Brasil

É hora ao Fortaleza também reforçar seus méritos além do treinador, por melhor que ele fosse

Rogério Ceni marcou a história do Fortaleza, não há dúvidas quanto a isso. Alguns dos melhores momentos do clube foram vividos sob as ordens do treinador, mesmo saindo e voltando ao Leão do Pici. Conquistou a inédita Série B e a inédita Copa do Nordeste, faturou o bicampeonato cearense, levou o clube pela primeira vez a uma competição continental, registrou algumas vitórias memoráveis contra as forças de outros cantos do país. Seu nome ficará na memória. Porém, a saída repentina, mais uma, também ressalta como a camisa tricolor e o amor da torcida ainda são maiores do que qualquer técnico.

Por duas vezes, Ceni escolheu deixar o Fortaleza. Em 2019, assumiu um risco bem maior ao preferir se mudar ao Cruzeiro e dirigir um time afundado na crise, com um elenco explosivo. Não deu certo e o Leão do Pici abriu as portas novamente ao comandante. Desta vez, a decisão de Rogério Ceni é até mais justificável do ponto de vista profissional. Assume um dos melhores elencos do país, com dificuldades que não parecem tão duras de se resolver e com perspectivas de até três títulos pela frente. É um passo maior à progressão de sua carreira. Mas que também não tira a razão dos tricolores ficarem chateados por sua escolha.

Ainda que Rogério Ceni tenha prometido na televisão que pretendesse terminar a temporada à frente do Fortaleza, seu discurso após a conquista do Campeonato Cearense também deu a entender que seu adeus poderia ser mais rápido. No fim, ele antecipou mesmo um movimento que já era esperado para 2021. O técnico preferiu não recusar a sondagem do Flamengo e, em poucas horas, acertou seus novos rumos. Não bastasse a celeuma da ida ao Cruzeiro e o perdão concedido pelos tricolores, a quebra aconteceu de novo. E, agora, de maneira até mais dolorosa por aquilo que vinha se construindo no clube. Não dá para dizer que existiam rusgas por reforços negados, como em 2019.

O Fortaleza segue com objetivos mais modestos que o Flamengo. Apesar da brava luta na Copa Sul-Americana e na Copa do Brasil, contra adversários bem mais badalados e endinheirados, o Leão do Pici sucumbiu em ambas as competições. No Brasileirão, sua meta é a permanência na elite por mais um ano. O desempenho vinha sendo satisfatório até o momento, pela forma como os tricolores roubaram pontos de alguns dos principais clubes da tabela e também pela forma como Ceni adaptou seu time a circunstâncias difíceis. A decisão do treinador também coloca em risco as perspectivas da equipe na Série A.

Ainda que a postura de Rogério Ceni seja justificável, há um conflito ético que se faz pertinente, até pelas palavras anteriores do treinador. Mas a ruptura também serve para ressaltar que, independentemente do trabalho grandioso que fazia o técnico, o Leão do Pici precisa ser valorizado como maior que tudo isso. Comandantes vem e vão, ídolos passam e deixam memórias. O Fortaleza não deixa de ser um clube importante e com muitos acertos que permanecem.

Rogério Ceni tem seus méritos pelas ideias que trouxe ao clube, contribuindo à própria modernização das estruturas, e pela maneira como conseguiu construir uma equipe competitiva em diferentes momentos. Contudo, há também inúmeros acertos de uma diretoria que se mostra na vanguarda pela maneira como alavancou os rendimentos do clube e o trouxe novas expectativas após anos vagando na terceira divisão nacional. O cenário favorável ao trabalho do técnico, afinal, vai além de suas mãos. Da mesma maneira, há um elenco com jogadores importantes e lideranças que não se limitam às orientações do treinador. Nomes como Tinga, Felipe Alves, Osvaldo e Wellington Paulista também são centrais ao Leão do Pici.

Obviamente, Rogério Ceni é um personagem que chama atenção por sua história e, na carência que o futebol brasileiro possui por treinadores inovadores, seu trabalho no Fortaleza recebia muitos holofotes. A insistência e o exagero da imprensa em apenas falar sobre o comandante existiam – e isso não nos exime, na própria Trivela, de termos cometido o mesmo erro. Há, claro, um desempenho vitorioso que se construiu e uma visão própria. Mas o término da relação nesta terça também reforça a necessidade de se olhar para a competência do clube além do treinador, entre as conquistas encabeçadas por jogadores e dirigentes. Fica um legado, mas que não foi construído única e exclusivamente por Ceni, apesar das ideias que ele incutiu nos tricolores e da própria maneira como conduziu seu trabalho.

A substituição de Rogério Ceni não será simples, considerando seu talento e a própria escassez do mercado brasileiro. O Fortaleza teve dificuldades para manter o nível em 2019, durante o intervalo em que o ex-goleiro dirigiu o Cruzeiro e foi substituído por Zé Ricardo. Neste momento, a diretoria se mostra mais preocupada em achar um novo nome que se case com as ideias e com o projeto já realizado no Leão do Pici, do que propriamente tem pressa para resolver o entrave. E, ainda que o elenco sinta falta de Ceni, a saída do técnico também injeta mais gana para que os tricolores se mantenham na elite do Brasileirão. Não será simples, de qualquer forma.

Quando a ferida cicatrizar, Rogério Ceni terá motivos para ser lembrado com carinho no Fortaleza e receber a devida consideração pelos feitos que registrou. Neste momento, é importante ao Fortaleza demonstrar que não depende apenas de um treinador e que a camisa do clube pesa acima de um nome. Que a proposta do outro lado pareça tentadora demais, pensando racionalmente, nenhuma torcida gostaria de estar na posição dos tricolores, especialmente depois de tantas juras de amor. É hora de considerar também o orgulho de uma massa e a grandeza de um dos maiores times do Nordeste.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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