Brasil

10 anos do 7 a 1: O que aprendemos (ou não) com o nosso maior desastre

Goleada no Mineirão deixou feridas abertas no futebol (e na alma do) brasileiro que ainda não foram fechadas ou sequer percebidas

Você não deve querer relembrar o que estava assistindo no dia 8 de julho de 2014, mas recordar é evoluir (ou deveria ser). Nesta data, Brasil e Alemanha se enfrentaram pela semifinal da Copa do Mundo.

Da expectativa ao fracasso, os comandados de Luiz Felipe Scolari entraram no Mineirão com muito “sangue nos olhos”, mas pouco futebol nos pés.

Neste aniversário de 10 anos do 7 a 1, a Trivela reconta uma história que mantém algumas feridas abertas. Afinal, o que mudou no futebol brasileiro?

Capítulo 1: a empolgação brasileira

Jogando uma Copa do Mundo em casa após 64 anos, a Seleção Brasileira mirava no hexacampeonato, e a empolgação vinha desde o ano anterior.

Na Copa das Confederações, em 2013, o Brasil bateu a Espanha, então campeã mundial, e deu um recado aos torcedores: estávamos prontos para buscar a sexta estrela.

Já em 2014, com Neymar em boa fase após uma primeira temporada no Barcelona, a Seleção chegou às oitavas lustrando a primeira colocação do Grupo A.

Neymar pela Seleção Brasilear em 2014
Aos 22 anos de idade, Neymar era a referência da Seleção Brasileira na Copa de 2014. Foto: Icon Sport

O time de Felipão venceu a Croácia na estreia, empatou sem gols com o México e fechou a primeira fase com três pontos ao vencer Camarões.

A partir dali, o Brasil virou uma bomba-relógio de emoções.

Contra o Chile, na primeira eliminatória, a trave tirou de Pinilla o gol da classificação chilena (seria melhor ter saído da Copa aí?), quando a partida estava 1 a 1. Nos pênaltis, melhor para os brasileiros.

Pinilla e Neymar
Pinilla acertou o travessão aos 119 minutos da prorrogação e, nos pênaltis, viu o Brasil avançar às quartas. Foto: Icon Sport

Outro confronto sul-americano nas quartas, desta vez contra a Colômbia. Sem sustos, Thiago Silva e David Luiz garantiram o Brasil entre os quatro melhores

Thiago Silva, suspenso pelo terceiro cartão amarelo, não estaria em campo para o próximo jogo. No entanto, o grande problema era a ausência do camisa 10.

Neymar levou uma entrada dura de Zuñiga, e virou desfalque para o restate da Copa. Na reta final da competição, o Brasil não tinha mais o seu protagonista.

Neymar e Zúñiga
Neymar fraturou a vértebra após a entrada de Zúñiga e ficou fora do restante da Copa de 2014. Foto: Icon Sport

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Capítulo 2: a leveza alemã

Viemos buscar o título. Esse era o discurso da Alemanha, que trouxe àquela Copa uma logística diferente de outras equipes.

Para se sentir em casa, os alemães reformularam o Campo Bahia, localizado na vila de Santo André, em Santa Cruz Cabrália, Bahia.

Com amigos e familiares, a comissão técnica e o elenco conheceram a cultura local, fizeram doações locais e tornaram o ambiente mais leve para a Copa.

Era a Copa da Alemanha. Eles conseguiram trabalhar de maneira dedicada, ao mesmo tempo que curtiram o Brasil — diz Gustavo Hofman, jornalista dos canais ESPN e setorista da Alemanha na Copa de 2014.

Favorita ao título, a Alemanha passou pelo Grupo G empolgando na 1ª rodada, mas levantando dúvidas sobre o potencial da equipe nos dois jogos seguintes.

Nas oitavas, era hora de separar os homens dos meninos. Diante da Argélia, em Porto Alegre, os gols saíram apenas na prorrogação, com Schürrle e Özil.

Pela frente, nas quartas de final, desafio europeu. Em um jogo amarrado contra a França, vitória magra por 1 a 0, com gol de Hummels (12’), em pleno Maracanã. 

Mats Hummels
Em duelo acirrado contra os franceses no Maracanã, Hummels garantiu a Alemanha nas semifinais. Foto: Icon Sport

O time não encantava, mas tinha tudo aquilo que faltava ao Brasil de Felipão: equilíbrio técnico, tático e, principalmente, emocional.

Capítulo 3: o encontro no Mineirão

Sem Neymar e Thiago Silva, Felipão colocou Dante e Bernard, o menino com “alegria nas pernas”, como mesmo disse o treinador.

Em Belo Horizonte, o avião da Seleção Brasileira desembarcou com a expressão “#éTóiss” estampada no lado externo. O jogo era, sobretudo, para o camisa 10.

Nós não vamos estar jogando apenas por nós, por nosso país, por tudo que imaginamos e sonhamos, mas também pelo Neymar, por tudo o que fez por nós — disse Felipão em entrevista pré-jogo.

Luiz Felipe Scolari
Felipão, técnico da Seleção na Copa do Mundo de 2014. Foto: Icon Sport

A Alemanha não tinha desfalques e nem motivações extracampo para vencer. Löw tinha apenas dúvidas nos 11 iniciais: Lahm e Klose começam como titulares?

Sete gols não se explicam com a tática. Eu acho que, naquela Copa do Mundo, o fator emocional foi um peso para a Seleção Brasileira ao longo de toda a competição — afirma Vinícius Dutra, analista tático da Footure.

Os dois começaram em campo. Klose, inclusive, marcou seu 16º gol em Copas e tornou-se o maior artilheiro da história da competição, superando Ronaldo.

Miroslav Klose
Aos 36 anos de idade, Klose tornou-se o maior artilheiro de Copas do Mundo com um gol sobre o Brasil nas semifinais, em 2014. Foto: Icon Sport

Além do atacante, Thomas Müller (11′), Toni Kroos (24′ e 26′), Sami Khedira (29′) e André Schürrle (69′ e 79′) fizeram os gols alemães.

Oscar diminuiu o estrago que, segundo Hofman, poderia ser maior caso Ozil não desperdiçasse uma chance clara que teve segundos antes do único gol brasileiro:

O resultado ‘correto’ seria 8 a 0. O gol de Oscar surge depois que Özil perde uma chance cara-a-cara com Júlio César — diz Hofman.

Ao final do jogo, uma comemoração contida e respeitosa dos alemães se misturava com o silêncio e o vazio que vinha das arquibancadas do Mineirão.

Brasil e Alemanha
Dante, que jogava no futebol alemão, foi consolado por Schweinsteiger e outros jogadores ao final da partida no Mineirão. Foto: Icon Sport

Na final, a Alemanha venceu a Argentina por 1 a 0, com gol de Mario Götze, já na prorrogação de um duelo marcado pelo equilíbrio.

Pelo lado do Brasil, a disputa do terceiro lugar mais parecia o reforço de um vexame em campo. Sem grandes mudanças para aquele jogo em Brasília, o Brasil perdeu mais uma vez, agora para a Holanda, por 3 a 0. 

No Mané Garrincha, a torcida se encantou muito mais com a velocidade da internet gratuita para postar selfies do que com a partida. Era o fim de um ciclo sombrio e sem grandes perspectivas.

Capítulo 4: as reflexões pós-Copa

Talento não era mais suficiente para ser campeão do mundo. Mas, afinal, o que a Seleção Brasileira precisava para voltar a competir em alto nível?

Marco Polo Del Nero
Marco Polo Del Nero, presidente da CBF em 2014, foi banido de forma vitalícia do futebol por suborno e corrupção. Em 2018, a pena foi reduzida para 20 anos. Foto: Icon Sport

A reestruturação do futebol alemão era vista como uma referência. Desde 2000, a DFB (Federação Alemã de Futebol) passou a profissionalizar o esporte desde a formação até a gestão dos clubes.

O resultado veio em 2014, mas as campanhas ruins nas últimas duas Copas do Mundo ligaram um sinal de alerta. Segundo Hofman, “algumas decisões podem atrapalhar todo o processo”:

Eu acho que o erro da Alemanha foi não encerrar o ciclo de Joachim Löw em 2018. Agora, parece que estão no caminho certo com Nagelsmann.

Em 2014, o pós-Copa parecia o momento ideal para a CBF passar por uma reformulação interna e fazer com que a Seleção voltasse a competir de igual para igual com o restante do mundo.

Ednaldo Rodrigues
Ednaldo Rodrigues, atual presidente da CBF. Foto: Icon Sport

Nada disso aconteceu, como aponta Cesar Grafietti, especialista de Gestão e Finanças do Esporte, sócio da consultoria Convocados.

O desempenho na Copa de 2014 não me parece ter trazido nada além de uma indignação de curto prazo da CBF. O impacto nos clubes foi zero — analisa Cesar Grafietti, especialista de Gestão e Finanças do Esporte e sócio da consultoria Convocados.

Ainda temos jogadores extraclasse que se destacam nos principais times da Europa. Mas a questão não é (e nunca foi) sobre a formação de atletas.

O problema parece se enraizar na estruturação interna e na forma como os dirigentes enxergam o futebol de fora para dentro.

A base é forte, mas a Seleção não convence

Cada vez mais lapidados para o futebol europeu, novos atletas brasileiros tornam-se estrelas dos seus clubes formadores ainda na adolescência.

Endrick e Estêvão
Revelados no Palmeiras, Endrick e Estêvão fazem parte da nova geração de atletas brasileiros. Foto: Icon Sport

João Paulo Sampaio, coordenador da base do Palmeiras e responsável pela formação de Endrick, Luís Guilherme, Estêvão e outros nomes, destaca a melhor infraestrutura no dia-a-dia dos clubes, mas ressalta a importância de um trabalho mental para a formação dos atletas:

Em comparação a 2014, hoje os clubes têm mais estrutura. O sub-20 do Palmeiras, por exemplo, treina no CT da Barra Funda, dividindo turnos com o profissional. Mas a motivação de todos os garotos é ser criança.

Ao completarem 18 anos, esses atletas mudam-se para a Europa, jogam com grandes nomes do futebol mundial e passam a defender a Seleção Brasileira.

O surgimento da Seleção “europeizada”, inclusive, é uma pauta recorrente entre quem viveu outras gerações dentro dos gramados brasileiros:

Muitos ex-jogadores entendem que estamos perdendo um pouco da essência do futebol brasileiro. Acho que o grande desafio da Seleção é encontrar soluções através da nossa cultura futebolística, analisa Hofman.

O domínio dos clubes na América do Sul é o suficiente?

Abel Ferreira
O Brasil venceu as últimas 5 finais de Libertadores. Foto: Icon Sport

Inegavelmente, o que mudou nos últimos 10 anos foi o cenário das competições de clubes na América do Sul. Na Libertadores, por exemplo, os últimos cinco campeões foram brasileiros, sendo que 3 das últimas 4 finais foram disputadas entre equipes do nosso país.

Em outro torneio continental, a Copa Sul-Americana, pelo menos uma equipe brasileira marcou presença nas últimas 3 finais. Este domínio, no entanto, não se traduz em resultados para a Seleção:

O Brasil tem uma economia muito maior que seus vizinhos, e o estranho era não ser dominante antes. Que haja dois ou três clubes capazes de brigar com os brasileiros, ok. Mas nada além disso. Os clubes brasileiros deveriam ter 9 entre 10 campeões continentais — aponta Cesar Grafietti.

Estádios: Elefantes-Brancos ou infraestruturas importantes?

Dos 12 estádios da Copa, alguns se transformaram em elefantes-brancos, onde o custo de manutenção supera a receita gerada até hoje. Outros, no entanto, fortaleceram clubes locais.

Alguns estádios são legados, sim. Talvez o único legado relevante. Ainda assim, alguns acabaram sub-utilizados. Os exemplos de sucesso são o Castelão, parte importante do crescimento de Fortaleza e Ceará, e a Arena da Baixada, para o Athletico. Já o Maracanã segue sendo um problema, principalmente pelas amarras dos órgãos públicos — explicou Grafietti.

Brasil pode ser campeão mundial novamente, mas os erros seguem (quase) os mesmos

Fato é que o Brasil pode ser hexacampeão na próxima Copa. Em 2018 e 2022, inclusive, já poderia ter conquistado o título que não vem há 22 anos. 

Tite, ex-técnico da Seleção Brasileira
Tite comandou a Seleção Brasileira nas Copas de 2018 e 2022, parando nas quartas de final em ambas. Foto: Icon Sport

O torneio é curto, e uma equipe com a qualidade técnica do Brasil é capaz de levar o troféu. Mas a questão não é apenas sobre ter ou não uma sexta estrela acima do escudo da CBF.

Dinheiro não falta à organização. O problema está na forma como o futebol brasileiro é organizado. Melhorar os gramados, profissionalizar a arbitragem e aprimorar o calendário são obrigações que mal saíram do papel. 

Para que as mudanças aconteçam na prática, é preciso romper uma estrutura que há décadas maltrata o futebol brasileiro: a politicagem.

A CBF é uma entidade que vive de política, não de futebol. Ela vive da manutenção de um presidente no poder através dos votos dos clubes da Série A, B e, principalmente, das Federações Estaduais — sentencia Hofman.

Para os clubes, resta organizar a casa com uma receita que parece óbvia, mas raramente é seguida: reduzir dívidas e custos e fazer as receitas crescerem. Para o especialista Cesar Grafietti, Flamengo e Palmeiras são os melhores exemplos dos últimos anos:

Na média, a disputa ficará sempre com quem tem mais receitas e menos dívidas. E para chegar nisso os clubes em dificuldades precisarão passar por um purgatório real — conclui Grafietti.

A verdade é que, 10 anos depois, o 7 a 1 ainda ecoa na memória dos torcedores e reflete a realidade do nosso futebol. Muito tempo se passou, mas pouca coisa mudou.

Foto de Lucas Gervazio

Lucas GervazioRedator de esportes

Jornalista pela Unesp. Antes da Trivela, contribuiu para os portais Guia do Boleiro, Quinto Quarto e FNV Sports.
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