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A devoção ao rei: a última homenagem a Pelé e as doces lembranças da legião de súditos na Vila

Milhares de torcedores encararam filas longas debaixo de um forte sol para se despedir de Pelé na Vila Belmiro e contaram histórias sobre o Rei

José Luis estava na fila quando apareceu um grupo de garotos maiores do que ele, ainda com 11 anos, e levaram o seu ingresso. Seria uma história triste em qualquer contexto. É um pouco mais porque o jogo no qual ele estava prestes a ingressar era a final da Copa do Mundo de 1970 entre Brasil e Itália. A consagração final do Rei Pelé. Luis é mexicano e um torcedor do Pumas de 65 anos que mora no Brasil há mais de uma década e trabalha em uma agência de turismo. “Estava para entrar, chegou um grupo de amigos, não eram meus amigos, eram grandes, levaram meu ingresso e me deixaram fora do estádio. Roubaram o ingresso e tive que ver o jogo na parte de fora do estádio”, diz, em entrevista à Trivela. A menos que tenha desistido após conversar com a reportagem, esta segunda-feira acabou sendo o dia em que viu Pelé com os próprios olhos pela primeira vez. 

“Venho aqui para homenagear Pelé”, acrescenta na parte final da imensa fila de apaixonados pelo Rei do Futebol que se estende por quarteirões e quarteirões em torno da Vila Belmiro desde as primeiras horas desta segunda-feira. Pelé fez de Santos a capital do futebol nos anos sessenta. Embora excursionasse, a cidade era o local mais confiável para ver o maior jogador do mundo. Tornou-se destino de peregrinação novamente, atraindo autoridades como o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, prefeito e governador de São Paulo, os presidentes da Fifa, da Conmebol e da CBF, delegações estrangeiras e mais de mil jornalistas de dúzias de países diferentes.

José Luis, o torcedor do Pumas que não conseguiu entrar no Azteca em 1970 (Foto: Bruno Bonsanti/Trivela)

Estádio de futebol há muito tempo, a Vila Belmiro está acostumada a receber grandes públicos. Este, porém, deve superar qualquer jogo. O velório durará 24 horas, até a manhã da próxima terça-feira, com portões abertos para o público se despedir. Em certos aspectos, parece mesmo uma partida. Os flanelinhas abordam os carros, os vendedores aproveitam as árvores ao longo do Canal 2 para pendurar camisetas de Pelé, amarelas ou branca. Do Santos, da seleção brasileira ou simplesmente Pelé Eterno. A maioria estava uniformizada. Majoritariamente com as cores do Santos, como é natural, mas também de Palmeiras, Corinthians, São Paulo, Fluminense, Flamengo, Athletico Paranaense, Internacional, Paulista de Jundiaí, New York Cosmos e até Maccabi Tel Aviv, entre outros. Ou do Porto. “O que me trouxe aqui é prestar um tributo ínfimo ao Pelé, que foi talvez a figura que prestou o maior tributo ao futebol”, explica o analista de contratos Nuno Martinho, um português de 47 anos que vive em São Paulo e estava acompanhado do filho santista.

Portugal tem um capítulo importante na carreira de Pelé. Primeiro, como lembra Nuno, pela rivalidade com Eusébio, outro grande jogador da década de sessenta que brilhou na única Copa do Mundo que o Rei, machucado, não venceu. E porque foi contra o Benfica que ele teve aquela que está entre suas maiores atuações, talvez a maior, na goleada por 5 a 2 no Estádio da Luz no segundo jogo do Mundial de 1962, que valeu o título ao Santos. “E foi justo porque sou torcedor do Porto e, quando eles chegaram à Lisboa, já tinham vendido o terceiro jogo, faixas com o Benfica campeão mundial, e isso criou um certo ânimo nos jogadores do Santos”, diz. “Eu não vi Pelé jogar, nasci em 1975, mas ele é o maior de todos. Maradona também tem um prestígio imenso em Portugal, e Garrincha também, na geração do meu avô ele foi considerado um jogador fora de série. Pelé representa o futebol. É o maior ícone do esporte e tem uma dimensão mundial mesmo”, completa.

Nuno Martinho com o filho (Foto: Bruno Bonsanti/Trivela)

Em outros aspectos, não parecia um jogo de futebol. O clima não era de alegria ou de antecipação. Também não era de tristeza exatamente. Mais de respeito. Ninguém se desencorajava pelo tamanho da fila, que andava geralmente em silêncio, com ocasionais aplausos ou cantos da música “mil gols, mil gols, só Pelé, só Pelé”, com um verso final mais educado, lembrando que ele defendeu apenas o Santos. Havia um sol para cada enlutado. Muitos carregavam sombrinhas para se proteger ou amarravam camisetas na cabeça. Quem levou boné ou chapéu foi bastante inteligente, e as águas por R$ 5,00 saíam sem dificuldade. Ao meio-dia, o aposentado Jorge Nonato, de 59 anos, era o último da fila, que partia dos portões 2 e 3 da Vila Belmiro, passava por muitos quarteirões da Rua Bernardino de Campos e ainda quebrava outras vezes em vias menores do bairro. Àquela altura, um policial militar estimava entre duas ou três horas de espera para entrar no estádio.

Jorge Nonato também. “Vai demorar bastante, umas três horas, viu, até chegar lá. Estava vendo pela televisão, acompanhando, estava dando um tempo. Falei para minha esposa que havia dado uma diminuída. Está indo devagarinho. Tenho paciência porque quem viu Pelé jogar, seja no campo, seja na televisão, o tem no coração. Fazemos isso por ele”, disse o corintiano que nasceu em 1963 e sempre morou na região da Vila Belmiro, mas nunca teve a oportunidade de vê-lo jogar ao vivo. “Eu era garoto ainda e não tinha verba para poder assistir. Só via pela televisão mesmo. É um ser humano incrível, humilde, foi uma pessoa completa. Para mim, é o Pelé no futebol e Roberto Carlos na música. Pelé está no nosso coração. Será lembrado para sempre”, afirma.

Jorge Nonato era o último da fila ao meio-dia, duas horas depois do começo do velório (Foto: Bruno Bonsanti/Trivela)

A estimativa de Nonato e do policial militar pareceu correta. A fila estava menor na hora do almoço, quando a reportagem da Trivela decidiu encará-la, e o processo inteiro demorou 1h40 minutos. O avanço é em soquinhos: anda, para, anda, para, mas sem muito tempo parada. O momento mais travado é na virada para a entrada do estádio, onde a fila fica mais aberta antes de afunilar em quatro corredores formados por grades, o último obstáculo antes do gramado. A Vila foi bem decorada para a ocasião. O torcedor é recebido à esquerda com uma coleção de coroas de flores enviadas por dignatários. As arquibancadas foram adornadas com faixas. “Viva o Rei”, “Pelé 82 anos”, “O único a parar uma guerra”, vários cartazes com o número 10 e outras bandeiras menores. Os fiscais têm trabalho para administrar o público. O caixão aberto está no meio de uma tenda montada no círculo central da Vila Belmiro. Claramente visível e um pouco afastado. Mas não é possível ter um momento com Pelé. Os fiscais compreensivelmente impedem que o público pare, mesmo que por um instante, porque todo mundo quer tirar foto de alguma coisa, e o fluxo precisa continuar.

Provavelmente não é verdade, mas todos pareciam ter uma história sobre Pelé na ponta da língua. O representante de vendas Wilson Gênio, de 46 anos, realmente tinha. Conta que fazia negócio com um dos restaurantes favoritos do Rei e teve a honra de vê-lo quatro vezes. Na primeira, tremeu. “Travei, não consegui falar. Fiquei emocionado. Ele olhava para mim, eu olhava para ele. Mas na segunda vez eu me preparei psicologicamente e falei com ele”, lembra. E, se tem uma coisa que coincidiu em todos os relatos sobre Pelé desde o anúncio do falecimento, foi sua extrema simpatia. “Na terceira, consegui pegar um autógrafo dele, tirar foto com ele. Ele foi demais. Eu falei: ‘você pode, por gentileza, assinar esta bandeira’, e ele falou ‘essa bandeira eu assino de manhã, de tarde, de noite, a hora que tu quiser’. Mas a mulher dele que é brava, falou ‘tudo isso para assinar?’, e eu falei que trouxe umas coisinhas, levei umas seis peças para ele assinar. Esperei que jantasse, depois pedi para ele assinar”, completa.

Wilson Gênio com a bandeira autografada pelo Rei (Foto: Bruno Bonsanti)

Gênio é santista e não esconde o orgulho de ter Pelé como uma parte tão importante de sua história. “Meu pai falava muito (dele), meu avô falava muito, e você tenta procurar porque todo mundo fala tão bem desse cara. Noventa por cento da história do Santos está sendo enterrada agora”, diz. O professor André Miranda, de 45 anos, segue uma linha parecida, sem arriscar uma estimativa percentual. “Pelé é a história do Santos. Pelé representa o Santos. Já existia um clube, mas esse clube só se popularizou como se popularizou por causa do Pelé”, diz. Perguntei, excluindo Rei, como ele descreveria Pelé. Esqueci de excluir outra palavra: “Eterno”.

Enquanto o público fazia fila e aguardava para prestar uma última homenagem ao Rei, três crianças jogavam futebol na calçada, à sombra da Vila Belmiro. E mágica do futebol brasileiro é essa: o próximo Pelé sempre pode estar batendo bola nas ruas de Santos.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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