Brasil

Por que árbitros na Itália se recusam a apitar jogos de um time? E no Brasil, isso pode?

Em entrevista à Trivela, Sálvio Spínola, ex-árbitro Fifa, destrincha especificidades da arbitragem brasileira nesses casos

O árbitro italiano Marco Guida revelou em entrevista à “Rádio CRC” em abril que decidiu não apitar mais jogos do Napoli, clube de sua cidade natal. O motivo? Segurança para ele e seus familiares.

Em agosto de 2023, a Associação Italiana de Árbitros (AIA) revogou a regra de restrição territorial para a escalação de juízes na Serie A. Desde então, qualquer árbitro pode apitar qualquer jogo do Campeonato Italiano, independentemente da região onde nasceu e cresceu.

Apesar do avanço, Marco Guida e Fábio Maresca, naturais da região da Campânia, cuja capital é Nápoles, recusaram-se a arbitrar partidas na cidade do sul da Itália por temerem sua segurança. Simone Sozza seguiu a mesma linha dos companheiros de profissão: originário de Milão, o árbitro de 37 anos escolheu não dirigir o dérbi entre Internazionale e Milan.

— Vivo na cidade de Nápoles e na província. De manhã, tenho de ir buscar os meus filhos e quero estar sossegado. Podemos arbitrar com segurança em Nápoles e é muito provável que isso aconteça. Tanto o Fabio como eu decidimos não o fazer, porque aqui o futebol é vivido de forma diferente em relação a cidades como Milão, por exemplo. Fizemos o que consideramos mais adequado — disse Marco Guida.

— Tenho três filhos e a minha mulher tem um negócio. É uma escolha pessoal. O futebol é vivido com muita emoção. Quando cometia erros, não era tão seguro andar na rua, como, por exemplo, ir às compras. Pensar em cometer um erro na atribuição de um pênalti e não poder sair de casa durante dois dias para realizar as minhas atividades desportivas não me faz sentir sereno — concluiu.

Marco Guida, árbitro italiano
Marco Guida, árbitro italiano (Foto: Imago)

E no Brasil, o que o árbitro pode fazer em casos de ameça?

Ao tomar ciência do caso italiano, a Trivela resolveu traçar um comparativo com o que acontece hoje no nosso futebol. Assim como no país europeu, o árbitro brasileiro pode pedir para não ser escalado em jogos de determinado clube.

Em contato com a reportagem, Sálvio Spínola, ex-árbitro de futebol credenciado pela Fifa, advogado e atualmente comentarista de arbitragem, revelou que o juiz tem autonomia para fazer tal solicitação.

— O árbitro sempre tem autonomia para fazer um documento e pedir que não seja escalado em jogos de determinado time, por qualquer motivo, seja questão de ameaça, falta de conforto, entre outros — pontuou.

Sálvio ainda destacou um procedimento específico da CBF. A entidade máxima do futebol brasileiro tem como praxe evitar que o profissional de arbitragem seja escalado em jogos que envolvam algum familiar do mesmo — caso que já aconteceu.

— No Brasil, é comum a CBF exigir que o árbitro não apite jogos de familiares e/ou de pessoas ligadas a ele. É muito conhecido o caso do Bruno Boschilia, árbitro assistente do Paraná, que esteve na Copa do Mundo, e o jogador Gabriel Boschilia. Eles não atuam nos mesmos jogos por terem uma relação de parentesco.

Bruno é primo de segundo grau de Dulcídio Wanderley Boschilia, ex-árbitro dos anos 70 e 80. Já Gabriel, ex-São Paulo e atualmente no Operário-PR, é sobrinho-neto de Dulcídio. Em 2014, o bandeirinha trabalhou em três jogos do Tricolor do Morumbi no Campeonato Brasileiro, todos com Gabriel entre os relacionados: Grêmio 0 x 1 São Paulo, Figueirense 1 x 1 São Paulo e São Paulo 0 x 1 Chapecoense.

Bruno Boschilia, árbitro assistente
Bruno Boschilia, árbitro assistente (Foto: Imago)

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No futebol brasileiro, o importante é a federação que o árbitro está vinculado (não sua naturalidade)

Diferente do futebol italiano, no Brasil, a naturalidade do árbitro nunca foi critério para sua escalação nos jogos, mas sim a federação a que ele está vinculado. Sálvio explica que os profissionais “pertencem” às federações e são “emprestados” à CBF, logo, o local de nascimento não é a informação mais importante.

— Normalmente, o árbitro não é escalado em jogo do time que é da federação dele. Porque a CBF não tem árbitros, ela usa os árbitros emprestados da federação. Então, por exemplo, um Flamengo x Santos, o árbitro escalado não é nem da Federação Carioca e nem da Federação Paulista. A naturalidade do árbitro não está em jogo. O árbitro pode ser carioca formado na Federação Mineira e vai apitar esse jogo. O que manda é a federação de filiação do árbitro.

Existem 27 federações de futebol no Brasil, uma para cada estado e o Distrito Federal. Filiadas à CBF, essas federações são responsáveis por organizar as competições dentro de suas respectivas jurisdições, além de coordenar a filiação de clubes e a gestão de atletas e árbitros.

Existe algum tipo de apoio aos profissionais de arbitragem brasileiros?

Raphael Claus, arbitro brasileiro do quadro Fifa
Raphael Claus, arbitro brasileiro do quadro Fifa (Foto: Imago)

Sálvio desconhece apoio jurídico aos árbitros por parte da CBF e das federações em casos de ameaça ou intimidação. Dentre as muitas situações tensas que teve de enfrentar ao longo da carreira, o ex-árbitro destacou uma: quando foi jurado de morte pelo presidente do Equador por um pênalti marcado nos acréscimos contra a seleção do país.

Spínola explicou que o chefe do Executivo equatoriano fez pronunciamento público e o ameaçou após o término da partida, válida pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2010. O jogo, realizado em Quito no dia 10 de outubro de 2009, terminou em 2 a 1 para o Uruguai. A derrota complicou bastante a vida do Equador, que acabou não conseguindo a classificação.

— É lógico que a estrutura da arbitragem hoje é muito grande, e acho que se o árbitro pedir apoio psicológico, pode ser que profissionais da área deem esse suporte. Apoio jurídico, eu desconheço. Passei por uma situação muito grave quanto apitava, uma (partida das) Eliminatórias para a Copa do Mundo, acho que para a Copa da África (2010), apitando um jogo no entre Equador e Uruguai, na capital Quito — iniciou.

— Após marcar um pênalti no último minuto do jogo, tive uma situação de calamidade no país, onde o próprio presidente chegou a ir à televisão pedindo pena de morte para mim. Naquele momento, eu acionei a CBF, acionei a Fifa, acionei o Itamaraty, e tive zero apoio. Tive que sair do Equador só com as minhas forças. Naquela época, não tinha (apoio), hoje eu desconheço.

E programas estruturados de proteção pessoal ou familiar — como há em outras profissões de risco —, existem no futebol brasileiro?

— Também desconheço. Não tem nenhum apoio estrutural, de segurança ou de nada. Tem, sim, a Polícia Militar, que dá proteção ao árbitro durante o jogo e na saída do estádio. É comum o árbitro ter que sair do estádio na viatura da polícia, quando toma uma decisão (no campo de jogo) que revolta torcedores e dirigentes. Isso ainda acontece. Inclusive, depois, o árbitro tem que tomar muitos cuidados. Não sair pela rua, até na hora de pegar o voo no dia seguinte, após a partida. Já teve vários incidentes em aeroportos, onde torcedores vieram questionar árbitros, e o árbitro teve que pedir ajuda à segurança.

A reportagem da Trivela entrou em contato com a CBF e recebeu a confirmação de que o árbitro não é obrigado a aceitar a escala. Eles são autônomos e prestadores de serviços. Questionamos também se há algum tipo de apoio fornecido pela entidade a esses profissionais (psicológico e jurídico) em casos de ameaça, mas até a publicação deste texto, não obtivemos retorno.

Foto de Guilherme Calvano

Guilherme CalvanoRedator

Jornalista pela UNESA, nascido e criado no Rio de Janeiro. Cobriu o Flamengo no Coluna do Fla e o Chelsea no Blues of Stamford. Na Trivela, é redator e escreve sobre futebol brasileiro e internacional.
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