Brasil

No centenário de João Cabral de Melo Neto, um pouco de sua poesia também dedicada ao futebol

A poesia de João Cabral de Melo Neto representa uma riqueza à literatura brasileira. O diplomata pernambucano, nascido há exatos 100 anos, deixou um legado imenso. Seus poemas tinham um cuidado de artesão com as palavras e uma qualidade estética ímpar, assim como tantas vezes transmitiam uma forte mensagem sobre o Brasil. A obra-prima do recifense é “Morte e Vida Severina”, o retrato de um retirante que busca melhores condições de vida. E, como alguém ligado à cultura popular, o escritor também se dedicou um pouco ao futebol.

O futebol estava entre os lazeres preferidos de João Cabral de Melo Neto durante a juventude. O garoto chegou a defender as categorias de base do Santa Cruz e, aos 15 anos, foi campeão juvenil com os tricolores – como conta esta excelente reportagem do Globo Esporte. A carreira como volante, porém, não prosperou, muito por interferência de uma insistente dor de cabeça que o acompanharia no restante da vida. E por mais que defendesse o clube coral para agradar a mãe, torcedora fanática, isso não o impedia de aparecer nas arquibancadas da Ilha do Retiro. Vez ou outra, o jovem seguia o amigo Ariano Suassuna rumo aos jogos do Sport.

O coração de João Cabral de Melo Neto, todavia, não exibia as cores dos gigantes de pernambuco. O poeta era um dos raros torcedores do América local, pelo qual também atuou nas categorias de base. Ao longo de sua juventude, os alviverdes ainda brigavam por títulos e chegaram à sua última conquista estadual, a sexta, em 1944. Mas não foi o declínio do Periquito que afastou o escritor do futebol. Pelo contrário, ele mantinha o seu gosto pela bola bem tratada e pelos grandes craques. Assim como a sua poesia, o trabalho meticuloso dentro de campo valia o apreço do recifense.

“Ah, eu gosto de futebol! Mas, agora, como não vivo no Brasil, não vou a futebol.  A grande vantagem do futebol brasileiro é que é o único futebol que você assiste sem estar interessado na vitória de um clube. Você assiste porque é um espetáculo bonito. Com futebol europeu não acontece. Você não vê uma jogada maliciosa, não vê um gesto harmônico, não vê elegância. Só aquela correria. E correria não me interessa. Só consigo me interessar pelo futebol brasileiro. Há os que gostam de ver futebol porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o América. Ganha tão pouco… Então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo espetáculo”, declarou, em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, em 1986.

João Cabral de Melo Neto, além do mais, dedicou alguns poemas ao futebol – presentes em três de seus livros publicados a partir de 1975. “O torcedor do América F.C.” relata sua profissão de fé com o clube. “Ademir da Guia” e “A Ademir de Menezes” homenageiam os lendários craques. “Brasil 4 x Argentina 0”, “De um jogador brasileiro a um técnico espanhol” e “O futebol brasileiro evocado na Europa” exaltam a qualidade técnica dos atletas brasileiros, de maneira romântica e até um pouco utópica aos olhos atuais. Já “A Múmia” traz o lado surreal da poesia do pernambucano.

Os poemas de João Cabral de Melo Neto ao futebol podem ser lidos neste artigo do ótimo site Literatura na Arquibancada. Abaixo, reproduzimos um deles, “A Múmia”. Também vale conferir a crônica ‘Dezessete', de Roberto Vieira, que imagina uma carta de João ao primo Manuel Bandeira após o título do América no Pernambucano de 1944 – o último antes do jejum que perdura por quase 75 anos.

*****

A MÚMIA

Na Capelinha da Jaqueira
uma múmia sobrevivera.

A de Bento José da Costa
ou de alguma amante preposta?

Ela não fazia fantasma:
era mais bem alma gorada,

ovo encruado, infermentação,
que nunca pode assombração.

*

Caminho do Campo do América
se ensaiavam dribles em sua pedra.

Se imitavam chutes sem bola
na pedra anônima em que mora.

E fosse de dia ou de noite
nunca foi de acenar a foice,

nem com gesto armado de morte
acenar-se sequer, de chofre.

*

Na Capelinha da Jaqueira,
a múmia, amiga e companheira,

punha-se acima de quem joga:
nunca envergou a negra toga,

ridícula, de juiz de futebol,
de calças curtas como um sol

castrado, já antes do apito
epilético; é Meritíssimo.

*

Talvez porque a múmia era cega?
Nunca ela torceu pelo América.

Também nunca acendemos vela
para que ela, com suas trelas,

driblasse a defesa contrária,
o juiz, e até as arquibancadas,

e entrasse só no gol do Esporte,
num “gol de chapéu”, com a Morte.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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