Como a infância guiou os passos do menino Dico em sua transformação como Rei Pelé
Recontamos a história de Pelé durante a infância, de Três Corações a Santos, passando por Bauru, e como isso moldou seu gosto pela bola
“Todo menino é um rei. Eu também já fui rei. Mas, quá!, despertei”.
A música eternizada na voz de Roberto Ribeiro parece traduzir a infância de todo brasileiro. De todo brasileiro menos um. Porque o menino Dico, nascido em Três Corações e crescido em Bauru, antes de se mudar no meio da adolescência para Santos, jamais despertou. Quis ser rei e foi rei. Rei do futebol. E inspirou os sonhos de tantos meninos que quiseram ser reis como ele, mesmo que cada um precisasse ter consciência de que Pelé só houve um. Enquanto existir uma criança chutando qualquer coisa que se assemelhe minimamente com uma bola, porém, o sonho de ser rei permanece vivo. Foi Dico, afinal, quem o incutiu permanentemente no imaginário brasileiro. Driblou as mazelas da vida e toda a opressão que se impunha para dizer que nunca seria alguém, por ser pobre, por ser negro, para ser recebido como uma realeza em cada nação que pisou. Todo menino é um rei, porque Pelé sempre será rei. E, graças a ele, todo menino sabe que é possível nunca despertar.
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A cidade de Três Corações, antes de trazer ao mundo Pelé, iniciou também a história de amor entre seus pais, Dondinho e Celeste. João Ramos do Nascimento, nascido na mineira Campos Gerais, fazia seu nome nos gramados. Dondinho era o apelido do atacante de ótimo porte físico e exímio cabeceador, que atuava em pequenas equipes do interior de Minas Gerais e de São Paulo. O atacante defendeu o Yuracan de Itajubá com certo sucesso, antes de se mudar para Três Corações por causa do serviço militar. Por lá também não abandonou os gols, ao vestir a camisa do Atlético de Três Corações. E se apaixonou por Celeste, uma jovem da cidade, caçula de 11 irmãos, com quem se casaria. Através de serenatas, Dondinho conquistou também o pai da moça, Jorge, que não confiava na fama de soldado e muito menos de jogador de futebol. Em dois anos, se casaram.
O primogênito de Dondinho e Celeste nasceu em 23 de outubro de 1940, quando o pai tinha acabado de completar 23 anos e a mãe estava às vésperas de fazer 18. Três Corações ganhara recentemente suas primeiras instalações de energia elétrica quando a família, em reverência a Thomas Alva Edison, resolveu homenagear o inventor americano. Concebiam Edson Arantes do Nascimento, o menino que, dentro de alguns anos, o planeta conheceria como Pelé. Um dos primeiros comentários de Dondinho ao pegar o filho no colo foi perceber que, tão novinho, ele já tinha “pernas de jogador de futebol”.
Os destinos da família Arantes do Nascimento eram guiados pela carreira de Dondinho nos gramados. Uma carreira que, apesar do talento, não deslanchava pela falta de sorte. Edson passou uma pequena parte da infância na paulista Lorena, no Vale do Paraíba, onde o pai vestia a camisa do Hepacaré. Foram poucos meses antes de outra mudança, rumo à mineira São Lourenço, com um contrato assinado com o Vasco local e um trabalho de pintor. Aquele seria um momento crucial para o menino, aliás, como poucos poderiam prever. Edson se encantava com o goleiro vascaíno chamado Bilé. Mal pronunciando as primeiras palavras, dizia que “gostaria de ser como Bilé” e gritava seu nome quando fazia defesas. Seria o apelido que, mais tarde, entre os desentendimentos pelo sotaque, o consagraria como Pelé.
Enquanto o futebol era apenas uma diversão ao pequeno Edson, chamado carinhosamente de Dico dentro de casa, a frustração de Dondinho se repetia. Em 1942, o centroavante ganhou a grande chance de sua carreira: um teste no Atlético Mineiro. Deixou a família no sul de Minas e partiu ao sonho em Belo Horizonte. Entrou em campo num jogo contra o São Cristóvão, mas justamente naquela partida sofreu a lesão que limitou sua trajetória. Num choque com Augusto, futuramente capitão da Seleção na Copa de 1950, o atacante torceu o joelho. Preferiu não operar, com receio das consequências que uma cirurgia mal feita poderia ter sobre a sua história. Mesmo com o dinheiro da passagem de volta a BH, preferiu ficar com a família no sul de Minas e abrir mão da oportunidade, bem como dos riscos da mesa de operação. Passou a conviver com o joelho direito sempre inchado, rodeado por gelo quase que diariamente, sem solução àquilo que realmente poderia ser.
Em 1944, a sorte dos Arantes do Nascimento parecia mudar. Dondinho recebeu uma oferta para se transferir a Bauru. Defenderia o Lusitana e, não só isso, ganharia um emprego público prometido pelos dirigentes do clube. Em tempos nos quais o futebol não rendia muito dinheiro, o trabalho paralelo soava como um alívio. Celeste se incomodava pela falta de estabilidade do marido jogador de futebol, ao mesmo tempo em que as constantes mudanças de cidade eram motivos de atrito entre o casal. Enfim, as condições se tornavam favoráveis a uma história nos gramados sobre a qual a esposa não tinha tantas esperanças.
A primeira lembrança de Pelé, então com quatro anos, era justamente a mudança do sul de Minas rumo a Bauru. O avô materno, Jorge, carroceiro em Três Corações, levou a família até a estação de trem, onde fariam a viagem. Deslumbrado com a paisagem, o menino Dico quase caiu da janela do vagão, até ser segurado pelo pai. Seria no novo destino onde ele passaria grande parte da infância, ao lado dos outros dois irmãos mais novos, Jair (apelidado de Zoca) e Maria Lúcia. Entretanto, não seria uma história tão agradável aos Arantes do Nascimento. As promessas feitas a Dondinho não seriam cumpridas.
O Lusitana virou Bauru Atlético Clube e, em meio às trocas na diretoria, o emprego público para Dondinho deixou de existir. Ele seria mesmo “apenas” o atacante do BAC. Viraria uma lenda da equipe de Bauru, rival do Noroeste na época, situada numa das principais cidades do interior paulista. Mas não eram os gols que evitavam as limitações da família recém-estabelecida, num casebre de madeira onde viviam sete pessoas. Irmão de Celeste, visto como um irmão mais velho por Dico, Tio Jorge virou vendedor e auxiliava na casa. Tia Maria mudou-se para a capital, onde passou a trabalhar como doméstica numa rica família e auxiliava os parentes com pertences doados. Dondinho precisava se virar como dava, mesmo com o joelho estourado, enquanto Celeste contava com o auxílio da sogra Ambrosina para criar seus três filhos.
“À medida que cresci, comecei a compreender o que era a pobreza. A pobreza é uma maldição que deprime a mente, drena o espírito e envenena a vida. Quando não nos faltava coisas, coisas simples como comida suficiente em casa, ou a pequena quantia necessária para pagar o aluguel, éramos muito felizes. Havia muito amor naquela pequena casa; amor que superava muitas das dificuldades. Mas também houve muitas brigas amargas, recriminações virulentas, batalhas dolorosas pelas necessidades, coisas que dona Celeste teimosamente sustentava ser nosso direito porque Dondinho tinha prometido aquele emprego”, recordaria o Rei, no livro ‘Pelé: His Life and Times', de Harry Harris.
A pequena casa de madeira onde os Arantes do Nascimento moravam possuía um telhado frágil, que tantas vezes não suportava as fortes chuvas. Já nas noites mais frias, a família costumava dormir na cozinha, comprimida corpo a corpo ao redor do fogão à lenha que os aquecia um pouco mais. Dico tinha muitas de suas roupas feitas com sacos de farinha, enquanto costumava andar descalço pela falta de condições dos pais para comprarem sapatos. Ganharia seu par de ir à missa da Tia Maria, usado, doado pelo filho da família rica para a qual trabalhava. Cabia a Celeste manter-se firme para uma boa educação aos seus filhos.
“Qualquer um que julgasse Dona Celeste baseado em seu sorriso amável ou em sua baixa estatura seria surpreendido. Ela mandava em casa com uma autoridade absoluta. Não roubávamos, não mendigávamos, não mentíamos, não trapaceávamos; não falávamos palavrões, a não ser para responder provocações; acreditávamos em Deus e rezávamos a ele regularmente, embora não esperávamos que ele resolvesse os problemas por nós; tratávamos as pessoas mais velhas com respeito; e, acima de tudo, obedecíamos nossos pais”, recontaria Pelé, também à biografia de Harry Harris.
Foi nesta mesma época que a bola tornou-se parte da vida do menino Dico. Ganhou a primeira quando tinha cinco anos, presente de um amigo da família após pegar catapora. Escondeu tão bem a gorduchinha que, no fim das contas, não a achou mais. Então, o jeito era brincar com o que pudesse ganhar um formato arredondado: meias enroladas, trapos, jornal amassado. Era tentar tornar o mais redondo possível, amarrar com um barbante e sair chutando por onde fosse.
Naquele momento, entretanto, a bola não era mais do que uma brincadeira ao pequeno Dico – para o alívio de Dona Celeste. Se a mãe não queria que o filho seguisse os passos do marido como jogador, naquela tenra infância ele ainda pensava em se tornar piloto de avião. Gostava de frequentar o Aeroclube de Bauru e sonhar com os céus. Sua mente viajava junto com aqueles pequenos aviões. Mal sabia ele que ganharia o mundo à sua forma, sem deixar de voar e de dar asas à imaginação.
O próprio Dondinho tratava incentivar Dico a se tornar piloto. Era uma maneira de estimular os estudos ao garoto que costumava aprontar um bocado na escola. Não era dos alunos mais aplicados, enquanto os castigos rigorosos de algumas professoras prejudicavam seu aprendizado. Dona Cida, a primeira professora, foi quem melhor conseguiu fazer o aluno perceber o valor daqueles ensinamentos. Mas a história com os aviões também não duraria muito tempo. Certa feita, o corpo de um piloto chegou ao necrotério de Bauru. Ao lado de outros garotos, Dico viu o falecido em situação calamitosa e passou a ter pesadelos constantes. Preferiria voar mais baixo, por terra, de preferência com a bola.
A infância de Pelé incluía tantas brincadeiras comuns às crianças da época. Gostava de nadar, de comer manga e jabuticaba direto do pé, de colecionar figurinhas de futebol, de ler as histórias em quadrinhos de Tarzan e Flash Gordon. O futebol de botão era uma diversão um pouco mais amarga, porque o irmão Zoca quase sempre ganhava. Enquanto isso, como mais velho, Dico tantas vezes precisava cuidar do irmãozinho enquanto se embrenhava nos jogos de bola pelas ruas da vizinhança. Uma diversão que foi ficando cada vez mais séria. A brincadeira de um menino pronto a virar rei.
“O prazer de chutar uma bola, de fazê-la se mover e responder à minha ação, foi o maior sentimento de poder que eu tive durante a infância”, refletiria Pelé, anos depois. E o grande ídolo o garoto tinha dentro de casa: o próprio Dondinho. Dico não sonhava em ser necessariamente Leônidas ou Zizinho, queria mesmo era jogar como o pai. Tinha medo de sofrer uma lesão grave como a que limitou as perspectivas do atacante, mas poderia ter o melhor professor possível a poucos metros. E o velho mestre não negaria seus truques ao aluno repleto de talento, ansioso por aprender.
Dondinho costumava ver em Pelé a habilidade do próprio irmão, Francisco, falecido com 25 anos, que sequer conheceu o sobrinho. Dondinho dizia que Chico era melhor que ele próprio. Assim, Dico também poderia ser. O pai ensinava ao filho seus dribles, como chutar com as duas pernas. Aconselhava-o como a bebida ou o cigarro representavam riscos ao corpo de quem pretendia um dia virar atleta. Levava o menino ao campo do Noroeste perto de casa, que o clube não mais usava, para aprimorar a habilidade do rebento. E os treinos com o professor particular eram uma enorme alegria, a quem já ficava na rua para jogar das oito da manhã ao meio-dia, voltando depois das cinco, quando saía da escola durante a tarde.
“Dondinho me ensinou muito, não apenas sobre técnica, mas também sobre como me portar dentro de um campo de futebol. Alguns dos dribles e habilidades que depois me ajudariam a marcar tantos gols e ganhar medalhas foram lapidados sob seu olhar vigilante. Ele me ensinou sobre a mágica com o peito do pé, como passar a bola com precisão e a importância de manter um controle próximo. Foi algo que se tornou um tipo de assinatura em meu jogo – passos curtos, cabeça erguida e bola no pé, para garantir o controle enquanto estava driblando um zagueiro. Aprendi rapidamente como usar a mudança de ritmo, de veloz para lento ou ao contrário, para enganar a marcação”, recontaria o craque ao livro ‘Pelé, a autobiografia’.
A dedicação de Pelé à bola, entretanto, precisava ser conciliada com os estudos e também com os serviços para auxiliar em casa. Tio Jorge ajudou Dico a comprar uma caixa de engraxate. Dona Celeste deixava o menino trabalhar apenas na vizinhança, até que ele ganhasse um motivo para acompanhar Dondinho nos jogos do BAC. Enquanto seu pai anotava os gols em campo, o garoto atendia os clientes nas arquibancadas e lustrava seus sapatos. Também chegou a vender amendoim. E o menino rei seria um talismã ao atacante, que teve seu grande momento em 1946, quando foi campeão do interior pelo clube de Bauru. Não demoraria a Dondinho conseguir finalmente o emprego público, melhor remunerado, num hospital da cidade. A partir de 1948, fazia de tudo um pouco na clínica, de limpeza a transportes. Foi quando as condições da família melhoraram.
Com uma infância mais segura, Dico se aproximou do pai. Passou a ouvir mais suas histórias e a se dedicar ao futebol. Sorte do Sete de Setembro, o primeiro time da futura lenda. A equipe reunia os meninos do quarteirão. Pelé vivia na Rua Rubens Arruda, que cruzava em seu final com a Rua Sete de Setembro. O talento notável logo transformou o filho de Dondinho em capitão. Já tinha virado um caminho sem volta, em que o garoto passava a cabular as aulas para bater sua bola – mas não que Dona Celeste aliviasse. A mãe não poupava o prodígio das surras. Preferia vê-lo em sala de aula, temendo o risco de uma carreira frustrada como a do marido. Quem protegia o menino era a avó Ambrosina, mesmo que igualmente não confiasse muito na vida de futebolista. Por sua própria experiência com o filho Dondinho, sabia que o futebol era uma ocupação para a mente, que afastaria o neto de qualquer mau caminho.
“Pé descalço, bola de meia, jogo na areia ou na grama, nada importava, o que eu queria era jogar. Aprendi desde os primeiros dias que não existem os que só ganham e que a vida não é só feita de sucessos. Essa foi a primeira e importante lição que o futebol me deu: aprender a perder e reagir para ganhar na próxima vez. Para mim foi fácil aprender isso e outras coisas mais, pois em casa sempre houve união e meus pais sabiam conduzir-nos pelo bom caminho, com conselhos sábios e sempre sadios. Enganam-se os que, às vezes, chegam a pensar que eu me esqueci da infância, dos primeiros e difíceis dias. Eles estão, para sempre, marcados em minha memória, em meu coração”, recordaria à Placar, em 1971.
O significado do futebol estava enraizado em Dico de uma forma mais ampla. E nenhuma passagem de sua infância é mais famosa do que a maneira como absorveu a derrota do Brasil na decisão da Copa de 1950. Dondinho tinha reunido amigos para ouvir a partida final do quadrangular do Mundial pela rádio. Todos se encontravam eufóricos, inclusive o menino rei. Existia a promessa, inclusive, de que o garoto poderia participar dos festejos no centro da cidade. O gol de Friaça gerou gritaria e aumentou a confiança, enquanto os rojões estouravam. Porém, logo viria o empate do Uruguai. E a dolorosa virada da Celeste, que silenciou o Maracanã. Que fez Pelé, bem como Dondinho, chorarem.
“Eu chorei demais. Fui para meu quarto chorando. Todos estavam desapontados. Não fui só eu a chorar. Muitos daqueles amigos de meu pai também não aguentaram”, relembrou Pelé, à Placar, em 1971. “Fui para o canto do quarto de meu pai e aproximei-me de uma imagem de Jesus Cristo, falando: Por que é que aconteceu tudo isso? Por que é que acontece isso com a gente? Tínhamos mais time, como é que perdemos? Por que, Cristo, nós somos assim castigados?”.
“Eu continuava chorando, emocionado, e prosseguia conversando com Cristo: ‘puxa, se eu estivesse lá não deixava o Brasil perder esse Campeonato. Se estivesse lá o Brasil iria ganhar ou, então, se meu pai estivesse jogando, o Brasil ia fazer o gol que precisava'. Eu era um garoto que amava o futebol, e a derrota entrava fundo em minha alma”, complementou o Rei. “Naquela noite de 16 de julho ninguém saiu às ruas. No dia seguinte, 17, não quisemos sequer ir às peladas normais que realizávamos nas ruas Rubens Arruda ou Sete de Setembro. Ninguém queria conversa. Futebol era assunto proibido”.
O Sete de Setembro logo se tornou uma paixão do menino Dico. Era como um dirigente do pequeno time de rua. Passaria a tentar completar seu álbum de figurinhas para conseguir uma bola como prêmio, chegou a roubar amendoim com os companheiros de equipe para revender na porta do cinema e comprar uniformes. Só não resolveram mesmo o problema dos pés descalços, que rendeu o apelido de “Sem Chuteiras” à equipe de meninos. Todavia, quando chegava a hora da verdade, o Sete de Setembro construía sua fama nos campeonatos infantis de Bauru. Nenhum outro time podia contar com, mesmo que franzino, o futuro Pelé.
O grande momento de glória do Sete de Setembro, rebatizado como Ameriquinha em homenagem ao America do Rio, aconteceu num campeonato bancado pelo prefeito de Bauru. Já não eram mais os “Sem Chuteiras”, com os calçados de segunda mão presenteados por um caixeiro viajante, que também era pai de três meninos do time. Dico fazia maravilhas com a equipe e a decisão atraiu nada menos que 5 mil pessoas às arquibancadas do estádio do BAC. Foi quando o menino rei pela primeira vez experimentou a sensação de uma conquista, sua primeira Copa do Mundo, mesmo que não passasse das limitações de um torneio de crianças da cidade. O gol do título seria anotado exatamente por Pelé, ignorando o fato de ser o mais novinho em campo. Eram as primeiras reverências à futura majestade.
Aquele título, além de tudo, proporcionou a afirmação do nome Pelé. Até então, Dico não gostava muito do apelido que ninguém sabia muito explicar a origem, mas que havia pegado na garotada de Bauru. Ele mesmo se irritava de ser chamado de Pelé, achando que poderia ser um xingamento. Entretanto, quando a massa entoava aquelas duas sílabas mágicas, o projeto de craque logo percebeu que ali estava a sua marca. Edson abria o peito para se transformar em Pelé.
“De todas as memórias que tenho desse dia glorioso, duas coisas se destacam. A torcida gritando meu nome, Pelé, Pelé, num cântico que crescia gradativamente, até que eu percebi que não odiava mais o apelido, mas, na realidade, comecei a gostar dele. E meu pai me segurando firme depois da partida e dizendo que eu fiz um belo jogo, que ele não teria jogado melhor do que eu. Quando chegamos em casa e Dondinho triunfantemente contou as notícias, minha mãe sorriu pela primeira vez com algo que envolvia o futebol”, recontou o Rei, em sua autobiografia.
De tão encantada, a torcida atirou moedas na beira do campo para Pelé. O técnico do Ameriquinha recolheu o dinheiro e entregou ao herói do título: 36 cruzeiros, uma pequena fortuna à família humilde. Dona Celeste, contudo, insistiu que o dinheiro fosse dividido entre todos os colegas de time. Foi o que aconteceu, porque a conquista não era apenas do autor do gol. E essa generosidade o Rei levaria de casa para o resto de sua carreira. Afinal, que ele fosse o maior, nunca seria o único a se consagrar. Tantos companheiros de Santos e de Seleção também se tornariam eternos.
Coube a Pelé se dedicar mais a bola. O menino sobrava tanto nas competições infantis de Bauru que começou a ser proibido de jogar no ataque. Tantas vezes entrava no gol, e exibia um enorme talento na posição. Idolatrava Barbosa, goleiro do Vasco, seu time durante a infância. Também admirava o palmeirense Oberdan e o corintiano Bino, outras referências da posição. Eram os craques que acompanhava por jornais, figurinhas, rádio e, vez por outra, em partidas contra o Noroeste em Bauru. Isso até que um antigo nome da Seleção surgisse no caminho do garoto: Waldemar de Brito. Atacante excepcional com boas passagens por clubes como São Paulo, Flamengo e San Lorenzo, o veterano já tinha pendurado as chuteiras por conta do joelho frágil quando se mudou a Bauru. Tinha um emprego na cidade, enquanto treinava o BAC e também a base, o Baquinho. O filho de Dondinho deixaria o Sete de Setembro para virar evoluir ainda mais sob as ordens do novo mestre, que pegou gosto pelo aprendiz e passava mais tempo com o Baquinho do que com o BAC.
Waldemar de Brito também seria essencial para que Pelé se tornasse imortal. O antigo craque aprimorava ainda mais os fundamentos do prodígio. Era um especialista na arte de marcar gols, que transmitia os macetes ao aluno de rápida aprendizagem. Tinha a confiança de Dondinho e servia como um tutor ao adolescente. Não deixava de cobrá-lo quanto aos estudos, proibia-o de atuar em peladas na rua. E foi assim que o Baquinho, com seu projeto de craque, virou uma máquina de competir na cidade. O time chegou a ser campeão com uma média absurda de 12 gols marcados. Quando Pelé tinha 13 anos, Waldemar conseguiu inclusive arranjar uma partida preliminar para a garotada atuar no Pacaembu, antes de um duelo profissional de clubes do interior. Seriam cinco gols do menino rei, num triunfo por 12 a 0 sobre o Flamenguinho da Vila Maria.
A permanência de Waldemar de Brito em Bauru não seria tão longa, logo de volta à capital. O trabalho do Baquinho entrou em declínio, antes que Pelé atuasse no time de futebol de salão do Rádium e também no Noroestinho, com uma brevíssima passagem por este. Já era um momento em que o adolescente amadurecia cada vez mais, em outros âmbitos da vida. Concluiu seus estudos primários, mesmo após repetir dois anos. Acumulava trabalhos, passando pela linha de produção de uma fábrica de sapatos, por uma lavanderia e por uma quitanda. Era o prestativo filho que também fazia os reparos na casa, das calhas quebradas às goteiras no telhado. E isso como quem se aventurava até a consertar o rádio quebrado. A inteligência não ficava só para as quatro linhas.
A esta altura, Dondinho já sabia que seu filho se tornaria jogador, e dos bons. Tratava de trabalhar sua força mental, outra virtude imensa do futuro rei. “Meu pai sempre me deu sábios conselhos. Ele me dizia que no futebol sempre haverá pessoas para te xingar e pessoas para te aplaudir, é algo com o qual precisamos conviver. Ele dizia que a melhor resposta àqueles que vaiam é marcar um gol contra o time deles. Meu pai poderia ter tido sorte melhor no futebol. Ele era bom de verdade. Sua explicação era simples, e ele sempre repetia: ‘Não basta saber como jogar, você também precisa seguir o caminho correto. E precisa de sorte…’”, relembraria Pelé, em sua autobiografia.
E não era só Dondinho que via a enormidade do talento em Pelé. O primeiro a tentar levá-lo de Bauru foi o Bangu. Observado por um assistente do técnico Tim, outra lenda da Seleção, o clube carioca tentou convencer o garoto a se mudar à Zona Oeste do Rio de Janeiro. Mas os alvirrubros não teriam sucesso, já que Dona Celeste não permitia que seu menino morasse sozinho na capital federal. Por mais que a presença do ídolo Zizinho no elenco banguense fosse tentadora ao adolescente, ele teria que esperar um pouco mais até que viesse a melhor oportunidade. Até que Waldemar de Brito batesse novamente à sua porta.
Quando Waldemar retornou a Bauru, estava a mando do Santos. O clube do litoral vivia sua ascensão e oferecia um ambiente favorável ao desenvolvimento do garoto. Pelé não moraria numa cidade tão grande e receberia a acolhida dos alvinegros. Estaria bem perto do mar, que sequer tinha conhecido ainda. E passou a contar com o incentivo de seus pais. Dondinho confiava em Waldemar, que não precisou de muito para convencê-lo de que o Peixe era o melhor ao menino rei. O jogo mais duro seria com Dona Celeste, para enfim permitir a mudança do filho. O ano era 1956 e o rapaz de 15 anos conhecia sua eterna casa.
Ainda existiu uma pressão do Noroeste, após algumas aparições de Pelé com o Noroestinho, para que o prodígio ficasse no clube. Os alvirrubros ofereceram um salário profissional e ameaçaram cortar relações com Dondinho. No entanto, o pai havia dado sua palavra ao Santos e não voltaria atrás. Nem tinha motivos, diante da maneira como o Santos acolheria o seu menino. Pelé passou a morar na concentração dentro da Vila Belmiro, ao lado de outros jovens da base e também de alguns dos rapazes solteiros do elenco profissional. Não demorou a ser bem recebido pelos futuros companheiros de equipe. E o técnico Lula percebeu de pronto que tinha uma joia rara em suas mãos.
Logo no segundo treino de Pelé, os jogadores dos juvenis participaram de uma atividade com os profissionais. Lula resolveu botar aquele atacante magricela como titular. Bastaram poucos minutos para que ele mostrasse a que veio. Deu um drible seco em Formiga e mandou para as redes de Manga, num gol que serviu de enorme cartão de visitas ao novato. Não era qualquer um que aprontava aquilo, afinal, num elenco que havia acabado de conquistar o Campeonato Paulista. Entretanto, o Peixe ainda teve certa calma no processo de preparar sua promessa. O Rei passaria um tempo com os juvenis para ganhar massa muscular.
De início, Pelé duvidou de sua capacidade. Atravessou as primeiras noites na concentração às lágrimas. Achava que, com seu porte físico, não conseguiria virar jogador. Voltavam os traumas causados pelo joelho de Dondinho. O adolescente chegou a deixar a Vila Belmiro numa madrugada e se preparava para retornar a Bauru. Por sorte, encontrou com Sabuzinho, funcionário do Santos que cuidava da base e trabalhava ao lado de outros familiares nos alvinegros. Sabuzinho tinha saído bem cedo para comprar pão aos garotos e, ao cruzar com o mineirinho, foi ele quem convenceu o futuro Rei a ficar na Vila. Disse que, se não era o mais forte, em poucos meses Pelé se tornaria o mais rápido de todos dentro de campo. Previu o que de fato aconteceria.
Com duas semanas no Santos, Pelé assinou seu primeiro contrato profissional. Ganhava 5 mil cruzeiros, dos quais 4 mil iam para a família, no intuito de comprar uma casa em Bauru. O garoto passava por uma dieta especial para se fortalecer e, mesmo que permanecesse com os juvenis, virou um xodó dos profissionais santistas. É verdade que eles abusavam da boa vontade do novato, pedindo para que ele comprasse cigarros ou refrigerantes na concentração. Mas foi assim que o menino Pelé, apelidado de Gasolina em referência a um cantor da época, passou a se entrosar com os futuros companheiros. Era o mascote de “cobrões”, como ele mesmo dizia – Jair Rosa Pinto, Zito, Hélvio e Formiga.
Pelé ainda sofreria um último momento de vacilação, numa partida com o infanto-juvenil do Santos. O garoto transitava entre os amadores, mas voltou uma categoria para disputar a final do campeonato. Era o mais velho em campo e não fez uma boa partida contra o Jabaquara. Desperdiçou inclusive um pênalti, em chute no meio do gol que o goleiro Fininho defendeu sem tantas dificuldades. Seria outra noite de tormento, em que de novo o adolescente pensou em deixar tudo para trás e tentou abandonar a concentração do Peixe. Mais uma vez, Sabuzinho surgiu em seu caminho para mudar sua cabeça, enquanto os demais companheiros também deram uma boa força. O filho de Dondinho e Celeste não mais viveria em Bauru.
A partir de então, a história seria bem mais conhecida. Em 7 de setembro de 1956, durante uma goleada por 7 a 1 sobre o Corinthians de Santo André, Pelé estreou pelo Santos e logo anotou seu primeiro gol em Zaluar. O primeiro dos 1283 anotados ao longo de sua carreira. Não demorou para, menos de um ano depois, estrear pela Seleção no mesmo Maracanã que deixara cicatrizes em 1950. Não demorou a ser proclamado Rei por Nelson Rodrigues, antes mesmo de alcançar o topo do mundo. Estava em Bauru quando soube, pelo velho rádio, que havia sido convocado para a Copa de 1958. Voltou a Bauru depois como herói, o ainda menino de 17 anos que conquistara o planeta com suas travessuras na Suécia. O filho de Dondinho e Celeste, tão novo, já eternizado como realeza do futebol. Os primeiros passos do maior de todos os tempos. O menino que sempre será rei, porque sempre será menino no coração de quem sonha com futebol.