BrasilCopa do Mundo

Como uma tiração de sarro futebolística criou a principal marca de Senna

O duelo entre Brasil x França, pela Copa do Mundo de 1986, fez Ayrton Senna ir à forra com uma tiração de sarro que se tornaria uma marca na sua carreira

Neste sábado, 21 de março de 2020, completam-se 60 anos do nascimento de Ayrton Senna. E, para celebrar a grandeza de um dos maiores esportistas brasileiros de todos os tempos, relembramos uma história na qual o futebol influenciou sua marca registrada: o gesto de carregar a bandeira do Brasil após as vitórias surgiu em resposta a uma derrota da Seleção na Copa do Mundo. Tudo aconteceu em 1986, entre o Brasil x França no México, pelas quartas de final do Mundial, e o GP dos Estados Unidos de F1, realizado em Detroit no dia seguinte à derrota brasileira nos pênaltis.

O texto abaixo foi publicado originalmente em 2014, na série “O futebol e os 20 anos da morte de Ayrton Senna”. Confira:

***

Ayrton Senna era corintiano, isso era público. Ele também jogou uma pelada tradicional entre pilotos e jornalistas na Itália, há fotos disso. E também deu o pontapé inicial para um amistoso entre Brasil e Paris Saint-Germain no Parque dos Príncipes. Mas, por mais que alguém queira acreditar que o tricampeão da F1 fosse um grande torcedor, isso não é verdade. Ele raramente mostrava muita preocupação com o que acontecia nos gramados. O que torna até curioso o fato de que sua imagem mais marcante tenha surgido devido ao futebol.

>>> Como o automobilismo ocupou o vazio deixado pela má fase do futebol brasileiro

Era 1986. Senna era um piloto na terceira temporada na F1. Ainda era uma promessa, mas daquelas que todos já percebiam que ia vingar. Tinha três vitórias, e mais um punhado de grandes atuações que só os muito acima da média são capazes. Naquela temporada, estava a bordo de um Lotus, um carro rápido, mas que não conseguia manter a competitividade em todas as corridas.

Ainda assim, o brasileiro conseguia se manter na briga pelo título. Ele chegou a Detroit, onde se realizaria o Grande Prêmio dos Estados Unidos, como vice-líder do campeonato, com 27 pontos, ao lado do inglês Nigel Mansell, da Williams. Na frente de ambos estava o francês Alain Prost, McLaren, com 29 pontos. A disputa pelo título contava também com o também brasileiro Nelson Piquet, Williams, 19 pontos.

Ayrton Senna durante o GP dos Estados Unidos de 1986
Ayrton Senna durante o GP dos Estados Unidos de 1986

Mas era um momento em que a F1 estava sem tanto espaço no noticiário, pois as atenções estavam no México, na Copa do Mundo. O Brasil havia começado com um futebol pouco convincente, mas passou confiança após fazer 4 a 0 na Polônia (terceira colocada no Mundial anterior) nas oitavas de final. Nas quartas, enfrentaria a grande seleção europeia do momento: a França de Platini.

>>> Tema da semana: O futebol e os 20 anos da morte de Ayrton Senna

O brasileiro tem o costume de se sentir melhor e superior em tudo quando se fala em futebol, mas era um outro momento. Após o título de 1970, o Brasil teve uma década opaca e uma decepção gigantesca em 1982. A sensação era a de que o futebol brasileiro já não era o melhor do mundo, ainda mais naquela Copa mexicana. A França era a campeã europeia e tida como a favorita. Julio César, zagueiro da Seleção, chegou a declarar que “a raça vai vencer a técnica” antes do confronto de Guadalajara. Sim, a equipe dona da técnica era a francesa.

Naquele momento, uma fronteira acima, Senna disputava a segunda sessão oficial para o GP dos Estados Unidos. O brasileiro já estava se acostumando a ser o pole position, e não foi diferente naquele dia. Com 1min38s301, ele ficou com o melhor tempo. Mansell foi o segundo, 0s538 atrás. Logo após registrar sua volta mais rápida, Senna retornava aos boxes quando um mecânico da Lotus mostrou a placa: “Brasil 1, França 0”.

O favoritismo francês parece ter motivado o Brasil a crescer naquela tarde de sábado, 21 de junho. Foi a melhor partida da Seleção, e a França respondeu à altura. O resultado foi um dos melhores jogos das Copas do Mundo, com diversas oportunidades criadas dos dois lados, grandes defesas dos dois goleiros e muitas emoções.

Senna contou o que ocorreu naquele dia em entrevista ao programa Roda Viva no final daquele ano:

“Eu saí do carro, fui direto para o meu apartamento no hotel para assistir ao jogo. E tinha uma conferência de imprensa que eu tinha que ir. Me meteram o pau! Disseram que eu não dava bola para imprensa. Eu estava a fim de assistir ao jogo do Brasil. Fui lá assisti ao jogo do Brasil e o meu projetista é francês, os mecânicos da Renault eram todos franceses. Conclusão: depois do jogo eu nem fui à garagem onde o pessoal trabalha durante a tarde toda preparando o carro pro dia seguinte, porque eu sabia que eles iriam me alugar, né? E nem apareci na garagem, só apareci no domingo cedo na pista, porque o Brasil tomou pau, né?”

Pois é… Após o gol de Careca, a França empatou com Platini. A Seleção acertou duas vezes a trave, Zico perdeu pênalti no segundo tempo, Carlos salvou o Brasil em falta como último homem não marcada sobre Bellone na prorrogação e a decisão foi para os pênaltis. Bats defendeu a cobrança de Sócrates, Platini chutou por cima, a cabeça de Carlos botou para dentro um chute na trave de Bellone e Julio Cesar acertou o poste direito. França 4 a 3.

Senna não participou dos ajustes de seu carro no fim da tarde de sábado, mas isso não parece ter atrapalhado muito no domingo, 22 de junho. O brasileiro manteve a ponta nas primeiras voltas. Foi ultrapassado por Mansell na segunda, recuperou a liderança pouco depois e teve de parar prematuramente nos boxes no 14 º giro, com um furo no pneu. Jacques Laffite (Ligier) era o primeiro, seguido por René Arnoux (Ligier), Mansell, Prost e Piquet. Senna era o sexto, mas tinha pneus novos e se aproximava do pelotão de frente.

O brasileiro da Lotus retomou a primeira posição quando os cinco primeiros foram aos boxes. Ele abriu grande vantagem e troca mais uma vez de compostos. Piquet assumiu a liderança, mas uma trapalhada da Williams em sua parada nos pits o fez perder 18 segundos e ficou bem atrás de Senna. Piquet tentou se recuperar. Fez a volta mais rápida e dava a impressão de que haveria uma briga brasileira nas voltas finais, mas acabou se chocando com o muro. O curioso é que seu carro atrapalhou o de Arnoux, que vinha em terceiro lugar e bateu também.

>>> Nunca se esqueça: Luciano do Valle foi um dos gigantes da narração esportiva

A vida ficou tranquila para Senna nas voltas finais. O brasileiro administrou a vantagem, e acompanhou de longe a briga entre os franceses Prost e Laffite, com o da Ligier levando vantagem a dez voltas do final. O italiano Michele Alboreto, da Ferrari, foi o quarto colocado, e Mansell, com problemas nos freios, o quinto. A zona de pontuação foi completada com o italiano Riccardo Patrese, da Brabham.

Vencer a corrida no dia seguinte à eliminação do Brasil foi uma grande oportunidade para Senna ir à desforra com os mecânicos e engenheiros franceses que povoavam os boxes da Lotus. Aí, ele se aproveitou que havia visto um torcedor brasileiro nas arquibancadas. Ele conta, ainda na entrevista ao Roda Viva em 1986:

“Tinha muito brasileiro lá, sabe? Eu notei que tinha muito brasileiro. E quando eu passei na linha de chegada, que eu diminuí, eu estava esgotado, foi uma corrida dura fisicamente, eu vi um brasileiro do lado de lá da cerca,  pra trás do bandeirinha, com uma bandeirinha do Brasil. E então foi instinto, eu parei e fazia sinal para o cara que estava do outro lado da cerca e ele não podia vir, o bandeirinha do meu lado e não entendia nada. E eu falava: [faz uma entonação com a voz para indicar que ele estava pedindo a bandeira de longe] “bandeira”, né, mas ninguém entendia nada. Até que o bandeirinha olhou para mim, olhou pro cara e entendeu. Aí o bandeirinha foi lá, tomou a bandeira do torcedor que estava pendurado lá na cerca. Entendeu, isso é que é maravilhoso, né? O cara torcendo, né, e trouxe a bandeira para mim e eu dei a volta com a bandeira. Então foi um dia especial, né?”

 

Sim, o gesto mais marcante de Senna, a comemoração da vitória com uma volta segurando a bandeira brasileira, foi criada como uma forma de responder às provocações futebolísticas de colegas de trabalho franceses após uma derrota do Brasil em Copa do Mundo.

O curioso é que o Brasil não viu aquela corrida. Domingo à tarde, na segunda metade de junho, em um GP com o mesmo fuso horário da sede da Copa, era inevitável que houvesse uma partida do Mundial no mesmo horário da F1. E havia. A Globo passou a corrida em compacto, preferindo transmitir ao vivo o futebol.

Não foi, porém, uma troca das piores. Os brasileiros deixavam de ver Senna reassumir a liderança do campeonato e criar uma tradição, mas tiveram a oportunidade de ver outro mito sul-americano entrar na história. Ao invés do GP dos Estados Unidos, o Brasil ficou com Argentina 2×1 Inglaterra, e viu Maradona mostrar como era a Mano de Dios e driblar toda a Inglaterra, do goleiro Shilton à Rainha Elizabeth, para marcar o gol mais espetacular da história das Copas do Mundo.

Abaixo, o vídeo do GP dos Estados Unidos, com narração de Luiz Alfredo pela Globo:

 

Foto de Ubiratan Leal

Ubiratan Leal

Ubiratan Leal formou-se em jornalismo na PUC-SP. Está na Trivela desde 2005, passando por reportagem e edição em site e revista, pelas colunas de América Latina, Espanha, Brasil e Inglaterra. Atualmente, comenta futebol e beisebol na ESPN e é comandante-em-chefe do site Balipodo.com.br. Cria teorias complexas para tudo (até como ajeitar a feijoada no prato) é mais que lazer, é quase obsessão. Azar dos outros, que precisam aguentar e, agora, dos leitores da Trivela, que terão de lê-las.
Botão Voltar ao topo