Brasil

Na contramão dos gastos irresponsáveis, Levir reconstrói o Atlético com garotos e bom senso

Os clubes brasileiros estão em uma situação financeira complicada. Tentam desesperadamente parcelar suas pendências com o poder público e histórias de salários atrasados aparecem no noticiário com frequência. Mesmo em um período que deveria ser de bonança por causa dos contratos cada vez mais polpudos com a televisão. Nem por isso necessariamente reduzem o investimento, afinal, as dívidas serão o problema do próximo presidente. Nesse cenário, é um alento ver um treinador importante como Levir Culpi ir na contramão dos gastos irresponsáveis.

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Ano passado, o Atlético Mineiro perdeu Réver, por lesão, e encontrou a reposição no garoto Jemerson. Agora, sem Diego Tardelli, Levir ganhou Luccas Pratto, mas busca repetir a fórmula porque acredita que pode contar com garotos como Dodô, Carlos e Luan. Para qualquer treinador, é sempre mais arriscado apostar em garotos do que em jogadores estabelecidos, com costas largas o bastante para dividirem a responsabilidade. Mas também é mais sensato. “Não pedi ninguém, mas é claro que mais jogadores de qualidade são sempre interessantes. No entanto, tem que ter calma, temos um bom grupo, em todas as posições, e não podemos endividar o clube, tem que se preocupar com isso também”, afirma em entrevista exclusiva à Trivela.

A primeira partida do Atlético Mineiro no ano foi interessante nesse sentido. O campeão da Copa do Brasil não fez um grande jogo com o Shakhtar Donetsk, mas jogou bem e mereceu a vitória por 4 a 2 no Independência. A zoeira marcou o amistoso, com jogador do Shakhtar treinando pênalti sem goleiro (isso mesmo) durante o intervalo e sendo zoado pela torcida do Galo. Mircea Lucescu invadiu o campo revoltado com um pênalti teoricamente não marcado. Na mais pura várzea, o técnico romeno saiu das quatro linhas trocando palavras e gestos carinhosos com a torcida alvinegra. E ainda teve torcedor gritando: “Esse é o Shakhtar?! Coloca o Galo na Champions League!”.

Mas, além da zoeira, Levir mostrou como pretende adaptar o Atlético Mineiro sem Tardelli. O time será diferente do ano passado, com menos movimentação e os jogadores mais presos. Na partida, Carlos e Luan ficaram mais fixos pelas pontas, com Dátolo mais preso atrás de Pratto, que ficou mais enfiado entre os zagueiros e só recuou algumas vezes para armar jogadas. Não é aquele time de movimentação e troca de posição intensa no campo ofensivo do ano passado, é uma equipe com estilo diferente, mas boa, que pode melhorar e levantar mais taças esse ano.

Os garotos são fundamentais para esse projeto, e Levir sabe como fazer isso funcionar. Afinal, apenas contando os anos mais recentes, tem uma galeria grande de ótimos meninos lançados: Kagawa, Kiyotake, Inui e Yamaguchi, que hoje são estrelas em seus clubes e jogadores importantes na seleção japonesa, dentre outros nomes no Cerezo Osaka. Enquanto no Atlético Mineiro, apenas em 2014, lançou Jemerson, Carlos e Dodô, todos com muito potencial e promissores. “Tenho uma sorte incrível com isso, é inacreditável! Todo lugar que eu vou, aparecem ótimos jogadores jovens”, declara.

Sorte ou mérito? Levir Culpi fez um ótimo trabalho no Galo em 2014, recuperando um time que vinha jogando mal e parecia ter perdido o encanto. Das vaias, levou os torcedores alvinegros a ressuscitarem o mantra “Eu, acredito” e presenciarem noites épicas no Mineirão contra Corinthians, Flamengo e Cruzeiro. Para tal, Levir precisou tomar decisões difíceis, como a saída de Ronaldinho, mudar o esquema e estilo de jogo alvinegro e ter muita coragem.

Educado, solícito, sincero e muito calmo, Levir Culpi atendeu a reportagem para uma entrevista exclusiva sobre o Atlético Mineiro, os problemas no futebol brasileiro e suas escolhas.

Como você vê a saída de Diego Tardelli, um dos principais jogadores do clube nos últimos anos e um dos grandes ídolos da história do Atlético Mineiro?

Olha, eu realmente entendo a opção dele e respeito. A situação dele aqui chegou ao final de um ciclo. Raramente ele vai ter uma chance como essa na carreira novamente. É muito dinheiro e uma proposta, financeiramente, muito vantajosa para ele.

Com a perda do Tardelli, o Atlético Mineiro precisa de reforços? Você também deseja mais jogadores para outras posições?

É uma perda difícil de repor porque a qualidade técnica do Tardelli é muito boa, mas não, não precisamos de mais reforços. Aqui mesmo no elenco, temos condições de fechar essa lacuna. Não lamento muito a saída, porque, na verdade, nós tivemos momentos em que perdemos jogadores e as coisas foram se ajustando. Eu penso o mesmo agora. Talvez a gente perca características como a velocidade dele, mas podemos ganhar em algum outro aspecto com o que temos aqui. O Atlético tem um grupo de qualidade e muito bom. Já trouxemos bons jogadores como o Pratto, por exemplo, que é a grande contratação no Brasil até agora. Temos ótimos jogadores, muito técnicos e uma variedade em todos os setores, e jogadores de muito potencial, como o Dodô e o Carlos, que podem se tornar ídolos no Atlético. Precisamos é de encaixar mais o time, mas isso vamos conquistando com a sequência de jogos e já estamos conseguindo durante a pré-temporada. Ter um grupo bom é ótimo e o “problema” para escalar é todo do técnico (risos). Não pedi ninguém, mas é claro que mais jogadores de qualidade são sempre interessantes. No entanto, tem que ter calma, temos um bom grupo, em todas as posições, e não podemos endividar o clube, tem que se preocupar com isso também. Acho melhor estabilizar na parte financeira do clube primeiro.

Falando em pré-temporada, esse ano ela é um pouco mais longa, com alguns ajustes feitos no calendário 2015. Como é ter esse tempo maior para preparar o time? Você julga o calendário bom ou acredita que ele pode ter mais ajustes?

Essa vai ser uma das minhas melhores temporadas no Brasil e é dos melhores inícios por isso. O Atlético já tem o melhor CT do Brasil e um dos melhores do mundo, isso aliado ao calendário que é menos ridículo do que nos últimos anos, com um tempo maior de preparação, é muito bom pra gente. Mas ele ainda pode melhorar… As sequências grandes com vários jogos de três em três dias continuam. Outro fator interessante é que nossa base é a mesma do ano passado, mudamos muito pouco o elenco. Isso dá uma facilidade grande pra gente.

Com tudo isso, qual a sua expectativa para o ano de 2015? Dá para tentar o bi da Libertadores, da Copa do Brasil, quem sabe voltar a conquistar o Brasileiro?

Olha, temos um elenco grande, de 33/34 jogadores, que é capaz de segurar tudo. O nosso meio-campo, por exemplo. Temos o Donizete, o (Rafael) Carioca, o Pierre, o Josué, o Eduardo, o Lucas Cândido e mais uns garotos. Para o campo ofensivo, saiu o Tardelli, mas temos Luan, Carlos, Dodô, Pratto, Dátolo, o Cesinha, que também está muito bem, e vários outros jogadores. Enfim, todo o nosso elenco é bom e tem ótimos jogadores. Time sozinho não ganha, precisamos de mais e temos mais. Vamos seguir usando a base do ano passado e acredito que temos condições de conquistar os títulos.

Outro jogador importante que deixou o Galo nesse ano foi o Réver. O ano de 2014 dele não foi tão bom quanto o de 2013, afinal, ele se contundiu, sofreu o ano todo com lesões e perdeu espaço para o Jemerson que assumiu a titularidade enquanto ele estava fora. O elenco tem opções na zaga também, mas você acha que a saída do Réver foi oportuna ou queria segurar ele?

Olha, o Jemerson é um bom exemplo de coisas que estão acontecendo no Atlético faz um tempo. As pessoas acham que quando um jogador sai, o time, necessariamente, vai cair de produção. Não é assim. Olha só o Jemerson. O Réver, que é um dos melhores zagueiros do Brasil, estava machucado e coloquei o garoto de titular na Argentina, contra o Lanús, em jogo de Recopa, e ele segurou a bronca. Jogou muito bem e continuou crescendo depois. Hoje, ele é muito importante pra gente. É um menino que está amadurecendo muito. Ele é uma realidade. Podemos trabalhar com saída de jogadores e temos condição de fazer um bom time sem fazer o clube falir. Foi assim quando o Ronaldo saiu também. Muita gente achava que o time ia cair, mas não caiu. Suprimos a ausência dele e conquistamos a Copa do Brasil. Vamos continuar fortes com as saídas do Réver e do Tardelli. Temos um elenco forte em todas as posições, contratamos bons jogadores também e temos a mesma base.

No momento em que você assumiu o Atlético Mineiro, a situação era desfavorável: jogo de vida ou morte contra o Atlético Nacional pela Libertadores, time jogando mal, Ronaldinho em decadência, assim como o setor ofensivo e a pressão da torcida. Por que você aceitou o trabalho?

Eu tenho muito carinho pelo Atlético e uma relação de muitos anos com o (Alexandre) Kalil (ex-presidente alvinegro). O Kalil viajou até Curitiba para conversar comigo e me falar tudo. E isso foi muito importante para mim. Tanto é que assumi e comecei a treinar o time sem ter assinado o contrato, tamanha a confiança que temos um no outro. Só fui assinar depois de alguns dias. Queria o desafio e a emoção de treinar um clube brasileiro novamente, e o Atlético, clube organizado, com o melhor CT do Brasil, um excelente time, campeão da Libertadores, uma torcida apaixonada… Por isso aceitei o trabalho. Foi uma coincidência boa e um trabalho muito legal. Só fiquei um pouco triste porque li algumas notícias e comentários tristes na época. Diziam que eu estava desatualizado, porque tinha ficado muito tempo no Japão, mas eu fui lá para aprender futebol, não para ensinar, ao contrário do que pensam. Os clubes são mais organizados, assim como o calendário e a liga. Existe profissionalismo e muitos jogadores talentosos. Fizemos um bom ano e conquistamos a Copa do Brasil. Mostrei que não era como algumas pessoas tinham pensado. Só tem uma coisa: aqui no Brasil, o calor da torcida, a paixão e a pressão são maiores, e eu estava com um pouco de saudade disso.

Esse calor foi fundamental na sua renovação com o clube para essa temporada? O presidente alvinegro, Daniel Nepomuceno, disse que você foi uma das pessoas mais difíceis de convencer até hoje na vida dele. Por que foi difícil assim? E procedem as informações de que clubes japoneses te procuraram? Você chegou a cogitar um retorno para o Japão?

O Japão é um país maravilhoso. As coisas funcionam, o povo é educado… Eu viveria a minha vida inteira por lá. Mas o Brasil é onde nasci, existe muita adrenalina no futebol, essa paixão e esse calor. Eu queria continuar no Atlético, mas precisei primeiro da liberação da família (risos). Elas liberaram e eu fiquei (risos). Estou numa fase mais equilibrada, tranquila, posso escolher o que quero. Sou muito agradecido por todas as oportunidades, pelo que conquistei e estou conquistando.

Levir Culpi, técnico do Atlético Mineiro
Levir Culpi, técnico do Atlético Mineiro

Sobre a Copa do Brasil, foi a prova da recuperação do Galo. Após a sua chegada, o time subiu de produção, passou a fazer bons jogos, o setor ofensivo que estava em queda se transformou com um estilo de muita movimentação e troca de posições, o patamar de um dos melhores do país retornou e veio o título. O que você acha que foi fundamental nesse processo?

Olha, foi uma série de fatores e escolhas, além de sorte, competência e boas decisões tomadas. Saía um jogador, como o Réver, o Ronaldo, entrava outro e dava conta do recado. O Guilherme se lesionou quando estava bem, mas o substituímos bem, o Maicosuel também, e os meninos que entraram deram conta do recado. O trabalho cotidiano também foi bem feito e encontramos o melhor esquema e sistema de jogo para o Atlético e seus jogadores. Também teve o fim da concentração para os jogos em casa, que foi muito produtivo. Quando acabamos com ela, ficamos 10/15 jogos invictos em casa. Enfim, todos esses fatores somados renderam no que estamos vendo.

Sobre a queda da concentração, como foi o processo para acabar com ela? Houve resistência ou apoio total e por que tomou essa escolha? Na Europa e Japão é algo normal, mas aqui no Brasil ainda é pouco usual. Até nisso estamos atrasados? Você acredita, até pelo sucesso do Atlético Mineiro, que é algo que pode ser utilizado por outros clubes, como o São Paulo, por exemplo, está fazendo aos poucos?

Foi uma decisão minha acabar com a concentração. Quando comuniquei a diretoria que queria isso, o (Eduardo) Maluf (diretor de futebol do Atlético Mineiro), me disse que era contra. O Maluf é um cara experiente e ótima pessoa, com a experiência de uma vida inteira no futebol, mas disse pra ele que eu bancava a decisão. O problema é que somos um país que infelizmente sofre com a falta de educação. No nosso país não sabemos o que falar e fazer. Eu não culpo o jogador, é culpa do sistema em que vivemos. Aí, foi o que comentei com eles (jogadores) quando informei a decisão. Falei que se você quer ser um DJ, aí tudo bem, você começa a trabalhar 23h, fica a noite acordado e não dorme direito, que é da profissão. Agora, se for jogador de futebol, tem que se cuidar, dormir e se alimentar bem. E eles entenderam bem, deu tudo certo. É melhor ficar em casa com a família, brincar com os filhos, relaxar e dormir bem, do que ficar preso na concentração. Não funciona. É um atraso que temos aqui. Nós só tivemos um problema (com Jô, André e Emerson Conceição, que depois foram afastados e agora reintegrados), mas que por “sorte” aconteceu fora de casa, não em um jogo em Minas. Não foi pela ausência de concentração que ocorreu, até porque estávamos concentrados em um hotel.

É por causa do sistema e da falta de educação que você resolveu perdoar os três atletas que tinham sido afastados por indisciplina (Jô, André e Emerson Conceição) e reintegrá-los? Ou isso foi porque o Atlético Mineiro ainda não conseguiu negociá-los e foi um consenso com a diretoria reintegrá-los para depois tentar vender?

Olha, eu penso que foi um fracasso meu o que aconteceu ano passado com os três. Foi um erro de comando. Detesto punição porque eu mesmo cometo um monte de pecado que vocês nem ficam sabendo (risos). Eu não gosto dessa coisa de julgar, punir… É algo que não me agrada e me deixa triste. Por isso dei o perdão. Foi um erro meu e todo mundo merece uma segunda chance. Eles não merecem ser esquecidos e sair do mapa. E também é culpa do sistema e da falta de educação do nosso país. Um dia desses eu estava lendo notícias e vi algo que me deixou muito chateado, porque mostra que nosso país não tem educação. Li que mais de 500 mil pessoas tiraram nota zero na redação do Enem. Isso me deixa muito triste.

Quais são as diferenças que você observa no futebol japonês e brasileiro e o que você acha que pode ser modificado por aqui?

Olha, você pode até escolher o que mudar primeiro (risos). Lá, tudo que está em volta do futebol funciona bem, enquanto aqui, tudo funciona muito mal. É horrível. O calendário, a organização, a falta de profissionalismo, a mentalidade que prioriza demais o resultado, enfim, temos vários problemas. Temos talento, a cultura do futebol no nosso DNA, a paixão, mas o resto está mal. Lá no Japão, eles não tem essa cultura e essa paixão, que ainda está crescendo, mas também contam com jogadores talentosos e muita organização: o povo educado, a liga organizada, o calendário, o profissionalismo. Precisamos evoluir muito. Acho que o fundamental é isso.

Foto de Anderson Santos

Anderson Santos

Membro do Na Bancada, professor da Unidade Educacional Santana do Ipanema da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), doutorando em Comunicação na Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol” (Appris, 2019).
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