Brasil

A Lei da SAF: vantagens sublinhadas, mas muito a analisar

A possibilidade de transformar os clubes em “Sociedades Anônimas do Futebol” foi recebida com estardalhaço, mas as facilidades da nova legislação levantam outras questões

O Ano Novo até parecia ter chegado atrasado para o Botafogo. Em 13 de janeiro de 2022, cerca de 600 torcedores lotaram a sede social do clube e comemoraram bastante a notícia de que o conselho alvinegro aprovou a venda de 90% de sua propriedade ao empresário americano John Textor. Oficialmente, os botafoguenses viam concreta a transformação do clube em Sociedade Anônima do Futebol, a tão falada SAF. Parte considerável da torcida viu a mudança como a abertura de uma nova era de bonança ao seu time — ainda que existam mais perguntas que respostas neste primeiro momento que esta matéria da esporte bet Betway tenta responder.

O sentimento vivido ao redor do Botafogo não é único no futebol brasileiro. Vasco e Cruzeiro também experimentaram reações parecidas, enquanto outros times iniciaram seu processo de transformação em SAF desde o final de 2021 — mesmo sem a presença confirmada de um investidor para adquirir ações. Há aqueles que vislumbram uma tábua de salvação, outros que almejam uma expansão. Não se nega que existe uma oportunidade.

A aprovação da Lei N° 14.193, a chamada “Lei da SAF”, garantiu um novo mecanismo jurídico para a operação dos clubes de futebol no Brasil. Os times interessados já tinham caminhos abertos para se transformar em empresas no país, inclusive em sociedades anônimas. Porém, não com o regime tributário especial — com as taxas de impostos mais próximas às das próprias associações. Também não com as aberturas garantidas na renegociação de dívidas. Tais benefícios carregam consigo obrigações, mas pesam bem mais na hora de atrair investidores que antes viam empecilhos maiores na hora de atuar no futebol. É essa empolgação que circunda alguns clubes de massa até então afundados.

Há motivos para se acreditar numa guinada. Os times ganham uma injeção financeira, recebem novas perspectivas para quitar seus débitos e precisarão operar dentro de critérios que exigem mais transparência. Contudo, muitos dos caminhos serão descobertos com o tempo. A chegada de um novo dono não é a garantia de que a gestão será bem feita e nem que as promessas serão cumpridas. Mais importante, o futebol não é uma ciência exata e, mesmo que as contas se acertem, isso não resultará necessariamente no sucesso esportivo. Todos os anos, só um vence o Brasileirão, só um vence a Copa do Brasil. E a própria Lei da SAF deixa abertura para que cada clube conduza seu processo interno, o que desde já causa entraves sobre direitos.

“O brasileiro precisa ficar de olho em dois pontos principais. O primeiro é sobre que SAF está sendo criada, o que está sendo colocado nessa SAF. Depois, quem está comprando essa SAF, qual o perfil desse investidor, qual a índole desse investidor, qual a perspectiva dele com o clube. Estamos falando de clubes com características muito distintas, expectativas da torcida muito distintas, e isso também vai pesar”, afirma o jornalista e pesquisador Irlan Simões, organizador do livro ‘Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol’.

Já Luciano Motta, advogado especializado em direito desportivo e autor do livro ‘O mito do clube empresa’, sinaliza que mesmo as vantagens prometidas na Lei da SAF correm o risco de não serem cumpridas: “Para além do aspecto filosófico, ou seja, da discussão do quão eficaz uma mudança legal se traduz numa mudança de postura social, tem-se o fato da lei não ter sido muito bem elaborada nesse aspecto. Se adicionar-se a fragilidade que a sociedade brasileira tem em respeitar aspectos legais e todas as consequências desse fato, a situação torna-se mais crítica”.

O contexto brasileiro

Ao longo da história do futebol brasileiro, os clubes do país operam como associações civis. São entidades sem fins lucrativos, que contam com suas massas de associados para organizar o funcionamento como instituição e decidem os rumos tomados. Ser bem gerido ou mal gerido não é algo inerente ao modelo. Existem clubes mais profissionais ou menos profissionais, mais democráticos ou menos democráticos, mais viáveis ou menos viáveis. E nem sempre isso andou de mãos dadas com títulos, cabe dizer. Verdadeiras bagunças já se consagraram com taças e bastidores serenos lidaram com o caos do rebaixamento.

O que existe, dentro da associação civil, é um regime político interno que tantas vezes atravanca práticas de boa gestão. Mas que não impede uma boa governança, mesmo sem um investidor para assumir as rédeas da condução. Além do mais, o jogo político externo aos clubes também explica problemas que chegaram ao limite. Dívidas acobertadas e falta de regulamentação em diferentes níveis geraram uma bola de neve que levaram alguns clubes a crises praticamente incontornáveis.

Especialmente nos últimos 25 anos, o poder público no Brasil até atuou de maneira a possibilitar a quitação de dívidas e abrir caminhos a uma gestão mais racional dos clubes de futebol. Em 1998, a Lei Pelé chegou a estipular um prazo de dois anos para que as associações civis se tornassem empresas, o que foi revogado depois de um grande imbróglio jurídico. Clubes-empresa surgiram de norte a sul do país desde os anos 1990, mas sem as benesses e os estímulos existentes às associações civis. O poder público continuou oferecendo caminhos aos clubes associativos, como o Profut em 2015, que passou a incentivar a transparência e a responsabilidade fiscal através de um reparcelamento de dívidas por 20 anos, com redução de juros e multas.

O Profut não impediu que as dívidas de muitos clubes aumentassem nos últimos anos, seja pela ingerência ou por um contexto de crise maior que suas próprias realidades. Da mesma forma, seguia uma demanda pela abertura das associações civis a investidores que desejassem atuar no futebol, mas dentro de um contexto específico que não tratasse os clubes com os encargos existentes a qualquer empresa. É nesse momento que a Lei da SAF se insere, espelhando um cenário comum a clubes de futebol de diferentes cantos do globo.

Clubes de futebol há décadas possuem donos em países como Inglaterra e Itália. O processo de transformação em sociedades anônimas com regimes específicos, por serem entidades esportivas, também rege a modalidade em Espanha e Portugal, mesmo na América do Sul no Chile. Há mesmo países que não abandonam o modelo de associação civil, concedendo aberturas a investidores, como a Alemanha. Restava ao Brasil criar suas próprias especificidades, o que ocorre com a Lei da SAF.

Irlan Simões, aliás, reforça como a Lei da SAF no Brasil é bastante distinta da legislação que vigora em outros países: “É difícil comparar porque cada país tem sua realidade. O caso do Brasil é um processo que vem muito depois dos outros, que você pega clubes de grande história e vencedores com dívidas impagáveis, mas você não tem obrigatoriedade. Então, o que ocorre é que você tem um processo facultativo, uma lei que veio para criar uma verdadeira mamata para quem quer comprar clube, porque cria circunstâncias que nenhum outro país criou. Mas, de todo modo, você não tem obrigação. Os clubes podem escolher o formato que quiserem, o modelo que quiserem, para quem vão vender, para quantas pessoas, como vai dividir esse capital”.

Nossa equipe de esporte bet montou uma série de infográficos sobre a SAF. Neste abaixo, confira a situação dos clubes brasileiros neste momento.

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Vantagens e desvantagens na mesa

Conforme a Lei da SAF, os clubes brasileiros que passarem pela transformação não precisarão deixar de ser associações civis. A mudança até pode acontecer de maneira total, mas, por enquanto, o mais comum é ver associação e sociedade anônima coexistindo. O antigo sistema associativo ainda é o detentor das dívidas. Entretanto, os ativos passam à SAF, que ganha mais liberdade de gestão. Precisa atender critérios de transparência e passa por uma fiscalização maior, com riscos de falência, mas com uma tributação vantajosa.

É por isso que a Lei da SAF se torna atraente a tantos investidores: a “riqueza” de cada clube fica em suas mãos, assim como o poder decisório sobre os próximos passos. A associação civil ainda possui certos direitos sobre a propriedade intelectual do clube, mas seu papel se torna reduzido. Quem poderá explorar a marca de um clube são os investidores. Há um gasto significativo estipulado e a assinatura de compromissos. Em compensação, o poder se torna intransferível e o investimento por parte dos novos donos não precisará ser contínuo, além do montante designado no acordo inicial.

De uma maneira geral, as responsabilidades dos investidores da SAF não são exatamente onerosas. Na renegociação das dívidas, eles deverão repassar 20% das receitas e 50% dos dividendos para a quitação. Tal taxa é recompensada com uma centralização dos débitos, que auxilia o pagamento ao englobar diferentes credores, em um período de 10 anos que estende esse pagamento. As responsabilidades sociais também não atravancam tanto assim o processo, com o cumprimento de medidas educativas e um foco maior nas categorias de formação, inclusive a feminina, em iniciativas que representam frações em relação ao dinheiro que é movimentado dentro do futebol de elite no Brasil.

O que foi pensado para atrair investidores, todavia, não contempla totalmente cenários desfavoráveis aos clubes. A depender do percentual da SAF negociado com os novos donos, a limitação de ações da associação civil dentro da sociedade será grande. Existem até mecanismos para que a associação impeça decisões como a mudança de símbolos ou mesmo que permita a reorganização societária. Contudo, o texto da lei não é muito claro em pontos como o futuro das licenças esportivas em caso de falência ou então questões sobre os patrimônios físicos. Caberá aos próprios clubes, em seus acordos, observarem bem quais os seus passos e quais cláusulas foram acertadas.

Sobre as brechas na legislação, Luciano Motta está entre aqueles que reivindicam mudanças desde o início das discussões: “Antes das adesões a lei já apresentava várias falhas, exaustivamente expostas e compartilhadas por especialistas. Desde situações mais simples, como a necessidade de um capital social mínimo e de sua manutenção, até situações controversas envolvendo movimentação patrimonial sem nenhum tipo de controle. As disputas legais, eventuais casos de falência (tão comuns no meio empresarial) simplesmente irão expor as debilidades, muitas vezes camufladas, ignoradas ou mesmo ocultadas”.

Para Motta, a maneira como a discussão foi acelerada é causa desse entrave: “De forma geral, a lei partiu da premissa da urgência urgentíssima. Sob essa bandeira pulou etapas que seriam de grande valia para, quiçá, elaborarmos uma lei interessante (ou mais interessante)”.

O que olhar lá fora

A Lei da SAF oferece suas particularidades ao Brasil. Mesmo que outros países possuam suas regulamentações distintas e seus próprios contextos, também é possível notar acertos e erros que tendem a se repetir nos clubes brasileiros. Há exemplos para muitas equipes daqui seguirem, mas também riscos aos quais os torcedores precisam estar mais atentos.

A Alemanha, por exemplo, preserva um modelo no qual o poder decisório se mantém entre os associados do clube — com a famosa regra do 50+1. Até existem exceções no país, mas as associações civis alemãs continuam com mais de 50% das ações e evitam que investidores tomem rumos indesejados. Há também contrapartidas, como uma própria barreira no limite de investimento de cada clube. Mesmo assim, isso não impede a ascensão de clubes bem geridos no contexto local.

Também é preciso dizer que um clube com bons resultados não precisa ter um magnata por trás. A Atalanta é um exemplo claro de crescimento sustentável no futebol italiano, com aposta nas categorias de base e boas ações no mercado de transferências. Não à toa, a família Percassi vendeu 55% de suas ações do clube por €500 milhões. Aproveitaram a valorização ocorrida durante os últimos anos, com boas campanhas na Serie A e participações na Champions League.

Porém, um negócio favorável ao investidor no futebol não necessariamente dependerá de ganhos esportivos. Basta ver o caso do Newcastle, que contou com gastos mínimos de seu antigo proprietário, Mike Ashley. Os Magpies se acostumaram a fazer campanhas na parte inferior da tabela e não traziam grandes contratações, mas o empresário não indicava mudanças na sua operação e não se mostrava disposto a novos investimentos. Os torcedores estavam de mãos atadas e mesmo a controversa chegada do fundo público da Arábia Saudita foi bem recebida na cidade. Ashley embolsou £300 milhões ao vender 80% das ações, um baita negócio considerando sua inércia.

“Muitas vezes não se tem uma compreensão concreta de que as perspectivas e os interesses do proprietário nem sempre batem com a expectativa do clube, de buscar um título, buscar um patamar esportivo mais alto. E o risco da própria atividade econômica desregulada, que é o futebol. Poucas atividades econômicas conseguem ser tão insanas como o futebol, em que você tem que buscar os resultados esportivos mesmo que eles comprometam os resultados financeiros. O que a gente vê no futebol dos tempos atuais é basicamente isso: os grandes vencedores não são clubes que dão retorno financeiro. Os clubes que dão retorno financeiro de fato são os clubes mais medíocres que você tem à disposição nas ligas do mundo inteiro. Então essa relação entre dinheiro e vitórias não necessariamente estão casadas”, afirma Irlan Simões.

Há ainda casos mais extremos, como o do Belenenses, em Portugal. O grupo Codecity, do empresário Rui Pedro Soares, adquiriu 51% das ações e passou a centralizar as decisões, sem diálogo com a associação civil. Não fazia investimentos, não ajudava com os custos do estádio, não usava a base. Ainda se envolveu em casos de corrupção e agressão. A cláusula de recompra por parte dos associados foi derrubada pela justiça e, assim, ninguém poderia tirar o Codecity do poder. Em 2018, o clube se rompeu em dois: o chamado B-SAD, como sociedade anônima, manteve o time profissional na primeira divisão; a associação Belenenses formou uma nova equipe com jogadores da base na sexta divisão, ao menos preservando o patrimônio — o estádio e o centro de treinamentos, bem como escudo e demais elementos históricos.

Irlan Simões salienta como a perspectiva de imobilidade é pouco abordada no Brasil: “Se o dono atravessar uma terceira ou quarta temporada com resultados medíocres, você não tem a menor capacidade de esperar que ele saia. Você vai tentar pedir para ele mudar o corpo de profissionais da SAF, mas você não pode fazer nada, simplesmente não existe possibilidade nenhuma de alterar o estado das coisas por um processo de renovação que acontece, por exemplo, nas associações, onde você tem uma má gestão que não é reeleita ou então não tem continuidade porque os profissionais são ruins, as ideias são ruins, as práticas são ruins. A SAF vai ficar à mercê do interesse do proprietário”.

Mesmo clubes bem geridos não estão isentos de outros imbróglios dentro do modelo de sociedade. O Sevilla é uma agremiação exemplar, pelos resultados esportivos alavancados durante as duas últimas décadas e também pela gestão financeira que faz seu caixa girar. Porém, em seus bastidores, prevalece uma disputa política entre seus acionistas — com os ativos divididos entre antigas famílias que compunham massas de associados. Mesmo a chegada da 777 Partners, que se tornou dona do Vasco, criou uma cisão na disputa pelo poder. O grupo americano se aliou ao antigo presidente na tentativa de aumentar sua participação, rompendo assim com os atuais mandatários.

Outro ponto para se ter em mente é que os clubes que realmente entram no jogo por títulos maiores não são aqueles que possuem proprietários que desejam ganhos financeiros, mas sim os que estão mais interessados na influência política que o futebol traz consigo. Exemplos como o Chelsea, Manchester City e Paris Saint-Germain existem, mas são exceções. Fazer um clube ser vitorioso e rentável é algo ainda mais raro. “Existem clubes bem geridos, mas a realidade é sempre essa: você está competindo num ambiente de desigualdade financeira muito grande e os vencedores são os que gastam mais do que podem, porque seus proprietários realmente não têm preocupação nenhuma com o retorno financeiro daquela atividade”, assinala Irlan Simões.

O que já se nota aqui dentro

Por conta das vantagens oferecidas pela Lei da SAF, um primeiro perfil identificável de clubes iniciou suas transformações: times com grandes torcidas e histórias de peso, mas com dívidas imensas e passagens recentes pela segunda divisão. Naturalmente, eram grandes oportunidades, considerando que as equipes em baixa poderiam se valorizar muito mais quando estivessem em alta. Por isso, investidores logo surgiram. Botafogo, Cruzeiro e Vasco foram os primeiros que embarcaram na nova possibilidade jurídica.

No entanto, cada clube possui a sua especificidade. O Vasco negociou 70% de sua SAF e conseguiu uma promessa de investimento maior por isso, na casa dos R$700 milhões, além do pagamento de suas dívidas. Botafogo e Cruzeiro cederam 90% por R$400 milhões mais a quitação das dívidas e, com esse percentual, possuem margens menores de manobra diante de uma possível mudança de direção. Prova disso é o que acontece com os cruzeirenses, com um imbróglio envolvendo a administração da Toca da Raposa I e II, o que gerou uma disputa interna e dúvidas sobre a própria continuidade de Ronaldo como investidor celeste.

Se de um lado a urgência gerada pelas dívidas acelerou os processos nos três clubes, por outro há aqueles que preferem passos mais contidos. Alguns clubes já conduziram as discussões internas de transformação em SAF, como Coritiba e Chapecoense. Não quer dizer que, neste primeiro momento, fecharam com investidores. Clube de Série A, o Cuiabá mudou seu estatuto como clube empresa para SAF na intenção de aproveitar melhor os benefícios da nova legislação. E ainda há uma série de equipes de menor projeção que esperam que os investidores alavanquem suas possibilidades. É o caso do Athletic Club, de São João del Rey, que disputa a primeira divisão mineira e vendeu 49% de suas ações a um grupo de empresários.

Para Luciano Motta, duas questões elementares devem ser analisadas no momento em que um clube avalia a adesão à Lei da SAF: “Ter claro qual é o ponto de partida. Isto é, de forma transparente, detalhada e assertiva, saber qual é a real situação econômico-financeira que o clube está vivendo. Em segundo lugar, verificar qual o objetivo e quais os caminhos estão disponíveis para a minha realidade específica”.

Motta também enfatiza como a falta de um processo bem estruturado pode ser danosa: “O problema não está em ser inovador e/ou célere. O grave problema é, sem nenhuma análise crítica, se aventurar sem conhecimento de causa, que, infelizmente, é majorado por um ‘frenesi midiático’. Pesa, ainda, uma práxis atabalhoada, a pular etapas; sem mensurar os riscos, sem análise, sem estudo. Não adianta surfar em uma onda sem saber nadar. A chance de cair e morrer afogado é enorme”.

Por mais que a Lei da SAF traga incentivos, os clubes brasileiros não deveriam perder de vista que a gestão equilibrada e a transparência são diretrizes constantes, sem depender de uma legislação específica. Deveria ser o norte da governança, tanto em associações civis quanto em sociedades anônimas. E não é o fato de que o investidor injete dinheiro que o impedirá de gerar novas dívidas e causar outros problemas. A boa administração depende das pessoas que a fazem, e não necessariamente da lei que a orienta.

Um exemplo é o que ocorreu na própria Espanha, onde a criação de sua lei das sociedades anônimas desportivas surgiu em um momento de grandes dívidas públicas dos clubes. A intenção com o novo movimento era gerar mais dinheiro ao redor do futebol e, assim, sanar os débitos. Nem todas as agremiações fizeram isso e a própria postura complacente das autoridades com os problemas dos times causou novos endividamentos massivos. Algumas equipes tradicionais precisaram se reconstruir a partir das divisões de acesso, mesmo que sem declarar falência. Casos como os de Deportivo de La Coruña e Racing de Santander se inserem nesse contexto. Considerando as relações de poder no Brasil, não dá para afastar essa hipótese.

Quanto se paga

Outra questão central neste primeiro momento da Lei da SAF são os valores envolvidos nos negócios. Os novos investidores realizam uma promessa inicial de aporte financeiro, que pode ser dividida ao longo dos anos, e têm o dever de quitar dívidas astronômicas que chegam à casa do bilhão. Apesar disso, há quem veja os montantes envolvidos como baixos para o que realmente valem os clubes brasileiros. É o que criticou Mário Celso Petraglia, presidente do Athletico Paranaense, outro clube que alinha sua transformação como SAF para os próximos meses.

“O que estamos vendo atualmente são os clubes se entregando a investidores por preços absurdamente baixos. É o preço de um jogador”, afirmou Petraglia, em entrevista ao site UmDois Esportes, concedida em fevereiro. O cartola athleticano leva em consideração a promessa de investimento, não a dívida assumida. Jogadores vendidos por €100 milhões, cifra esta já batida 12 vezes, valem mais que o investimento prometido em Botafogo ou Cruzeiro. A desvalorização do Real como moeda acaba amplificando essas diferenças e tornando o futebol brasileiro até mais atrativo a investidores estrangeiros.

Por enquanto, essas primeiras negociações acabam regidas mais pelo problema a se assumir do que por aquilo que o clube pode render. O repasse dos ativos foi bem mais pautado pelas dívidas exorbitantes. Porém, os três clubes citados possuem um valor de mercado considerável, dado o tamanho de suas torcidas em território nacional e também o reconhecimento internacional de suas marcas. E é dessa capacidade que os investimentos pré-determinados vão se beneficiar, já que são a chance de impulsionar a parte esportiva e, assim, valorizar mais os ativos. Desembolsar R$400 milhões pode até parecer um valor acessível, pelas cifras envolvidas no esporte — ainda mais quando parte desse dinheiro, após um primeiro momento, pode ser revertido dos próprios lucros do investidor com o clube.

E, que se leve em consideração a diferença dos mercados ou mesmo o peso das moedas, os clubes brasileiros aparecem atrás de outras equipes europeias negociadas nos últimos anos. John Textor pagou por 18% do Crystal Palace pouco mais da metade do valor total da dívida do Botafogo. Já a 777 Partners adquiriu o Genoa por um valor superior que os débitos acumulados pelo Vasco. Que ambos os clubes estejam em ligas com receitas muito maiores que o Brasileirão, o potencial local de ambos também é inferior ao de botafoguenses ou vascaínos em tamanho de torcida e representatividade nacional.

É importante ter em vista que, embora a Lei da SAF se volte inicialmente às dívidas, a projeção de investimento é que realmente deveria impulsionar sua expansão no Brasil. Por isso mesmo, a tendência é que as próximas vendas no país não aconteçam em processos tão acelerados. Os clubes poderão avaliar melhor suas possibilidades no mercado e a atratividade. Também deverão buscar mais de um investidor, vendendo parcelas menores de suas SAF. Não há a necessidade de abraçar o primeiro “salvador da pátria” que surgir e, com isso, já comprometer 90% de seus ativos.

Irlan Simões alerta, aliás, a falta de cogitação sobre modelos mais abertos: “Eu acho muito curioso que no Brasil não tenha acontecido isso ainda: os clubes terem conseguido conceber que mais de um grupo pode participar da sociedade do clube de futebol. Eu acho até seguro que você tenha interesses diferentes, perspectivas diferentes. Você pode ter um desses grupos que vai querer sair do negócio, outro pode adquirir essa participação”.

Se as dívidas tornam alguns movimentos mais urgentes do que outros, alguns clubes poderão pensar em sua transformação em SAF como neste sentido de abrir leques. Considerando receitas altas e balanços superavitários, a chance de conseguir investidores com maior capacidade de investimento é considerável — ainda que isso traga também o ônus de dividir os lucros, em vez de reinvesti-los apenas no departamento de futebol, como o modelo associativo permite.

“Tem clubes que estão organizados, com suas contas equilibradas, não têm muitas dívidas e enxergam a SAF como uma possibilidade de dar um salto, sair da prateleira de baixo para a de cima. E isso pode acontecer? Pode. Eu acho que existem muitos fatores que impedem nesse caso, como no caso de você ter um mercado consumidor e um público torcedor, mas uma SAF pode permitir isso”, adiciona Irlan Simões. “Se a gente estiver falando dos clubes que estão muito endividados, a SAF é uma saída quase inevitável. Deve ser vista como um meio, não um fim. Podem criar SAF’s ao mesmo tempo em que profissionalizam a associação. Isso também poderia estar nessa discussão, mas não, os clubes brasileiros já estão sendo vendidos em baixa, nossa moeda é horrorosa, está desvalorizada. Aí aparece qualquer americano com 100 milhões de dólares e pra gente é uma fortuna inestimável. Isso se torna algo quase irrecusável, quando, na verdade, todo negócio é recusável”.

Confira o infográfico em que comparamos a venda dos clubes europeus x os clubes nacionais.

Quem paga

Os três principais investidores que desembarcaram no Brasil têm ligações anteriores com o futebol. Ronaldo dispensa apresentações por sua carreira como jogador e, como dirigente, realizou seu principal investimento no Valladolid, a partir de 2018. John Textor chegou ao Crystal Palace em 2021 e negociou com o Benfica, adquirindo ainda o Molenbeek, da Bélgica, depois do Botafogo. A 777 Partners primeiro comprou cerca de 10% do Sevilla em 2018, até abocanhar 99,9% do Genoa em 2021. Ainda assim, esses antecedentes significam pouco aos clubes brasileiros que assumem.

Primeiro, porque essas experiências iniciais ou são muito curtas ou não possuem sucessos expressivos. Mesmo naquelas que se desenvolvem há mais tempo, o Valladolid acabou rebaixado com Ronaldo e a 777 Partners tem mínima influência no sucesso que já ocorria com o Sevilla. Sequer dá para traçar os objetivos desses investidores: se querem absorver lucros futuros, se querem alavancar suas imagens através do futebol, se desejam que um sucesso no Brasil permita a compra de times em outros países. As respostas virão com o tempo, e as três torcidas sentirão na pele se algum deles não for o benfeitor imaginado por muita gente.

É dessa maneira que a Lei da SAF também expõe o futebol brasileiro: se uma “carta de intenções” teria pouco efeito prático, a legislação não oferece proteção suficiente em relação aos possíveis compradores. Eles podem ser meros aventureiros que não saberão dirigir um negócio tão específico como o futebol, que não depende só de acertos para dar certo em campo. Mas, pior, eles podem não ter o dinheiro prometido e gerar entraves ainda mais graves. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Milan, salvo por um fundo de investimentos que dava garantias ao calote do chinês Li Yonghong.

Enquanto as cifras são colocadas adiante dos nomes, contudo, o avanço na análise é pequeno. Como afirma Irlan Simões: “Eu acho que o grande lance ideológico dessa parada é isso: como o dinheiro encanta. O dinheiro impacta o debate. O debate é interditado quando você fala de 700 milhões. Como, pra onde, quando 700 milhões? E depois de 10 anos, que dinheiro vai ser, como vai ser? Basicamente o que motiva isso é a crença que os novos proprietários serão bons gestores. Mas eles podem não ser, o fato é esse. O futebol é uma ciência muito específica, o cara ser bom na gestão de uma empresa de efeitos especiais de Hollywood é uma coisa, gerir um clube de futebol é um negócio totalmente distante”.

Uma das falhas da Lei da SAF que precisa ser aperfeiçoada é a ausência de uma avaliação inicial sobre os investidores. Não há uma barreira para analisar a fonte do dinheiro prometido e a viabilidade das vendas. O futebol pode não ser o negócio mais rentável ou que possui menos riscos embutidos. Por outro lado, a falta de regulamentação e as brechas existentes alimentam um histórico de contravenções distribuído por inúmeros países — inclusive o próprio Brasil.

Se a legislação não oferece um resguardo tão grande nesse sentido, caberá aos próprios clubes estabelecerem seus mecanismos. E a torcida pode ter um papel importante nesse processo. Dependerá da maneira como tal investidor será recebido. O futebol brasileiro pode atrair gente querendo impulsionar o esporte no país para fazer dinheiro, mas isso não impede oportunistas de também surgirem para tratar times históricos como meros brinquedos — dos quais podem se cansar rapidamente.

O que a Lei da SAF não faz

Entre as cautelas que a Lei da SAF demanda, uma fundamental é o seu impacto dentro do futebol brasileiro. No melhor dos cenários, a nova legislação pode ajudar clubes a resolverem suas dívidas e também trazer uma nova onda de investimentos. No entanto, há muito a se fazer dentro das estruturas do futebol, até para permitir que esses ganhos se maximizem.

O verdadeiro impulso do futebol brasileiro depende de mudanças estruturais. A adoção de um calendário mais lógico e menos contraproducente é um passo fundamental. Também a unificação na venda dos direitos de transmissão para fora do país e novas maneiras de aumentar a visibilidade do Brasileirão. Não menos importante é a racionalização da organização, em vez das trocas políticas que tantas vezes imperam nos bastidores. Um ambiente mais saudável e profissional reverbera na própria profissionalização dos clubes.

Assim, o cumprimento de um Fair Play Financeiro não deveria estar atrelado apenas à transformação em SAF. Um cenário mais seguro aos investidores é o que realmente poderia tornar o mercado brasileiro mais atrativo, também a patrocinadores e outras formas de parceria que não se limitem apenas à venda dos ativos dos clubes. A valorização precisa partir da própria gestão do esporte no país, não de quem chega de fora, embora esses possam aumentar a pressão para que outras mudanças necessárias ocorram.

O ponto é: enquanto uma liga no país parece estar no forno para lidar com pelo menos parte dos problemas, os clubes precisam saber gerir suas possibilidades. Não dá para tratar a transformação em SAF como uma antecipação de receitas após um momento de crise, como tantas vezes já aconteceu com os direitos de transmissão. Até por isso, num momento em que for possível gerar mais receitas, os clubes poderão fechar negócios mais vantajosos.

“É muito difícil, pela lógica imediatista que a gente tem no futebol, explicar que pegar muito dinheiro agora e daqui a cinco anos não ter mais esse dinheiro sobrando é uma questão até de cautela, de pensar a longo prazo, de perspectiva. O torcedor é imediatista, ele quer o dinheiro entrando. Ele acha que qualquer dono de clube é um mecenas, um sugar daddy, mas não é. Esses valores encantam muito. Você pode explicar que o clube pode se organizar a partir da criação de um estatuto mais aberto, mais transparente, uma organização mais profissionalizada, com órgãos que se fiscalizam, que se controlam, mas não passa muito pela cabeça do torcedor que isso é possível”, orienta Irlan Simões.

No que ficar de olho

Passada a empolgação inicial, a discussão sobre a SAF no Brasil deveria ser mais técnica e menos passional. A imprensa e os próprios clubes deveriam enfatizar essa abordagem, como uma necessidade de proteção. A fiscalização, afinal, não parte apenas da justiça e de órgãos controladores. O futebol tem nos torcedores um poder moderador potente e eles precisam estar cientes dos cenários possíveis para ações mais efetivas.

“O torcedor fazer o oba oba pelo dono eu acho que é enfraquecer a posição do clube, fazer o dono se tornar maior que o clube. E isso é ruim. Em algum momento isso vai ser muito ruim para muitos casos de clubes, porque a tendência é que esses pretensos investidores (porque não sabemos se eles vão investir) cheguem com maior força de negociação que qualquer clube. Esse é o perigo”, conclui Irlan Simões.

Ter a possibilidade de negar propostas, algo tão básico, também deveria ser mais contemplado. Como complementa Simões: “Qualquer negócio pode ser negado por algo melhor, desde que você tenha capacidade e condições de fazer sua posição na negociação ser melhor que a de ontem. E a verdade é que os clubes não quiseram negociar, não quiseram se organizar para chegar na mesa de negociação da melhor forma possível, eles só fizeram a negociação a toque de caixa. Isso passa pela discussão do que o torcedor deve fazer nesse processo”.

Indo além do que estará na mesa, o futebol brasileiro tem seus meandros e seus contextos conhecidos. Que a Lei da SAF seja uma novidade, as décadas de politicagem e ingerência no esporte deveriam deixar todos mais atentos. E esse tipo de problema antigo não se exclui com uma nova legislação, especialmente quando ela possui suas brechas.

As experiências de clubes-empresa no Brasil anteriores à SAF, aliás, poderiam ser mais esclarecedoras. É o que pontua Luciano Motta, salientando como cada clube deveria se preparar à transformação: “A mudança tem que ser interna corporis, independentemente do rótulo externo que se dê. A vinculação a um futuro investidor não pode ser meramente econômica; há que se analisar vários aspectos, pois metaforicamente é como se fosse um casamento. Por fim, já prever ao máximo as condições e termos de divórcio”.

Você ainda tem dúvidas sobre a SAF. É normal que tenha. Por isso, montamos o FAQ da SAF: vantagens e desvantagens do modelo adotado no Brasil. Veja abaixo.

Os próximos meses serão decisivos ao futebol brasileiro, seja pela introdução de muitos clubes ao novo universo, seja por outras mudanças geradas pelas demandas dos negócios no esporte. Há uma necessidade inegável de profissionalização, que já poderia ser alavancada anteriormente de outras formas, clube a clube. Agora, com os novos mecanismos jurídicos, o futebol brasileiro não pode se deslumbrar achando que tudo melhorará de uma hora para outra. Velhos entraves continuarão aparecendo e, sem um trato verdadeiramente racional, necessitarão de outra “lei salvadora” num futuro não tão distante.

Foto de Equipe Trivela

Equipe Trivela

A equipe da redação da Trivela, site especializado em futebol que desde 1998 traz informação e análise. Fale com a equipe ou mande sua sugestão de pauta: [email protected]
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