daquele ano de 1958, era um bom observador. E pôde testemunhar (e se impressionar com) algumas das grandes exibições do Flamengo de Fleitas Solich na competição interestadual, que serviu para elaborar a lista de convocados.

Feola então decidiu relacionar Zagallo na lista inicial de 27 jogadores como uma terceira opção para a ponta-esquerda, representando ainda a possibilidade de variar de estilo, já que Pepe e Canhoteiro eram mais ofensivos: um de chute poderoso, outro de drible insinuante. Mas bastou o rubro-negro atuar pela primeira vez com a camisa canarinho, marcando dois gols nos 5 a 1 sobre o Paraguai em 4 de maio, em jogo pela Taça Osvaldo Cruz no Maracanã, para deixar claro que não estava ali só para fazer número.

Observado por Dida, Zagallo cabeceia para abrir o placar contra o Paraguai em sua estreia na Seleção

Foi ele quem abriu o placar logo aos 12 minutos, mergulhando para completar de cabeça um cruzamento de Dino Sani. Logo em seguida, Vavá marcou o segundo e, mais adiante, Dida anotou de letra o terceiro. Na etapa final o Paraguai diminuiu de pênalti, mas Pelé (que entrara no lugar de Dida) fez o quarto. E de novo Zagallo apareceu para encerrar a goleada: após uma combinação de Joel e Dino pela direita, o camisa 11 recebeu, dominou no peito e fuzilou o goleiro Mayeregger. E enfim vieram os elogios por seu desempenho.

A Manchete Esportiva destacou seu dia de artilheiro, sua combatividade (mencionando ainda o tanto que ele apanhou durante o jogo) e sua precisão nos passes, atribuindo nota 9 à sua atuação. Porém, no segundo jogo contra os paraguaios, no Pacaembu, Zagallo foi vaiado pelo público de São Paulo (previsivelmente, já que disputava posição com dois jogadores de clubes do estado) e saiu lesionado ainda no primeiro tempo no jogo em que o empate sem gols bastou para que o Brasil conquistasse a Taça Osvaldo Cruz.

Mas o ponta rubro-negro não desanimou: voltou ao time titular no amistoso diante da Bulgária no Maracanã e fez o passe para Dida abrir a goleada de 4 a 0. As ótimas atuações carimbaram seu passaporte para a Suécia, com Canhoteiro sobrando. No meio do caminho, Zagallo ainda fez mais um gol, o que fechou a vitória de 4 a 0 sobre a Internazionale em Milão. Em tese, chegava à Copa do Mundo como reserva de Pepe. Mas uma lesão do santista na reta final da preparação alçaria o ponta do Flamengo ao time titular.

O título mundial e a troca de camisa

“Antes de partirmos para a Suécia, fui obrigado a parar de ler jornal. Todos falavam que eu seria dispensado. Pepe e Canhoteiro seriam os escolhidos. Nunca desanimei, mas o meu nome figurava em todas as possíveis listas de dispensas que os jornais insistiam em publicar. Outros foram cortados e eu acabei ficando”, relembrou à Revista do Esporte em 1963. Zagallo ficou e recebeu um valioso conselho de Feola: “Jogue exatamente como você faz no Flamengo”, isto é, com o mesmo dinamismo, ajudando em todos os setores.

E Zagallo se revelou uma figura-chave de uma Seleção Brasileira que se apresentava na vanguarda tática do futebol mundial. O 4-2-4 do time de Feola – já conhecido por aqui no âmbito dos clubes, mas inovador no cenário internacional – era flexível o suficiente para se desdobrar num 4-3-3. E o principal responsável por essa flexibilidade era seu onipresente ponta-esquerda. Foi o seu recuo que permitiu, por exemplo, a arrancada de Nilton Santos ao ataque para marcar o segundo gol do Brasil contra a Áustria, na estreia.

Mas a apresentação de Zagallo naquela Copa que melhor sintetizou o que tempos depois viria a ser chamado de futebol total aconteceu na final contra a anfitriã Suécia. O primeiro lance crucial aconteceu aos 23 minutos do primeiro tempo, com a partida ainda empatada em 1 a 1: o chute do ponta-esquerda sueco Lennart Skoglund encobriu Gilmar e parecia tomar o rumo das redes, recolocando os donos da casa em vantagem. Mas Zagallo surgiu de onde menos se esperava para afastar a bola de cabeça em cima da linha.

A telefoto do lance em que Zagallo evita o gol sueco – Manchete Esportiva – 1958

No segundo tempo, o ponteiro-esquerdo brasileiro voltaria a ser fundamental ao anotar o quarto gol, o que praticamente liquidou a fatura. Zagallo pegou a sobra de um escanteio mal afastado pela defesa sueca, levou a melhor numa dividida e avançou para chutar de bico na saída do goleiro Kalle Svensson. Era sua redenção: na semifinal contra a França, um chute seu havia carimbado o travessão e quicado bem dentro da meta, mas o árbitro galês Benjamin Mervyn Griffiths fez que não viu e mandou a jogada seguir.

Agora, no entanto, não havia quem lhe tirasse o gol. E para selar a conquista seria ele, no último minuto, o autor do cruzamento na medida para o quinto gol brasileiro na cabeçada de Pelé. Em sua crônica para a Manchete Esportiva, Nelson Rodrigues resumia: “De Zagallo diremos apenas o seguinte: estava em todos os lugares ao mesmo tempo. De certa feita, foi até interessante. Zagallo salva um gol, sai com uma bola e, em seguida, aparecia lá na frente, lá na área adversária, desintegrando a defesa inimiga”.

Ao retornar da Suécia, seria a vez de encerrar outro ciclo. Seu contrato com o Flamengo estava perto do fim e desde antes do embarque para a Copa do Mundo as tratativas pela renovação já se mostravam complexas. Dono do próprio passe, Zagallo não concordava com os valores oferecidos pelo clube e acabou se indispondo com o presidente Hilton Santos, única pessoa na Gávea de quem manifestaria guardar mágoa. Valorizado pelo título mundial, apenas esperou as propostas, que logo começaram a chegar.

O primeiro a aparecer foi o Palmeiras oferecendo cerca de Cr$ 3,5 milhões, quantia expressiva para a época. Mas a perspectiva de mudar de cidade não enchia seus olhos, ainda mais pelo fato de sua esposa, professora federal, não conseguir transferência para São Paulo. Até que surgiu o Botafogo oferecendo valores mais baixos, mas viabilizando sua permanência no Rio de Janeiro. Assim, em 8 de julho, apenas nove dias após a conquista do título mundial com o Brasil, Zagallo assinava contrato com o clube alvinegro.

O que também mudou quase de imediato foi seu tratamento como jogador, como lembra Soter: “A glória transformou-se em fama. Passara a contar com o peso-pesado da imprensa carioca, que era botafoguense até a alma. Virou o ‘Formiguinha’. Enaltecido, acarinhado, reconhecido, enfim. Nascia um botafoguense desde criancinha”. Mas nem tudo foi tão fácil para o agora alvinegro Zagallo em seus primeiros tempos em General Severiano. A começar pela perda de seu pai, logo após a conquista da Copa do Mundo.

No fim de agosto, justamente no clássico diante do Flamengo, um de seus primeiros jogos com a camisa alvinegra, Zagallo se lesionou seriamente num choque com o antigo companheiro Jadir. Teve de extrair os meniscos do joelho esquerdo e passou oito meses afastado dos gramados. Pouco depois de voltar, no jogo de abertura do Torneio Rio-São Paulo de 1960, foi atingido pelo lateral Jorge, do America, num chute prensado em que a bola acertou seu pescoço. Fraturou uma vértebra cervical e ficou dois meses de colete.

Zagalo e Garrincha – Botafogo 1962

Enquanto isso, outros pontas mais jovens, ofensivos e em franca ascensão ameaçavam tomar-lhe o lugar no time: o campista Amarildo e o mineiro Neivaldo. Mas, assim que se restabeleceu, o campeão do mundo voltou a ocupar o posto que era seu – Amarildo foi remanejado para a ponta de lança, enquanto Neivaldo permaneceu mesmo como reserva das duas extremas. Com seu motor de volta, o Botafogo nadou de largas braçadas para conquistar o Campeonato Carioca de 1961 com duas rodadas de antecedência.

No Chile, a aclamação internacional

Aproximava-se a fase de preparação para a Copa do Mundo de 1962 e novamente Pepe parecia em vantagem na disputa pela titularidade da ponta-esquerda. O terceiro candidato é que era a novidade: o jovem Germano, do Flamengo, de apenas 20 anos. No primeiro semestre daquele ano do Mundial, o Brasil enfrentou Paraguai (pela Taça Osvaldo Cruz), Portugal e País de Gales, duas vezes cada, sempre com um jogo no Maracanã e outro no Pacaembu. Nestas seis partidas, o ponteiro santista foi titular em quatro.

Zagallo começou jogando as outras duas, ambas no Pacaembu contra portugueses e galeses. E, de novo, foi vaiado em ambas pelo público paulista, embora na segunda cumprisse uma atuação perfeita. Na lista final, a juventude de Germano (que logo em seguida seria vendido ao Milan) foi preterida pela experiência dos outros dois postulantes – Zagallo completaria 31 anos pouco após o Mundial e Pepe já havia feito 27. Mas na numeração, a camisa 11 de titular ficou com o santista. Zagallo seria o 21. Em tese, o reserva.

Eis que mais uma vez, e a menos de 20 dias da estreia no Chile, Pepe se lesionaria às vésperas da Copa, na partida contra os galeses no Maracanã, ainda que fosse mantido entre os 22 inscritos. Sem aquele que considerava seu titular da ponta-esquerda, o técnico Aymoré Moreira, substituto de Vicente Feola, instruiu Zagallo a jogar como se fosse Pepe, ou seja, ofensivamente, como um jogador agudo. Mas Zagallo decidiu por conta própria atuar como sempre fizera pela Seleção, dinâmico, aglutinando todos os setores.

E demonstrou estar certo, sendo o responsável pela coesão fundamental a uma equipe que tinha seus problemas. Basta dizer que só ele e Garrincha receberam elogios em todos os jogos. E que, à exceção das duas partidas contra a Tchecoslováquia, Zagallo participou de jogadas de gols em todos os outros jogos. Em seu livro “The Story Of The World Cup”, o renomado cronista inglês Brian Glanville escreveu que aquele Mundial considerado “a Copa de Garrincha” poderia muito bem ser chamado de “a Copa de Zagallo”.

Na obra, Glanville cita outra lenda da crônica esportiva europeia, o francês Jean-Philippe Réthacker, do diário L’Équipe e da revista France Football, que escreveu: “Não seria possível destacar o suficiente o papel-chave desempenhado por Zagallo na vitória brasileira. Um jogador ativo e corajoso, com muita percepção para efetuar um passe e para se posicionar em campo, preciso e dono de uma técnica variada. Zagallo foi certamente, com o tcheco Masopust, o mais inteligente jogador da Copa do Mundo de 1962”.

Em outra publicação, “The Puffing Book Of The World Cup”, Brian Glanville retomou seu ponto, argumentando que, com a lesão de Pelé no Chile e o desdobramento da formação 4-2-4 usada pelo Brasil num sistema 4-3-3, “Zagallo foi o jogador com a energia, a versatilidade e a habilidade que permitiram à equipe brasileira adaptar seu jogo com facilidade e eficiência. Além da técnica e do senso tático, o principal atributo de Zagallo era o preparo físico, e seu estilo incansável lhe rendeu o apelido de ‘Formiguinha’”.

No Mundial, Zagallo marcou o primeiro gol brasileiro mergulhando para escorar de cabeça um passe pelo alto de Pelé contra o México. Fez o cruzamento da esquerda para Amarildo empatar o difícil jogo com a Espanha. Bateu, de trivela, os escanteios para os gols de cabeça de Garrincha contra Inglaterra e Chile. E contra os anfitriões, ainda levantou na área a bola que resultou no gol de Garrincha abrindo o placar e fez o cruzamento na medida para Vavá cabecear no meio da defesa chilena, fechando o 4 a 2.

Aquele ano de 1962 ainda terminaria com outro bicampeonato para Zagallo, o do estadual pelo Botafogo. A equipe da Estrela Solitária teria começo oscilante no campeonato, mas deslancharia numa arrancada impressionante encerrada com a vitória de 3 a 0 sobre o Flamengo (que jogava pelo empate) na última rodada, com atuação demolidora de Garrincha. Aquele jogo representaria o ápice daquele esquadrão alvinegro, antes que o brilho de seus craques começasse aos poucos a se apagar.

Didi seguiria para o Sporting Cristal. Nilton Santos se aposentaria em 1964. Amarildo seria vendido ao Milan. Garrincha foi se tornando cada vez mais alheio ao jogo, sem a mesma alegria de antes. E o caso de Zagallo seria parecido. Numa entrevista à Revista do Esporte em 1963, declarava-se saturado de futebol pela rotina massacrante de jogos e viagens com o clube e com a Seleção. Chegou a pedir licença ao Botafogo para descansar a cabeça: “Vejo bola todo dia, quase a toda hora. A gente enjoa disso, vocês sabem”.

Era o prenúncio da retirada dos gramados. Fez seu último jogo pelo Brasil em 7 de junho de 1964, na goleada de 4 a 1 sobre Portugal no Maracanã pela Taça das Nações – por coincidência, o jogo de estreia de Jairzinho. Seu contrato com o Botafogo venceria no fim daquele ano e ele preferiu não renovar. Em vez disso, pretendia pendurar as chuteiras e iniciar a carreira de treinador nas categorias de base. E assim o fez. Só retornou aos gramados (a contragosto) para mais quatro jogos pelo Carioca no fim de 1965.

No ano seguinte, o Brasil tentaria o tri mundial na Inglaterra, mas sucumbiria ainda na primeira fase. A preparação desastrosa foi tida como a maior responsável pelo fiasco, mas havia problemas também dentro de campo: ao contrário de 1958 e 1962, desta vez a equipe novamente dirigida por Feola não contava com um ponteiro do perfil de Zagallo. E enquanto a maioria das seleções seguiam a evolução tática puxada pelo escrete canarinho, este retrocedia ao 4-2-4, com pontas abertos e meio-campo esvaziado.

O fato de esse problema tático ter sido ignorado em muitas discussões sobre aquela campanha (assim como a recomendação de Aymoré Moreira para que Zagallo “jogasse como Pepe” em 1962) revela como o Brasil pareceu não ter tido na época a dimensão do que havia criado, ou mesmo não ter dado a devida importância – ao contrário do resto do mundo. O que, com o tempo, serviu para apagar o impacto de Zagallo naquele time. Mas Ivan Soter, no desfecho de sua crônica, fez justiça ao ponta-esquerda:

“Zagallo foi um dos precursores do futebol total. Revolucionou a tática, sendo um dos responsáveis, dentro do terreno, pela modificação de 4-2-4 para 4-3-3. O futebol solidário, que aprendeu com Solich no Flamengo e que carregou para a Seleção, foi uma das marcas da formidável equipe campeã da Copa da Suécia. Como treinador era vaidoso, mas ao falar de seu desempenho como jogador era humilde, dizendo que nunca foi craque. Zagallo está enganado. Foi craque sim, e dos maiores”.

Foto de Emmanuel do Valle

Emmanuel do Valle

Além de colaborações periódicas, quinzenalmente o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas.
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