Há 20 anos, fim da Geral do Maracanã representou início de projeto elitista no Brasil
Trivela conversou com pesquisadores e personagens que estavam presentes naquele jogo sobre o que representava o setor popular do estádio

Quando o árbitro Héber Roberto Lopes apitou o final da partida entre Fluminense e São Paulo, pela primeira rodada do Campeonato Brasileiro de 2005, poderia ter sido apenas o fim de mais um de tantos jogos que o Maracanã viveu nos seus mais de 70 anos. Mas aquela vitória por 2 a 1 do Tricolor carioca foi um marco de transformação do futebol brasileiro.
Há 20 anos, no dia 24 de abril de 2005, a Geral do Maracanã teve o seu último jogo. O fim do setor popular de um dos estádios mais importantes do mundo foi o início de uma série de mudanças que os estádios brasileiros viveram ao longo das últimas décadas, em um claro processo de arenização e elitização do futebol nacional e mundial.
Para entender este processo e falar sobre o fim da Geral do Maracanã, a Trivela conversou com especialistas, pesquisadores, com o atacante Tuta, autor dos dois gols do Fluminense naquele jogo, e, é claro, com um geraldino que esteve presente no último jogo antes da reforma realizada no Maracanã.

Em 2005, o Rio de Janeiro se preparava para receber os Jogos Pan-Americanos de 2007. Mas o principal motivo para o fim da Geral foi uma adequação as exigências da Fifa de que os jogos internacionais deveriam ser realizados em estádios com 100% dos lugares com assentos.
Mas este projeto era um pouco mais antigo. Em 1999, quando a capacidade do Maracanã era de 125 mil torcedores, o estádio já passou por uma reforma para receber o Mundial de Clubes de 2000. Naquele projeto já estava estipulado fim da Geral, que não aconteceu. O setor, no entanto, teve que ficar fechado durante a competição da Fifa.
Mas, em 2005, o estádio passou por uma reforma maior e a Geral não escapou. E o último jogo com os geraldinos presentes naquele espaço que deu nome aos torcedores aconteceu na tarde de um domingo.
Para o professor e historiador Luiz Antonio Simas, o objetivo daquela mudança ia muito além de uma simples reforma estrutural. O fim da Geral representou de forma simbólica — e também prática — uma nova em que torcedores mais humildes não eram bem-vindos.
— O objetivo ali não era acabar com a Geral. Era acabar com o pobre no estádio — afirmou Luiz Antonio Simas à Trivela.
Uma prova de como a Geral era um setor tão popular, é claro, era o preço do ingresso. Para assistir aquele Fluminense x São Paulo na Geral, os torcedores pagaram apenas R$ 3,00. Em valores corrigidos, o ingresso custaria R$ 10,79 em 2025. Para comparação, no próximo jogo a ser realizado no Maracanã, entre o Flamengo e Corinthians, neste domingo (27), o ingresso mais barato custa R$ 80 (valor da inteira para o público geral no Setor Sul).
— É tirar o pobre. Como a Geral era o espaço efetivamente popular, a Geral dançou. É o pobre, é o sujeito que não apresenta potencial de consumo nessa lógica de circulação de capital e tem que ser afastado — analisou Simas.

— Em um processo mais amplo, acho que está acontecendo no futebol mundial, que é um processo de “premierleaguezação” do futebol, em que o torcedor vai perdendo espaço. Ele só interessa como cliente do futebol como produto. Se ele não é esse cliente, ele não interessa mais. E o fim da Geral está vinculado a tudo isso — completou Simas.
— É um projeto mesmo, em que o futebol é capturado por uma lógica empresarial que o torcedor não interessa. O estádio popular não é interessante. Essa dimensão simbólica, do ato de torcer, pelo menos nas grandes praças, está morrendo mesmo, sob ataque — disse Simas à Trivela.
O fim da Geral como um ‘laboratório' para o Rio
Depois desta reforma do Maracanã, que acabou com a Geral, o estádio ainda passou por outra grande reforma para a Copa do Mundo de 2014. Enquanto isso, o Rio de Janeiro, que também se preparava para as Olimpíadas de 2016, passava por grandes obras de infraestrutura e mobilidade, de olho nestes megaeventos.
Para o doutor em geografia Fernando da Costa Ferreira, o fim da Geral teve o mesmo objetivo do que algumas das obras realizadas para Olimpíadas, que forçaram a remoção de moradores de suas casas, principalmente na Zona Oeste da cidade. Mas, ao mesmo tempo, esta não é uma política nova na cidade e no Brasil.
— O Brombeger (antropólogo francês) fala muito dos estádios como microrrepresentações do espaço urbano, da cidade. Essas mesmas políticas de higienização, que não são de agora, tem mais de um século, de espaços mais limpos, frequentados por famílias, são sempre associadas com a retirada do pobre — disse Fernando da Costa Ferreira à Trivela.

— No estádio, é você eliminando a Geral e aumentando o preço do ingresso. Na cidade é o mesmo, com as remoções das populações das áreas que foram escolhidas para receber esses eventos. Tem muito a ver essa questão da exclusão no estádio de futebol, do fim da Geral ser muito simbólico. Um laboratório para as políticas de exclusão que se desenvolveram para a Copa e as Olimpíadas — completou o pesquisador.
Luiz Antonio Simas classificou este momento como um processo de “arenização da cidade”, que passou por diversos “baques” e crises desde os anos 1960, quando perdeu o posto de capital federal. Para o historiador, a fusão com o Estado da Guanabara, acabando com o status de ser uma cidade autônoma, e as crises econômicas e de violência vividas entre 1980 e 90, que também levou, por exemplo, a cidade perder a Bolsa de Valores para São Paulo, fizeram o Rio de Janeiro tentar se reinventar na virada do século.
— Uma das maneiras mais efetivas que marcam essa reinvenção simbólica do Rio de Janeiro, com conotações evidentes no campo da economia, é uma transformação em balneário dos grandes eventos. É um Rio que tenta se apresentar como um balneário para megaeventos. E não diria nem que é um processo de arenização do Maracanã. É um processo de arenização da cidade inteira. E o Maracanã entre nesse processo de aburguesamento, de gentrificação da cidade — disse Simas.

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Torcedor do Fluminense guarda ingresso do último jogo da Geral até hoje
Aquele ingresso, de fato, foi especial para os geraldinos. Francisco Rodrigues, torcedor do Fluminense, esteve no Maracanã para acompanhar a vitória do seu time e, principalmente, se despedir da Geral. Tricolor, ele guarda o ingresso daquela partida até hoje.
Francisco contou que foi um dos últimos a deixar a Geral naquele 24 de abril. Assim como outros torcedores, ele queria aproveitar os últimos momentos no histórico setor. Ele e outros tricolores, alguns chorando, só deixaram o Maracanã após policiais militares encaminharem todos para o portão de saída.
— Nós já estávamos sabendo que a Geral ia acabar e eu, particularmente, estava muito triste. Todo jogo que podia ir na Geral, eu ia. A torcida estava empolgada, o Fluminense tinha acabado de ser campeão carioca. Cheguei atrasado, mas a tempo de ver o primeiro gol do Tuta, que eu acho que foi de pênalti — relembrou Francisco.
Quando acabou o jogo, eu beijei o chão da Geral e disse “obrigado por tudo, tchau, Geral”.
— Isso já sendo expulso pela polícia, porque a polícia vinha com uma corda assim, fazendo um arrastão, um PM de cada lado, segurando a corda e tirando a gente. Fiquei lá até o apagar das luzes. É um espaço que faz muita falta e que me deixa muita saudade — contou.

Apesar da emoção com a despedida da Geral, Francisco relembrou que o fim daquele setor já era esperado pelos torcedores desde o fim dos anos 1990.
— O final da Geral pra gente era um processo que foi sendo anunciado. A Geral já ficava fechada em alguns jogos, qualquer coisa era motivo para fechar a Geral. A gente já vinha se despedindo da Geral aos poucos, a Geral já vinha sendo excluída, marginalizada, mal-vista fazendo já parte do processo de elitização — ressaltou o torcedor do Fluminense.
Na época estudante, o hoje petroleiro Francisco relembra como o preço dos ingressos era o grande atrativo para frequentar o Maracanã. Como ainda morava na Praça da Bandeira, próximo ao estádio, era possível ir aos jogos com pouco dinheiro no bolso.
— Tinha ingresso por R$ 1, tinha promoção do jornal “Extra”, que vinha com o selinho para comprar o ingresso por R$ 1. E isso na época que você era estudante e sem emprego, era bom demais. Eu ia pra Geral naquele tempo com R$ 5. Era às vezes R$ 3 do ingresso, R$ 1 do (biscoito) Globo e R$ 1 do mate – ou o contrário, não lembro, R$ 1 do ingresso e R$ 2 do Globo e R$ 2 do mate. Era o suficiente para você ser feliz — disse o torcedor do Fluminense.
— Na Geral você entrava como se fosse um jogador, tinha essa magia, entrava na altura do gramado e olhando pra arquibancada. Você ficava perto da boca dos túneis dos jogadores, do banco de reservas. Se o lance era de ataque, um escanteio, você conseguia chegar perto, escutava o barulho, sentia o cheiro da grama. O jogador às vezes acenava pra você e dava a sensação de que você estava dentro de campo — relembra Francisco.
Tuta relembra do último jogo da Geral
Autor dos dois gols do Fluminense na vitória sobre o São Paulo, o ex-atacante Tuta também relembra com saudade dos tempos da Geral do Maracanã. Além dos gols marcados, o fato do estádio ter entrado em reforma fez aquele jogo ser ainda mais marcante para o ex-jogador, que marcou 51 gols com a camisa tricolor.
— Era o campeão carioca contra o campeão paulista e foi um baita de um jogo. A torcida estava empolgada e, por saber que já era o último jogo da Geral, que o Maracanã ia entrar em reforma e eu ter feito dois gols, acho que ficou marcante na minha memória. Foi um belo do jogo. O primeiro gol foi gol de pênalti, o Fabão me segura, e o segundo Tiuí chuta e o Rogério Ceni dá o rebote e eu faço o gol — relembrou Tuta à Trivela.
— Tinham várias figuras ali na Geral. Era um torcedor raiz, tipo de várzea, que ficava em pé ali, correndo do lado pro outro. Sinto saudade. Quem viveu, viveu. É só lembrança agora — comentou o ex-jogador.
O fim de um modo de torcer
Nos seus pouco mais de 50 anos de existência, a Geral do Maracanã ficou marcada por seus muitos personagens. O local recebia pessoas fantasiadas, torcedores “especialistas” que ficavam passando instruções para jogadores e técnicos, alguns corneteiros, que aproveitavam a proximidade com o campo e o banco de reservas para criticar o time adversário — e também muitas vezes o próprio clube, entre muitos outros “tipos” de torcedores.
Também tinham aqueles que nem sequer assistir à partida. Por isso, Simas trata a Geral muito mais como um “espaço de sociabilidade” do que um mero setor no estádio.
— O Geraldino inventava um ato de torcer que dava sentido e sociabilidade a vida do cara. Você tinha Geraldinos convictos que, mesmo em alguma circunstância que pudesse ir em jogo de arquibancada, o cara ia de Geral. Era uma experiência que se legitimava naquele espaço e daquela maneira. Era aquilo que funcionava. Era você levar sua fantasia, era ficar rodando de patinete, era você ficar rezando e não vendo o jogo. Quando o jogo não era tão cheio, era comum ver gente jogando bola na Geral. Você fazia dois golzinhos com sandália havaiana e ficava rolando um jogo na Geral. Acontecia esse tipo de coisa — disse Simas.

— O próprio Gilmar Mascarenhas (professor e pesquisador, falecido em 2019) falava da Geral como um “espaço de festa”. Era um local onde você tinha uma apropriação daquele torcedor para fazer a festa. Tinha a questão dos geraldinos. Era muito comum, além de ver as partidas, os geraldinos irem lá para serem vistos. Iam fantasiados, levavam cartazes, tinham aquelas figuras bem características, personagens que eram artistas do espetáculo. Eram parte do espetáculo. Era um espaço muito diverso — concordou Ferreira.
Para Simas, além de um ataque ao pobre, o fim da Geral foi também uma forma de acabar com esta sociabilização do pobre e com todas estas formas de torcer que conviviam naquele espaço do Maracanã.
— Essas formas de torcer, de dar sentido a vida, construir sociabilidade urbana num país que é terrível para quem não tem dinheiro, é isso que é atacado. É o sentido de vida, de sociabilidade, é a maneira como experimenta a cidade, como experimenta o lúdico. Se tem uma mensagem que acho que marca tudo isso, é que o fim da Geral é um sintoma de ataque ao pobre. Esse é o detalhe que é absolutamente crucial. Porque nós vivemos num país que não odeia pobreza, odeia pobre. E o futebol foi capturado por essa lógica. E continua sendo. É um embate, mas continua sendo — ressaltou Luiz Antonio Simas.