Ferreira Gullar: filho de craque, companheiro de Canhoteiro e poeta d’O Gol

A literatura era a sua vida e diferentes vertentes ele percorreu ao longo da carreira. Mas seu coração, mesmo, era da poesia. A ela, Ferreira Gullar entregou algumas de suas melhores palavras. O escritor, sobretudo poeta, faleceu neste domingo, aos 86 anos de idade. Deixou uma obra extensa, fundamental ao neoconcretismo, mas nome importante dentro da literatura contemporânea de uma maneira geral. Imortal da Academia Brasileira de Letras, mas que deixou seu eterno legado também à música, à televisão e ao cinema.
A trajetória de Ferreira Gullar está intrinsecamente ligada ao futebol. E não exatamente por aquilo escreveu, mas por aquilo que viveu. O maranhense era filho de Newton Ferreira, um dos atacantes mais famosos do futebol de seu estado na virada dos anos 1920 para os 1930. O centroavante chegou mesmo a integrar a seleção estadual e foi campeão do Norte e Nordeste em 1929, enfrentando a seleção carioca na então capital federal. Por lá, perdeu por 9 a 0, mas teve a honra de ser recebido junto com seus companheiros pelo presidente Washington Luís.
Do pai, Ferreira Gullar herdou o gosto pelo futebol. Newton carregava o rebento nos ombros para os estádios de São Luís. Mas não herdou exatamente todo o talento. O jovem até passou pelas categorias de base do Sampaio Corrêa, mas parou no juvenil. A partir de então, preferiu dedicar-se às letras. Acompanhava de longe alguns companheiros de pelada vingarem nos gramados. Em especial, Canhoteiro. O ponta talentosíssimo trocava passes com o poeta famoso durante a juventude. Saiu do Maranhão para se tornar um dos maiores ídolos da história do São Paulo.
“Certo domingo, pela televisão, o vi jogar. Mal acreditei: ali estava, com as mesmas gingas, o Canhoteiro das partidas em frente ao Mercado Novo. Nesse mercado, o pai dele, seu Cecílio, tinha uma banca onde vendia mingau de milho e tapioca. Era lá que, todas as manhãs, bem cedo, quebrava o jejum antes de seguir para o colégio”, contou Ferreira Gullar, em coluna publicada na Folha de S. Paulo em 2006. “Canhoteiro já era gênio aos dez anos de idade. Prendia a ponta da camisa na mão, enfiava dois dedos na boca (ele ainda chupava dedo) e saía driblando todo mundo com extraordinária habilidade. Tive, assim, a glória de trocar passes com ele, muito antes que a fama o coroasse”.
Como o amigo de infância, Ferreira Gullar também deixou o Maranhão para exercer seu ofício. Mudou-se ao Rio de Janeiro, onde pôde ver seu time de coração mais de perto. O maranhense era Vasco desde a infância. Filho de portugueses, seu pai gostava de acompanhar os jogos dos cruz-maltinos no rádio. Além disso, depois de ler sobre o sucesso que os vascaínos faziam, o garoto não teve dúvidas e escolheu o clube para representar seu time de botão. Na capital, acompanhou os últimos anos do famoso Expresso da Vitória, frequentando o recém-inaugurado Maracanã no início dos anos 1950.
Aos poucos, Ferreira Gullar deixou de ser assíduo nas arquibancadas. Dedicou-se a criar, a escrever. Ainda assim, brindou o futebol com um belíssimo poema: ‘O Gol'. Uma singela homenagem do craque das letras que nos deixou:
O Gol
A esfera desce
do espaço
veloz
ele a apara
no peito
e a pára
no ar
depois
com o joelho
a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera espera o chute que
num relâmpago
a dispara
na direção
do nosso
coração