No adeus a Boris Fausto, algumas passagens em que o historiador falou sobre futebol – uma de suas paixões
Um dos principais historiadores e acadêmicos do Brasil, Boris Fausto também era torcedor do Corinthians e aficionado por futebol

“Estou desencantado com o nível de mercantilização do futebol. Como vejo essa paixão, apesar de tudo? A paixão virou um fenômeno mundial. Porque pode ter marketing, mas tem a beleza do jogo, a sua simplicidade, alguma coisa de emoção, de paixão que o futebol preenche. A seleção brasileira vai jogar no Haiti e parecia que ali estavam chegando deuses. Para aquela população carente, ver o Brasil jogar preenche alguma coisa de emoção, de paixão. No caso do Brasil também é isso. Para mim é uma coisa que vem da infância. Agora que estou inevitavelmente no fim da vida a minha paixão pelo futebol voltou a ser igual àquela do menino de 12 anos que brigava na escola pelo Corinthians. Sempre fui uma pessoa racional, calculada, que cumpre seus compromissos, bom aluno, bom advogado (e espero que bom escritor): a irracionalidade do futebol faz um bem imenso. Quando você se vê, você é outro. E é muito bom”.
A declaração acima, dada em entrevista à revista Pesquisa FAPESP de fevereiro de 2011, ressalta o gosto de Boris Fausto pelo futebol. O historiador, advogado e cientista político foi um dos principais intelectuais a se dedicar ao estudo da História do Brasil nas últimas décadas. Deixou como legado livros que servem como referência, assim como uma trajetória acadêmica ligada à Universidade de São Paulo, sobretudo como professor.
Fausto chegou mesmo a abordar o futebol em uma de suas obras: “O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30”, que fala sobre Leônidas da Silva e o sucesso da Seleção na Copa de 1938 em meio à reconstrução da história de um crime ocorrido em São Paulo naquele mesmo ano. Aquele foi o primeiro Mundial que o acadêmico acompanhou, então um menino de sete anos. O livro trata ainda de temas mais amplos, como o racismo, a relação com imigrantes e os trabalhos marginalizados. Também assinou na Revista de História, em 2010, um artigo chamado “De Alma Lavada e Coração Pulsante”, no qual faz reflexões sobre o universo do futebol e sua paixão – de uma perspectiva coletiva, mas também pessoal.
Nesta terça-feira, aos 92 anos, Boris Fausto faleceu na cidade de São Paulo. Para homenagear sua trajetória, resgatamos comentários do historiador sobre dois momentos marcantes do futebol brasileiro neste século: a conquista do pentacampeonato mundial em 2002 e a derrota nas semifinais da Copa de 2014. O título da Seleção e sua relação com as eleições presidenciais foi tema de uma coluna de Fausto na Folha de S. Paulo, veículo para o qual escreveu por anos. Já o segundo comentário, sobre o 7 a 1 da Alemanha, aconteceu durante um debate promovido pela Folha.
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Política e futebol
26 de agosto de 2002
Nos países da América Latina -e não só neles- sempre houve uma estreita relação entre a política e os êxitos ou fracassos das seleções nacionais de futebol.
Ficando nos piores exemplos, lembro os casos dos títulos mundiais conquistados pelo Brasil em 1970 e pela Argentina em 1978. No primeiro deles, seria exagero dizer que o prestígio da ditadura encarnada no general Médici foi assegurada pelo triunfo brasileiro. Mas, se outros fatores menos efêmeros devem ser levados em conta, especialmente o “milagre econômico”, não há dúvida de que o feito se associou às “façanhas” do regime.
No caso argentino, um título conquistado em circunstâncias no mínimo duvidosas -estou me referindo à goleada sofrida pelo Peru, resultando na eliminação do Brasil- levou à euforia a imensa maioria da população do país, não obstante os horrores daquela época, sob a ditadura assassina do general Videla.
Deixemos esses tempos trágicos para trás e lembremos os dias atuais, em que, felizmente, impera a democracia. Muita gente imaginou que a vitória do Brasil na Copa do Mundo deste ano contribuiria para o avanço da candidatura governista. Não foi o que aconteceu. Não se explorou essa possível conexão na extraordinária festa realizada em Brasília ou, ao que eu saiba, em qualquer outro local. O público brasileiro soube distinguir entre os feitos do esporte e o mundo da política, um fato em si mesmo positivo, quaisquer que sejam nossas preferências partidárias.
Passaram-se menos de dois meses até a realização do primeiro jogo da seleção brasileira, após a Copa, em Fortaleza. Seria preciso ser muito ingênuo para ignorar que a partida tinha por objetivo principal promover a candidatura de Ciro Gomes, por iniciativa de Ricardo Teixeira, presidente da CBF, e dos amigos da bancada da bola. Basta passar os olhos na foto publicada na primeira página desta Folha (22/8) para dissipar qualquer dúvida. Nela surgem sorridentes Ciro e Tasso, olhando a camisa 10 da seleção, exibida por Scolari, enquanto Kaká e Cafu, curiosamente, aparecem na cena de cara séria.
O tiro propagandístico saiu pela culatra. O que se viu em campo jogou um balde de água fria nas expectativas. A razão é óbvia. Os promotores do espetáculo podiam muito, mas não a ponto de obrigar jogadores brasileiros desmotivados a se esforçarem de verdade. Afinal de contas, a maioria deles -quem pode culpá-los?- está com os olhos postos no início dos campeonatos europeus ou, em alguns casos, na possibilidade de transferências milionárias.
Também não era possível abafar o brio dos paraguaios, desejosos de “carimbar” a faixa dos campeões do mundo. A derrota veio acompanhada das vaias do público e dos gritos até injustos pela volta de Romário.
Não sei se o fato contribuiu ou não para diminuir os índices da candidatura Ciro. Mas certamente foi um episódio melancólico, uma tentativa escancarada de extrair dos êxitos esportivos vantagens políticas, que o grande público vem repelindo.
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Boris Fausto participava de um debate promovido pela Folha de S. Paulo, em série de encontros organizada com autores participantes da Festa Literária de Paraty. Ao comentar a inspiração para seu livro ‘O Brilho do Bronze', publicado no final de 2014, o autor comentou que a goleada por 7 a 1 da Alemanha foi uma das inspirações, assim como o luto pela morte da esposa, a perda da mãe e o diário de Getúlio Vargas. Na época do evento, a semifinal da Copa de 2014 acabara de completar um ano.
“Eu estava com absoluta raiva e fiquei olhando aquilo com um certo sadismo. Não assisti aquilo com alegria, mas era algo que tinha que acontecer para por a nu toda a podridão do futebol”, contou Boris Fausto, sobre os 7 a 1 da Alemanha. Outro Mundial que marcou de forma triste as lembranças do historiador foi o de 2010, que aconteceu na mesma época em que faleceu sua esposa, Cynara, com quem viveu por 49 anos: “Naquelas últimas semanas, que foram difíceis, eu saía para dar uma volta e assistia pedaços de alguns jogos. Era a única coisa que me fazia abstrair, se o jogo fosse bom”.
O historiador também comentou que a primeira Copa da qual tinha memórias era a de 1938, vencida pela Itália, com a campanha inédita do Brasil até as semifinais. Já o Mundial que mais marcou Boris Fausto foi o de 1958, com o primeiro título do Brasil.